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Especial História Redação 15 de junho de 2018 (0) (181)

A “LOCOMOTIVA” PASSA PELA SÃO SILVESTRE

por Nelton Araújo

Há quem diga que faltam grandes nomes internacionais na São Silvestre nos últimos anos. E não é sem razão: a prova conta nas últimas edições com estrangeiros de pouco reconhecimento internacional, em geral apenas os africanos que passam temporadas aqui no país fazendo seus pés de meia.
Contudo, mesmo assim, sempre nos meses anteriores à competição, especulam e esperam que algum grande atleta venha participar. Afinal, desde que a São Silvestre passou a aceitar atletas de outros países, em 1945, ela forjou uma tradição de ter grandes nomes presente no dia 31 de dezembro pelas ruas da capital paulista, começando com o finlandês Viljo Heino, então recordista mundial dos 10.000 metros, em 1949.
A lista que se formou após ele é extensa e podemos citar o americano Frank Shorter, vencedor em 1970, a portuguesa Rosa Motta, hexacampeã entre 1981 e 1986, o queniano Paul Tergat, pentacampeão entre 1995 e 2000 (provavelmente hexacampeão se não fosse um tal de Émerson Iser Bem ultrapassá-lo e conquistar a prova em 1997). Outro queniano de renome internacional presente na prova foi Robert Cheruiyot em 2004 e 2007, e , em 2011, tivemos a presença da queniana Priscah Jeptoo, que venceu as maratonas de Londres e Nova York em 2013.
Mas a então rebatizada Corrida Internacional de São Silvestre se eleva em status com a presença do tcheco Emil Zatopek na edição de 1953.
Nascido em 1922 na então Checoslováquia, Zatopek entrou no mundo da corrida aos 16 anos, quando a fábrica de calçados na qual era aprendiz organizou uma competição intitulada Circuito de Zlin, voltada a todos os alunos do ensino profissional. Desde então foi se destacando e aos 22 anos, em 1944, já alcançava seu primeiro recorde mundial, além de colecionar títulos e campeonatos. Por se destacar no cenário esportivo, o governo tcheco o recrutou para as fileiras militares em 1945, sendo usado como símbolo da eficiência do sistema comunista instalado em 1948. Nesse mesmo ano, nos Jogos de Londres, de forma um tanto quanto discreta, Emil Zatopek chegou às suas primeiras medalhas olímpica: ouro nos 10.000 e prata nos 5.000 metros.

HENSILQUE 1952. Mas a “Locomotiva Humana” ou “Locomotiva Tcheca” teve seu grande momento na história do esporte nas Olimpíadas de Helsinque, na Finlândia, em 1952. Tudo começa quando ele registra seu nome na prova de 10.000 metros, na de 5.000 metros, que aconteceria três dias depois, e na Maratona, quatro dia depois. Que outros atletas corressem uma distância, tal como 10.000 ou 5.000 metros, e depois fizessem a maratona, não era incomum. Mas a surpresa era alguém tentar correr as três em tão pouco espaço de tempo.
Vestindo a camiseta 903, não toma conhecimento dos adversários e vence a prova dos 10.000 metros. Dias depois, sereno, faz uma prova conservadora e se dá ao luxo de ultrapassar nas últimas voltas os dois valentes corredores que estavam à sua frente. E com a mesma serenidade das provas anteriores, conversando com adversários e até se despedindo deles quando resolve acelerar, ele também conquista a medalha de ouro na maratona, gravando seu nome na história: até hoje, ninguém repetiu tal feito!
O curioso é que apesar de toda sua serenidade nas provas, onde parecia que sobrava fôlego, o público assistia a um Emil Zatopek fazendo caretas como se estivesse a desmaiar, sofrendo nas pistas. Se era verdadeiro, se era um ritual ou apenas algo que fazia parte da sua biomecânica, não sabemos. Mas o fato é que ele, que já era um grande nome do atletismo na época, torna-se lenda. E a “Lenda Tcheca” aceita, enfim, depois de muita insistência, um ano depois da façanha em Helsinque, participar da Corrida de São Silvestre.
Pelos lados de cá, o nome de Emil Zatopek já ventilava entre corredores, treinadores e nos jornais, pela “revolução” do método de treinamento que ele tinha apresentado ao mundo. Ele era o principal exemplo da eficácia do treino intervalado, criado pelo fisiologista alemão Woldemar Gerschler, segundo o qual um fundista não deveria longos percursos em seus treinos, mas uma série de “sprints” com 80% de seu esforço. Saber mais sobre esse modelo era a coqueluche do momento; afinal, não apenas Zatopek era partidário desse treinamento, mas também o vencedor da São Silvestre de 1952 – e posteriormente em 1954, Franjo Mihalić, um dos maiores corredores de longa distância da antiga Iugoslávia, tendo como resultado mais expressivo a prata na maratona dos Jogos Olímpicos de Melbourne 1956.

NA SÃO SILVESTRE. E no dia 18 de dezembro de 1953, atletas e admiradores da “Locomotiva Humana” entraram em frenesi: em primeira mão, o jornal A Gazeta Esportiva estampava em letras garrafais na sua capa: “O maior atleta do mundo na maior prova pedestre do mundo. Emil Zatopek na São Silvestre”. O tradicional periódico ainda publicou o telegrama em francês enviado pela entidade estatal responsável pelo esporte na Checoslováquia, então alinhada à União Soviética. A capa não simbolizava apenas a novidade que transformaria a São Silvestre, mas uma vitória particular do grupo A Gazeta em conseguir trazê-lo, depois de anos recebendo negativas, sem respostas satisfatórias.
Nas semanas seguintes, praticamente todos os jornais da Grande São Paulo, que outrora davam notas pequenas sobre a São Silvestre, passaram a colocar a prova em suas capas. Fizeram cobertura dos treinos não somente de Zatopek, mas de toda a elite, sobre quem estaria credenciado a ser o segundo colocado entre os outros 2.140 inscritos, pois os jornais já estampavam a vitória do tcheco como certa, uma “barbada”.
Ademais, anunciavam as alterações que a cidade sofreria para a realização do evento e cogitavam a possibilidade de que mais de meio milhão de pessoas fossem para as ruas para assistir ao evento. No dia 28 de dezembro, todos os olhos da mídia estavam no lotado aeroporto de Congonhas no início da noite, quando Emil Zatopek desembarcou, e, depois que cumpriu algumas formalidades, saiu às 22h30, para espanto de todos, para treinar no percurso da prova.

TREININHO DE 30 KM. Nos dias que antecederam a Corrida Internacional de São Silvestre, os técnicos e atletas observaram com grande interesse os treinamentos inovadores de Emil Zatopek, realizados no Clube de Regatas Tietê, como o “treininho leve” de 30 km feito no dia seguinte à sua chegada, na raia 6, alternando tiros de 100 a 200 metros com uma corrida estável, pois queria realizar a distância com o menor número de voltas possível. Naturalmente que tal atuação foi parar em todos os periódicos, mais como curiosidade do que como questionamento da sua relevância. Essa visibilidade midiática permaneceria nos anos posteriores, com a competição passando a ter uma cobertura mais constante e interessada pela imprensa.
Um reporter mais atento perceberia que Zatopek era vigiado de perto por um membro da segurança de governo da Tchecoslováquia durante sua estada no Brasil. Sabendo das posições anticomunistas do campeão olímpico, e na medida em que o esporte era usado como propaganda pelo bloco socialista, perder o atleta, dono de cinco medalhas olímpicas, sendo quatro de ouro, tal como se refugiar e pedir asilo político a um país alinhado com o bloco capitalista era algo fora de cogitação.
Mas a presença de Zatopek trouxe além de importância e visibilidade que faltavam ao espetáculo, também o recorde do percurso, completado em 20:30. Esse recorde permaneceu até 1966, quando o trajeto foi alterado em distância e de itinerário, como era comum. O percurso que Zatopek correu saía da Rua Conceição (atual Avenida Cásper Líbero), em frente ao antigo prédio do jornal A Gazeta, passando por ruas conhecidas do centro paulistano, como a Avenida São João, o Largo do Arouche, a Praça da República, e completaria o percurso de 7,3 km (em algumas edições 7,4 km), retornando ao prédio da principal patrocinadora e organizadora do evento. Entre os inúmeros percursos que a São Silvestre já possuiu, esse foi um dos mais duradouros, permanecendo de 1950 a 1966.

LARGADA FALSA. Recorde quebrado, não sem sustos. Em primeiro lugar, Zatopek foi informado que o procedimento de largada aconteceria às 23h45, logo após tocar o Hino Nacional. O tcheco então pediu para aprender a melodia da música para saber em que momento ela estaria perto de terminar, para que ele pudesse dar alguns saltos e se preparar para a prova. Assim transcorreu normalmente e a organização esperava dar exatamente 23h45 para dar o tiro de largada.
Todos os 2.140 atletas tomaram um susto quando, de repente, um barulho de rojão ecoou um minuto antes: alguém do público, mais empolgado que o normal, soltou o rojão e confundiu a todos, que, na dúvida, começaram a correr. Zatopek estava ao lado da largada, aquecendo, e quando viu a multidão largando, não pensou duas vezes. Em pouco tempo já estava na liderança e venceu, apesar do susto, com facilidade, mais de meio quilômetro de vantagem sobre Franjo Mihalic, o campeão do ano anterior.
O público se aglomerou em volta de Zatopek, que, mesmo assim, mostrava uma felicidade irradiante e, depois, em entrevista para A Gazeta Esportiva, falava sobre a calorosa recepção: “O povo, absolutamente em ordem, mostrou entusiasmo incomum. Uma organização magnífica. Tudo isso justifica plenamente o slogan por demais merecido da São Silvestre: a maior prova pedestre do mundo. Veja, por exemplo, a quantidade de concorrentes. Jamais participei de uma prova em que fosse o número 2.140”, declarava o mais o novo campeão da São Silvestre.
Aliás, por conta do crescimento desordenado de participantes e pela confusão da largada em 1953, a partir de 1954, na 30ª edição da prova, foram institídas as “seletivas”, que colocariaam apenas os melhores corredores na competição e, diminuindo o número de participantes, melhoraria em organização, em um passado tão remoto e diferente dos dias de hoje.
O detentor da tríplice coroa olímpica permaneceria em São Paulo por mais 10 dias, quando participou da “Competição Internacional de Provas de Fundo”, realizada à noite na pista do Estádio do Pacaembu, vencendo com facilidade a prova dos 10.000 metros, no tempo de 30:01. Nesse mesmo ano de 1954, Zatopek seria o primeiro homem a correr essa distancia abaixo dos 29 minutos.
No dia seguinte, centenas de pessoas compareceram no aeroporto de Congonhas para se despedir do seu ídolo, que, em sua última fala em solo brasileiro, disse à imprensa: “Farei de tudo para voltar no fim do ano, pois essa será a única maneira de prestar minhas homenagens aos esportistas do Brasil, que tão bem me receberam. Aliás, a forma carinhosa como fui recepcionado neste país mostra que todas as pessoas se amam e desejam a paz mundial. Sinto-me feliz por ter cumprido meu dever de esportista”.

REVIRAVOLTA. Seus inúmeros elogios ao Brasil não devem ter agradado o governo tcheco. Ao voltar para seu país, se preparando para o ciclo olímpico de Melbourne (onde foi apenas sexto colocado na única prova que participou, a maratona), recebeu a presença de um repórter do jornal “Svobodne Slovo” (em tcheco “liberdade de expressão”, por mais irônico que isso possa parecer), porta voz do governo comunista, para dizer suas impressões sobre o Brasil. Fiel às palavras ditas em solo brasileiro, ele repetiu que achou tudo maravilhoso, realmente fantástica e que iria voltar no final do ano.
Meses se passaram e quando Zatopek pediu autorização às autoridades brasileiras para voltar e correr a São Silvestre de 1954, estranhamente viu seu visto negado sob acusação de que tinha feito ofensas ao Brasil quando retornou ao seu país. Depois se descobriu que a tal entrevista fora completamente distorcida e um exemplar foi cuidadosamente enviado às autoridades brasileiras. Mas o pior ainda estava por vir.
Ao defender os defensores da democratização, na “Primavera de Praga” em 1958, Zatopek foi destituído do posto de coronel do exército, perdeu todas suas honrarias, foi expulso do partido comunista e encerraria sua carreira esportiva. Foi forçado a trabalhar em locais de alta periculosidade, como escavar em uma mina de urânio, e por vários anos, para sobreviver e sustentar sua família, teve que pegar uma vassoura e trabalhar como lixeiro.
Em 1970, ano que Frank Shorter venceu a São Silvestre, Zatopek veio a convite da organização para prestigiar o evento e ser homeneageado. Nada mais justo ao homem que transformou a São Silvestre, com suas pernas e suas caretas.

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