19 de maio de 2024

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História admin 15 de junho de 2018 (0) (2125)

“A prova mais suja do mundo”: o doping de Ben Johnson em 1988

por Nelton Araújo

“A medalha de ouro, porque ninguém pode tirar isso de você”, disse o canadense Ben Johnson logo após a final dos 100 m na Olimpíada de Seul, em 1988. Ele não apenas tinha conquistado o ouro, mas também o recorde mundial, correndo para 9,79 segundos, e, por isso, a pergunta do repórter sobre quais dos feitos ele amava mais. Tinha o ouro, o recorde e vencido aquela que é conhecida, por muitos, como a maior final dos 100 m de todos os tempos.
A foto do braço direito estendido antes da linha de chegada era mais que a certeza da vitória, era a provocação final a seu maior rival, o americano Carl Lewis. Segundo os comentaristas logo após o evento, “foi mágico, emocionante, o desfecho impressionante para uma das rivalidades mais fortes do esporte”. Aquele sábado, 24 de setembro (aqui no Brasil já nos primeiros minutos de domingo) está no imaginário dos amantes do atletismo, ainda mais nos dias de hoje, quando o vídeo da final está a um clique no Youtube.
No entanto, tão impregnado nas mentes quanto as cenas desta final foram os desdobramentos, após a divulgação de que Ben Johnson tinha sido pego no antidoping, com uma quantidade considerável do esteroide Stanolozol em sua urina. Foi despojado da medalha de ouro, julgado e, anos mais tarde, banido do esporte. A “maior prova do mundo” logo se tornou a “prova mais suja do mundo”. Só que, revisitando a História, a ideia na qual um atleta isoladamente abusou das drogas e tornou-se o maior escândalo dos Jogos Olímpicos passa a ter mais camadas.
Se em 1999, o americano Carl Lewis foi considerado pelo COI como o maior “Esportista do Século”, ao final de 1984 sua vontade era sair do esporte. Suas quatro medalhas na Olimpíada em Los Angeles não o tinham tornado tão popular quanto ele imaginava. A desconfiança acerca de sua sexualidade, assim como a aparente arrogância e seu “estrelismo” não foram bem aceitos pelo público. Desta forma, não era de se espantar que ele estivesse pensando em dar um tempo nas pistas e fazer carreira no showbizz para alavancar seu prestígio e transcender o esporte. Nas pistas, Lewis, assim como os EUA, parecia entediado com a falta de concorrência.
As coisas começaram a mudar em agosto de 1985, em uma prova na cidade suíça de Zurique, quando um jamaicano, que aos 14 anos tinha se mudado para o Canadá, Benjamin Sinclair Johnson, mesmo com vento contrário, superava Lewis pela primeira vez na carreira. Ben Johnson não era um total desconhecido: tinha sido medalha de bronze em 1984, mas nunca foi considerado como uma real ameaça ao americano. Em oito encontros de 1981 a 1985, Johnson tinha amargado oito derrotas no confronto direto com o campeão olímpico. Dias depois, outra vitória e a conquista do canadense na Copa de Mundo de Atletismo. Carl Lewis, que se recuperava de uma lesão no tendão, não compareceu. Ao que Johnson, iniciando a guerra de provocações, já insinuava a imprensa de este tinha fugido do confronto direto.

LARGADA PECULIAR. “Big Ben” era parte de um projeto do ex-atleta e treinador canadense Charlie Francis em buscar talentos nas áreas pobres do seu país. Johnson nunca foi um prodígio e nem se destacou logo de cara. Entretanto, tinha uma largada peculiar, onde saltava do bloco de partida como se desse um pulo, ao invés de tomar impulso, possuindo uma explosão fora do comum. Só que o fôlego acabava antes dos 60 metros e ele era superado, como visto na final dos 100 m em 1984.
Ele melhoraria substancialmente a partir de uma mudança na metodologia nos treinos. O programa de treinamento Charlie Francis era inovador para a época, enfatizando a velocidade sobre a resistência. Seguia o sábio princípio onde “menos é mais”: menos volume, mais intensidade. Na pista isso significava correr distâncias mais curtas e mais rápidas e, na sala de musculação, fazer menos repetições, só com que com cargas cada vez mais pesadas.
Para Carl Lewis o que valia era aperfeiçoar a biomecânica, estudando por horas gravações de suas provas e treinando para não errar um milésimo de segundo em nenhum dos 43 passos que dava na pista (a média de passos dados até hoje, com exceção de Usain Bolt, com 41) e aprimorando sua característica, que vinha com seus treinamentos no salto em distância: a aceleração progressiva.
Já Johnson, em cinco anos tinha dobrado o peso que levantava no supino e, ao mesmo tempo em que sua massa magra aumentava, seu percentual de gordura baixava em nível de um fisiculturista. E aí entra a segunda revolução na sua preparação: os ciclos de esteroides que tomava com a importante participação do médico canadense Jamie Astaphan, que entrou para a equipe de Francis em 1985.

APERFEIÇOAMENTO. Para este, o Hormônio de Crescimento Humano (HGH), coqueluche nos Jogos de 1984, não bastava. Começou, então, a receitar a Ben Johnson o uso de testosterona injetável, de nome Dianabol. O ciclo de anabolizante ia até, no máximo, 28 dias antes das principais competições. Esse era o tempo suficiente para o corpo eliminar naturalmente algum resíduo dos esteroides, fazendo o atleta estar aparentemente “limpo”. O exame antidoping fora do período de competição estava ainda no plano das ideias.
Apesar do poder do doping, este não torna o atleta ser mais rápido ou resistente de forma direta. No caso da testosterona exógena, sua função principal é acelerar a recuperação durante o período mais intenso do treinamento. E quanto mais rápido o atleta consegue se recuperar, mais frequente consegue suportar a alta intensidade da preparação sem chegar em “overtraining” ou ter muitas lesões. É assim que, indiretamente, seu desempenho é otimizado. Como o próprio atleta canadense afirmou em entrevista: “Nós não abusávamos das drogas: nós tomávamos o que o corpo precisava para treinar”.
Após voltar da Copa do Mundo de Atletismo de 1986, Johnson entrava em outro patamar nas experiências de Jamie Astaphan. O médico tinha encontrado um novo esteroide, mais eficaz para substituir o Dianabol, que já conseguia ser detectado pelo antidoping. Astaphan o chamou de Estrogel, que possuía um “misterioso esteroide”. Na verdade, dentro da substância injetável de coloração branco leitosa do Estrogel, havia o anabolizante Stanozolol, criado em 1962, visando o crescimento muscular e de células vermelhas de animais doentes ou em vias do abate. Ela serviria para o atleta, por ser menos agressiva ao sistema hepático que o Dianabol, mas era o fato de ser ainda indetectável a sua principal vantagem.
Lewis respondia ao jogo de provocações de Johnson, pedindo mais teste e dando indiretas que cada vez mais havia atletas correndo sob efeito de drogas. No entanto, ele mesmo era alvo de rumores quanto a acordos com organizadores de eventos para a não realização de testes antidoping e mesmo de ocultação de seus testes positivos. E, sobretudo, a maior desconfiança estava quanto ao uso do Hormônio do Crescimento (HGH).
Até então indetectável, o HGH ficou conhecido a partir de 1970, quando passou a ser utilizado clinicamente para o tratamento de nanismo. Mas entrou no mundo do esporte como potencializador da recuperação muscular e de melhora do desempenho. É considerada uma das piores substâncias que um atleta pode tomar, tendo seus efeitos colaterais irreversíveis, como aumento dos dentes e das extremidades do corpo. A Olimpíada de 1984 viria a ser conhecida como “Os Jogos do HGH” e o fato de um contingente considerável de atletas estivesse usando aparelhos dentais, uma das formas de se combater o aumento desproporcional dos dentes, talvez não fosse apenas uma coincidência.

PROVOCAÇÕES. A rivalidade entre o americano e o canadense se dava nas pistas e, progressivamente, nas provocações. Em 1986, Johnson iria derrotar Lewis mais três vezes, alterando a dinâmica da disputa: o canadense agora era o homem a ser batido. Lewis respondia fazendo 9.90 no campeonato nacional e falava raivosamente aos repórteres “As pessoas vão ter que correr muito rápido para me vencer”.
Era como se estes estivessem entrevistando o boxeador Muhammad Ali. Definitivamente Carl Lewis não estava mais entediado. Mas o canadense respondia à altura, primeiramente vencendo o americano em Moscou, nos Jogos da Amizade de 1986. Em sequência ao “jab” nas pistas, dava um gancho de direita verbal, superando o forte sotaque e a gagueira, e perguntava “qual a desculpa que Lewis tem a dar nesta derrota?”.
Para o americano, o ano de 1986 parecia interminável. Novamente em Zurique, cidade onde, um ano antes, Johnson mostrou-se como o principal algoz de Lewis, outra provocação do canadense agora estampava as capas dos jornais. Próximo de 10 metros antes da linha de chegada, Johnson visivelmente “tirou o pé” quando olhou para a esquerda, percebendo quão à frente estava do americano. Não satisfeito, simultaneamente, ergueu o braço direito e apontou para o céu. Para Lewis aquela cena era ameaça real a sua autoimagem, baseada na ideia na qual ele poderia transcender o esporte. E para isso ele tinha que ser o número um. Enquanto isso, nos bastidores, Charlie Francis conseguia ocultar o teste positivo do seu pupilo junto aos organizadores.
A rivalidade chegou a um ponto que quase foi às vias de fato, em uma competição em Sevilha no ano seguinte, se não fosse a turma do “deixa disso”. As coisas não estavam quentes só nas pistas, mas também na imprensa, quando saiu a notícia de que o britânico David Jenkins tinha sido preso por seu envolvimento no contrabando de esteroides. Ele era responsável simplesmente por 70% do fornecimento de substâncias ilícitas nos EUA.

DOPING GENERALIZADO. Até então, o doping era retratado pela mídia até com certa regularidade, mas sempre sugerindo que a questão era mais hipotética do que real. A partir da prisão de Jenkins, virou uma “pauta quente”. Por exemplo, analisando a revista britânica “The Times”, vemos que, em 1987, fora feito um dossiê acerca do problema das drogas no atletismo. Chegaram à informação que atletas selecionados para os primeiros testes aleatórios já sabiam de antemão que seriam testados e, principalmente, que as amostras positivas nos Jogos de 1984 foram destruídas e ocultadas. A conclusão era amarga: o uso de substâncias ilícitas não era um fenômeno somente do bloco soviético, como por muito tempo se supôs. E com a queda do muro de Berlim, mais provas mostraram que o lado ocidental não apenas acompanhava o avanço do doping, mas estava igualmente na vanguarda.
A IAAF mostrava que estava atenta às notícias e anunciou, nas vésperas do Campeonato Mundial de Atletismo em 1987, a intensificação nos testes aleatórios, ou seja, fora do período de competições. Segundo a entidade, a intenção era “perseguir os trapaceiros em seus refúgios e pegá-los em flagrante”. Uma declaração que somente a partir de 1990 foi realmente aplicada. Muito pelos interesses políticos de seu presidente, o italiano Primo Nebiolo, o qual já em 1984 tinha sido o principal responsável pela ocultação de resultados positivos, sob a alegação de que o anúncio público dos mesmos “acabaria com o atletismo”.

ROMA 1987. O Mundial em Roma 1987 era o grande trunfo para Nebiolo expandir ainda mais seu capital político. Depois de três sucessivos Jogos Olímpicos marcados por boicotes, e a dúvida sobre se o bloco comunista iria participar em Seul, a competição na capital italiana foi um evento de orgulho ao presidente da IAAF. “Todo mundo que é alguém está aqui”, estampava o New York Times. Mas o que era orgulho para Primo Nebiolo tornou-se escândalo, após a revelação de uma marcação falsa a favor de um italiano no salto em distância. A esperança para apagar a imagem ruim era que o evento visse um recorde mundial. Se fosse nos 100 m, então seria perfeito.
E apesar de todo favoritismo nas pernas de Carl Lewis, visto como elegante e educado, em contraste com o bruto e selvagem canadense, “Big Ben” reagiu ao tiro de largada como se tivesse escutado antes de todos, em 0,129 segundo, menos que o tempo que se leva para piscar os olhos. Como de costume, Johnson jogava seus braços para o alto e pulava do bloco.
Sua ótima saída lhe deu vantagem logo de início. Carl Lewis, que reagiu ao tiro em 0,196 segundo, sabia que sua vitória estava no final. Não era explosivo de início, mas conseguia acelerar e principalmente, desacelerar menos que seus oponentes nos últimos 30 metros. Só que em Roma ele não alcançou Johnson, olhando com uma pitada de desespero o canadense e abandonando toda sua tão elogiada biomecânica.
O relógio parou em 9.83: o recorde mundial do americano Calvin Smith, de 9.93, que perdurava desde 1983, era pulverizado um décimo de segundo, algo completamente fora da curva. Big Ben continuava a correr, carregando a bandeira canadense, quando foi surpreendido com o nobre gesto de Carl Lewis, indo em sua direção e estendendo as mãos. A história, no entanto, é menos romântica. Lewis foi apertar a mão de Johnson e, entre sorrisos e palavras que soavam que se estivesse o parabenizando, o acusava de queimar a largada.
Mais importante foi o fato de que o presidente da IAAF, eufórico, levou Johnson para todos os cantos em entrevistas e depois para jantar no melhor restaurante da cidade. Isso não soaria digno de nota, se não fosse o fato de que o canadense não tivesse comparecido ao controle antidoping após a prova. Pelo menos até às 23h, eles ainda esperavam por ele. Muitos alegam que Primo Nebiolo não queria mais escândalos, e evitou que “Big Ben” fosse testado. No entanto, eles não tinham provas, só convicções. O canadense recebia prêmios e troféus, enquanto o americano ainda sofreria o baque da morte de seu pai naquele ano.

LEWIS E FLORENCE. A maré ruim de Carl Lewis parecia ter acabado em 1988. Em meados de julho, ele venceria as qualificatórias americanas para os Jogos de Seul com um tempo de 9.78. Seria recorde mundial se o vento a favor não estivesse mais forte que o permitido. Mas o estádio na cidade de Indianápolis veio abaixo, e uma multidão foi ao encontro de Carl Lewis, já abraçado com seu amigo de faculdade, Andrew Jackson.
Johnson, que acompanhava a prova em uma emissora de TV, desdenhou o desempenho dizendo ao repórter “Com este vento, eu teria corrido para 9.5”. O mesmo estádio também testemunharia o recorde mundial da velocista norte-americana Florence Griffith-Joyner, que em Seul superaria o recorde olímpico. No entanto, sua carreira é mais lembrada pela aposentadoria precoce, logo após as Olimpiadas de 1988, e a sua morte por asfixia, decorrente de um ataque epiléptico em 1998, levantando até hoje sérias dúvidas sobre se o falecimento não aconteceu decorrente dos efeitos colaterais do uso contínuo de esteroides.
As qualificatórias em Indianápolis, em julho de 1988, poderiam ter se tornado um grande escândalo. Isso porque as amostras da urina de Carl Lewis continham as substâncias pseudoefedrina, efedrina e fenilpropanolamina, estimulantes que agem como broncodilatadores e emagrecedores. A carta assinada pelo diretor-executivo do Comitê Olímpico dos EUA um mês depois, informava que os testes eram motivo do impedimento do ingresso do atleta na equipe olímpica.
Poderiam ter se tornado um grande escândalo, mas não aconteceu. Por um simples motivo: ela foi ocultada e só revelada em 2003, quando um jornal californiano, o Orange County Register, revelou o conteúdo das trinta mil páginas de documentos que detalhavam 118 casos positivos de doping nos EUA, todos ignorados, entre 1988 e 2000.
Tendo dez dias para recorrer, Lewis e mais oitos atletas que também foram flagrados afirmaram que usaram um remédio que possuía o extrato da planta Ma Huang, de onde se extrai a efedrina, mas eles não sabiam dos efeitos dopantes da substância. Um tanto quanto estranho para quem se dizia ser conhecedor de atletas que estavam se dopando, além do fato que os efeitos da efedrina eram notórios até mesmo ao público leigo.
Mas o Comitê Olímpico dos EUA aceitou o argumento e apenas os advertiu, liberando os nove para os Jogos. Sem a divulgação da carta, o americano continuou na cruzada ao doping, com afirmações que tinham endereço certo, “há medalhistas de ouro que estão sob efeito do doping”. E enfatizava sua condição de “limpo”, dizendo “se estivesse usando drogas, eu poderia fazer 9.8 imediatamente”.

EFEITOS DOS ANABOLIZANTES. Já para Ben Johnson, 1988 não prometia ser um bom ano desde o início. O corpo demorou a se recuperar dos efeitos colaterais de seu último ciclo de esteroides. O uso de anabolizantes é feito em ciclos, onde há um período sem tomar as substâncias, visando restaurar a produção endógena da testosterona, tentando, assim, diminuir os efeitos negativos e manter os ganhos proporcionados pelos anabolizantes.
Ben Johnson, ao final de 1987, apresentava sinais de ginecomastia – o aumento do tecido nas mamas em homens, o qual, junto com a atrofia dos testículos são algumas das consequências mais comuns do uso contínuo de anabolizantes. Controlado os efeitos colaterais e preparado para mais um ciclo de treinamentos e o coquetel de substâncias que fazia do seu fígado uma roleta russa, logo ele teve uma distensão muscular na panturrilha. E, em uma atitude amadora, contrariando seu treinador Charlie Francis, foi a Tóquio para participar de algumas competições. Não completou nem a primeira prova: tinha rasgado o tendão.
A quatro meses de Seul, o homem mais rápido do mundo mal podia andar. E o relacionamento entre Francis e Astaphan começou a se desgastar a partir do momento em que o médico passou a se considerar o único responsável pelo sucesso de “Big Ben”. Chantageou Francis, exigindo um milhão de dólares para não vir a público e revelar que ele era o Dr. Frankstein do “monstro” Ben Johnson.

ALTOS CACHÊS. Enxergar cifras no lugar de atletas também tinham os empresários em relação a quanto podiam faturar em cima da rivalidade Johnson X Lewis. E sabiam que quanto menos eles competissem entre si, mais aumentava a expectativa e o valor que eles poderiam cobrar dos organizadores e dos direitos de transmissão. As cifras são nebulosas, mas giram em cachês entre 500 mil a um milhão de dólares.
Não foi à toa que, depois do Mundial de 1987, eles só se encontrariam, pelo terceiro ano seguido, em Zurique, pouco mais de um mês antes dos Jogos em Seul. Ben Johnson, atrasado em sua periodização para a Olimpíada, foi à prova sem descanso e amargou a vitória de Lewis com o tempo de 9.93. Assistiu também ao americano fazer uma festa como se tivesse ganhado o ouro olímpico. Em sua autobiografia, Lewis descreveu esse momento como a quebra de um feitiço de Ben sobre ele, mas não deixaria a provocação de lado: “Eu nunca mais vou perder para ele”, afirmou aos jornalistas.
De volta à ilha de St. Kitts, no sudeste de Miami, Johnson encontrava refúgio para se concentrar para os Jogos Olímpicos. Sua preparação já estava quase finalizada e ele em forma semelhante a Roma, no ano anterior. Charlie Francis projetava que ele era capaz de correr os 100 m em 9.8. Já Astaphan projetou um microciclo de esteroides, com Stanolozol e Hormônio de Crescimento.
Isso não envolvia apenas Johnson, mas todos os atletas canadenses da equipe de Francis, como a velocista Angella Issajenko, especialista nos 100 m, Mark McKoy, que viria a ser ouro nos 110 m com barreiras nos jogos de 1992 e Williams Desai, de volta depois que achou que Johnson estava sendo privilegiado, saindo da equipe e denunciando o rival dos 100 m às autoridades canadenses, mas sem sucesso. Astaphan estava seguro que tais substâncias seriam eliminadas 28 dias antes dos Jogos. Era tempo mais que suficiente: suas pesquisas mostravam que, agora, 11 dias era um tempo para uma eliminação segura.

OLIMPÍADA LIMPA. Os ventos da “Glasnost”, a política de transparência que viria abalar a União Soviética, também sopravam na Coréia do Sul. A Olimpíada de 1988 queria ser conhecida como a “A Olimpíada Glasnost”, os Jogos da transparência. O presidente do COI, o espanhol Juan Antonio Samaranch, fez um discurso imponente, em que sob o lema “Doping é igual à morte”, anunciou uma ação antidoping, possibilitando testar 1.600 amostras de urina ao longo dos 16 dias de competições.
O otimismo quanto à lisura das provas transbordava em suas palavras, no discurso de abertura dos Jogos, no dia 17 de setembro de 1988, aos 70 mil presentes no Estádio Olímpico de Seul, um bilhão de espectadores pela TV e, não menos, aos atletas de 159 países participantes, número não apenas maior que no Campeonato Mundial de Atletismo de 1987, mas também superior a de países inscritos na ONU.
Seis dias após a abertura dos Jogos, começavam as baterias de qualificação para os 100 m rasos masculino. Enquanto Carl Lewis tentava intimidar Johnson fazendo tempos abaixo dos 10 segundos, “Big Ben” corria apenas para ganhar, explodindo até os 60 metros e depois deixando a inércia fazer seu trabalho. E esse era o medo de Charlie Francis: que o excesso de confiança fosse traiçoeiro. E quase foi.
Sorteado para as quartas de final mais difícil, Johnson novamente relaxou após os 60 metros, mas agora foi ultrapassado pelo compatriota Dennis Mitchell e o britânico Linford Christie. Como apenas os dois melhores das seis baterias entravam automaticamente na semifinal, Johnson contou com a sorte de ter sido o mais rápido terceiro colocado, que lhe deu a vaga. Acionado o botão de atenção, no dia seguinte, após Carl Lewis ganhar facilmente sua bateria, Ben Johnson venceu a semifinal, batendo Christie e Mitchell e superando a jovem promessa brasileira, o carioca Robson Caetano da Silva.
Em geral, as principais finais olímpicas eram programadas para o final da tarde ou início da noite. No entanto, por conta do fuso horário, Juan Antonio Samaranch e Primo Nebiolo fizeram uma manobra para alterar o horário da final para o início da tarde, e assim atingir uma maior audiência na TV, dado o fuso horário.

A GRANDE FINAL. Desta forma, às 13:20, Robson Caetano, Raymond Stewart, Carl Lewis, Linford Christie, Calvin Smith, Ben Johnson, Desai Williams e Dennis Mitchell foram autorizados a tomar suas posições nas suas respectivas raias. Já se conheciam de longa data: era o grupo que sempre estava nas finais dos grandes campeonatos. Tinham oito minutos para tentar se concentrar e evitar um ataque cardíaco devido não só ansiedade de uma final olímpica, mas também por conta do intenso barulho que se fazia das cadeiras do Estádio Olímpico. O clima não era dos melhores: 25 graus, porém a brisa leve nas costas dos finalistas aliviava a sensação de calor. Carl Lewis cumprimentou todos os oponentes, inclusive Ben Johnson, que estendeu a mão, mais por reflexo do que por vontade.
Os juízes pediram silêncio do público e o lugar foi preenchido por uma paz de dezoito segundos, parecendo que o estádio estava vazio. Às suas marcas! Preparar! E Ben Johnson reage em 0,132 segundo ao tiro de largada (como comparação, Usain Bolt reagiu ao tiro de largada na Olimpíada do Rio em 0,155). Lewis larga em 0,136, mas não foi suficiente para alcançar Johnson, já a um corpo de distância na faixa dos 30 metros.
Entre 30 e 40 metros, o canadense ganha mais três centésimos de Lewis, cujo rosto começou a traí-lo com os primeiros sinais de pânico. Todos achavam que a explosão de “Big Ben” só iria até os 60 metros, mas quando ele passou por essa marca, surpreendentemente continuou a acelerar. Carl Lewis cometia o erro primário de olhar para os lados e já tinha feito duas vezes para sua direita. Faltando cinco metros da linha, os braços relaxaram pelo corpo, e Johnson finalmente olhou para sua esquerda, encontrando um Lewis em pânico e, assim como em 1987, o braço direito disparou em linha reta pelo ar, com dedo em riste em direção ao céu. “Inacreditável!… NOVE!… SETE!… NOVE!” gritava o narrador da emissora NBC Charlie Jones, quando o relógio parou quatro centésimos mais rápido que o recorde mundial.
Lewis e Christie também haviam registrado seus recordes pessoais, com 9.92 e 9.97. E Smith, em quarto, com 9.99. Foi a primeira vez que quatro homens tinham quebrado 10 segundos na mesma corrida. Os telespectadores pareciam unânimes em aceitar a afirmação de tinham presenciado a maior corrida de todos os tempos. E a rivalidade entre o americano e o canadense parecia ter chegado ao fim: para Charlie Francis, a vitória em 9.79 foi tão humilhante a Lewis que dificilmente alguém se interessaria em ver um novo confronto.

A REVIRAVOLTA. Nenhum grande nome nunca tinha testado positivo em Jogos Olímpicos até então. E ninguém pensou que isto estava prestes a mudar. Mas aconteceu quando o Comitê Olímpico informou a Charlie Francis que o exame de Ben Johnson possuía uma quantidade significativa de Stanolozol: 80 nanogramas por decilitro. Era uma quantidade fatal, Ben Johnson falaria anos mais tarde.
O teste foi refeito quatro vezes e apresentado um perfil endócrino de Johnson, com base nos exames negativos que ele tinha realizado em outras competições, um incipiente passaporte biológico dos dias de hoje. Com base nesse perfil, viu-se uma alteração considerável nas taxas hormonais do canadense. No entanto, em mais nenhum outro atleta esse perfil endócrino foi realizado, mesmo com a disponibilidade de exames. Por que?
Seria Ben Johnson um bode expiatório ideal para mostrar ao mundo que o COI e a IAAF estavam levando a sério o combate ao doping? Perguntas no ar e o fato concreto foi o anúncio oficial, em 27 de setembro pelo COI, da desclassificação e retirada da medalha das mãos do canadense. O ouro caiu nas mãos de Carl Lewis, que além de obter o bicampeonato olímpico, cumpriu a promessa feita a sua mãe um ano antes, ao enterrar seu pai segurando a sua medalha de 100 m de 1984: “Não se preocupe, ano que vem eu pegarei outra”.

POR QUE SÓ ELE? A questão que intriga atletas e especialistas até hoje não é se Johnson se dopava ou não, mas como ele se deixou ser pego no antidoping. Nenhum dos seus colegas de equipe medicados por Astaphan foram flagrados nos Jogos de 1988 e a quantidade de esteroide na sua urina leva à conclusão que ele tinha tomado horas antes da prova – e sabemos que esteroides não fazem um atleta mais rápido.
Ben e Charlie – que morreu em 2010 – sempre bateram na tecla da tese da sabotagem. Ao ficar na sala de antidoping, desidratado e ainda eufórico, Ben Johnson teve dificuldades em urinar, o que só foi possível depois de beber oito latas de cerveja levada por uma pessoa que não deveria estar ali: Andrew Jackson, amigo de faculdade de Carl Lewis.
Johnson afirmou, em entrevista recente, que, anos mais tarde, Jackson confessou ter colocado a substância na cerveja. No entanto, a única coisa comprovada é que ele realmente estava lá, por pressão do empresário de Carl Lewis, mas com outro motivo: monitorar se Ben Johnson não tomaria alguma substância que “mascarasse” o doping. O próprio Andrew Jackson é enigmático quando se trata desta suposição, com frases como “Talvez tenha feito, talvez não” e “Nada irá mudar o que aconteceu em Seul”.
Ante as teorias da conspiração, Ben Johnson, que sempre negou as acusações de doping, voltou no mesmo dia 27 de setembro para Toronto, onde foi humilhado e desumanizado publicamente pela opinião pública. O até então “herói canadense” passou a ser tratado como um imigrante jamaicano que usou daquela cidadania para envergonhar o país. Principalmente quando, enfim, confessou ter tomado substâncias ilícitas, desde 1981, a uma comissão de inquérito formada em seu país, para invest

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