9 de maio de 2024

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Blog do Corredor Maraturismo Redação 23 de dezembro de 2019 (0) (1902)

El Cruce: 100 km do Chile à Argentina, pelos Andes

Por Luciana Guilliod | @lucianaguilliod

El Cruce é uma corrida de montanha de aproximadamente 100 km desde o Chile até a Argentina. O percurso muda a cada ano e a prova sempre acontece no verão – o que, na Patagônia, não necessariamente significa calor, pois o tempo é bem instável. As paisagens são deslumbrantes e os corredores atravessam montanhas, passam ao lado de vulcões, por picos nevados, bosques, lagos, campos de lava e zonas rochosas. É possível fazer a prova na modalidade solo e em equipes de duas pessoas, que devem correr/caminhar juntas todo o trajeto.

A 18ª edição da prova aconteceu entre 4 e 8 de dezembro e a cidade sede foi a fofíssima San Martin de Los Andes, na Argentina. Participaram mais de dois mil corredores de 40 países. Os 100 km do El Cruce são divididos em três etapas de trinta e poucos quilômetros por dia, com uma altimetria que varia bastante.

Um dos grandes atrativos da corrida é apresentar um percurso diferente a cada ano. El Cruce é como aquele festival de música cujo ingresso é comprado sem que as bandas que vão tocar estejam anunciadas. É plena a confiança na organização do evento.

O evento vai além dos quilômetros da corrida: a experiência inclui traslados até os locais de largada, dois pernoites em acampamentos montados pela organização e várias refeições. Ao cruzar o pórtico de chegada, os corredores são recebidos com água, isotônico e um choripán (sanduíche típico de linguiça). Em seguida, devem pegar sua bolsa e seguir para a barraca, que já está montada.

Depois, segue ao gosto do freguês: você sente mais fome ou vontade de tomar banho? A estrutura é eficiente, mas espartana – os banheiros são químicos e não há chuveiros. A assepsia de corredores e equipamentos é feita com sabonetes biodegradáveis nos lagos que margeiam os acampamentos.

Não tem restaurante estrelado, mas de fome não se morre no Cruce: há sempre muita comida e bebida. O almoço e jantar consistem em churrasco (um fogo de chão maravilhosamente argentino), salada, pão e massa; e o café da manhã é composto por pão, medias lunas, iogurte, doce de leite, manteiga e café.

Os participantes têm direito a uma garrafa de 1,5 litro de água por dia e bebidas nas refeições. É possível comprar mais água e até cerveja. Há também uma estação para recarga da bateria do GPS.

A véspera da corrida

Adoraria dizer que fiquei descansando e me alimentando corretamente na pousada, mas passei o dia rodando San Martin para cumprir a rotina logística da inscrição, comprar algumas coisas e arrumar a infinidade de bolsas.

Na véspera da prova, eu tinha três malas diferentes: a da viagem inteira, que ficou na pousada; a bolsa que a organização transporta e a mochila de ataque. Carregador de celular? Escova e pasta de dentes? É preciso pensar em tudo para não ficar descoberta.

A gincana do Cruce começa com a “acreditación”, que é pré-agendada e consiste na retirada do número de peito, chip, pulseira e pagamento do saldo devedor da inscrição. De lá, fui ao clube retirar o kit (com camiseta, camisa de corrida, casaco e porta gel) e pegar alguns itens que havia alugado. Um sinal deveria ser pago em espécie como garantia – e corri para o caixa automático sacar dinheiro e em seguida, deixei as tralhas na pousada. Almocei e fui ao supermercado comprar itens de higiene pessoal e, admito, uns alfajores. Felizmente, San Martin de los Andes é pequena e uma gracinha de cidade: embora trabalhoso, o rolê não foi difícil ou cansativo.

O clima era tão informal e familiar que o congresso técnico foi em praça pública, com crianças andando de patinete no meio dos participantes sentados no chão. Uma pizza cumpriu o papel do carbload pré-prova – e pizza deve ser acompanhada por uma taça de vinho argentino, não?

Na mochila, itens obrigatórios

Negociei um café da manhã mais cedo na pousada e, conforme meu número de inscrição, me apresentei às 6h30 no Club Lácar. Há uma relação de itens obrigatórios que devem ser levados na mochila: gorro, vivisac (saco de dormir ultra portátil e térmico, para emergências), manta de sobrevivência e casaco impermeável. São proibidas embalagens de plástico. O material foi conferido pela organização antes do embarque nos ônibus que nos levariam até a largada, no Parque Nacional Lanin, a duas horas de San Martin de los Andes.

Ao som de uma banda marcial, os corredores largaram por ondas. Depois de dois quilômetros, começamos a contornar o vulcão Lanin, a grande estrela desta edição do El Cruce. A subida em single track era dura, mas compensada por uma vista extasiante. As subidas são o meu forte, mas não foi problema largar num pelotão intermediário: o caminho era tão diferente e majestoso que fiquei feliz em ir devagar e passar mais tempo apreciando o percurso. Acostumada ao clima tropical, tentava gravar em minhas retinas a visão do vulcão cônico coberto de neve.

Passamos vários quilômetros alternando pisos de neve, lava e pedras. Após alcançarmos um platô, veio uma descida curta e forte e daí para frente o percurso era mais ou menos plano – o que no Cruce, inclui travessia de riachos, lama e areia fina. A pouca variação altimétrica não significa que seja possível desenvolver velocidade.

O trajeto é selvagem e isolado. Não há qualquer construção ou moradores à vista. Nessa etapa, há pouquíssimos staffs, mas nos lugares certos. Tudo é muito bem sinalizado.

Os quilômetros finais foram numa estrada de terra e bateu até tristeza ao saber que a primeira etapa da corrida estava acabando. De qualquer forma, a vida no acampamento também é uma delícia: paisagem incrível, muita conversa ao redor do lago e um sol forte, que só se põe às 21h no verão patagônico. Após o jantar, conferi a classificação para saber em que onda largaria no dia seguinte.

Acordar com um vulcão, dormir com estrelas cadentes e rechear isso com corrida e churrasco? Será difícil voltar à realidade.

Cooperação, não competição

Largamos do acampamento, no segundo dia, então não foi preciso acordar muito cedo. Após o café da manhã, entreguei a bolsa à organização e me dirigi ao pórtico. A segunda etapa começou com uma subida forte, que engarrafou bastante o caminho estreito e levei uma hora para percorrer três quilômetros. Sem problemas. Ao contrário do triatlo, o ambiente da montanha é de cooperação, e não de competição.

A segunda etapa teve floresta fechada e muitos quilômetros acompanhando um riacho. Foi o trecho mais parecido aos locais onde treino no Rio. A primeira metade foi mais desafiadora e a segunda, bastante plana, com campos floridos, gramados e terra batida.

Um argentino pediu para me acompanhar e encaixamos ritmo e conversa por quase uma hora, até vir o segundo posto de hidratação (chamados de “oásis”) e minha gula ser maior que a dele. Com água, isotônico, frutas, chocolate, barras de cereal e torrones, os oásis merecem o nome que têm. Normalmente são dois e estão localizados do meio para o final de cada etapa.

Os quilômetros finais foram de dor e glória: o deslumbrante lago Huechulafquen e uma nova perspectiva do Lanin vieram acompanhados de sol forte, areia e pedregulhos, onde só consegui trotar.

Paisagens exclusivas

Com um gostinho de quarta-feira de cinzas na boca, fomos transportados por van por duas horas até o local de largada, no terceiro dia, em uma espécie de condomínio de luxo campestre.

Os quilômetros iniciais se passaram numa estrada de terra e foi necessário pular uma ou outra cerca do condomínio. Parecia que a etapa seria simples, mas o Cruce não parava de me surpreender. De repente, estava atravessando montanhas cobertas de neve para chegar num lago no meio da cordilheira e nem as imagens da organização fazem jus à grandiosidade daquilo. Paisagens que só se oferecem para quem chega ali a pé, encarando uma prova daquela.

Na metade da etapa, alcançamos um platô rochoso a partir do qual já dava para enxergar San Martin de Los Andes e dali em frente o caminho era uma descida em meio a bosques. Grande era a pressa em cruzar o pórtico de chegada e, ao mesmo tempo, a vontade que uma prova tão incrível não acabasse.

Mesmo em perímetro urbano, a organização deu um jeito de nos deixar longe do asfalto. Trilhas brotavam do nada e apenas os últimos 500 metros da corrida foram pavimentados. A chegada era na praça central de San Martin de Los Andes, onde não havia muito mais gente além dos atletas. Eu já havia estado ali várias vezes nos dias anteriores. Tudo tão igual, tudo tão diferente. Eu só conseguia sorrir.

Dicas para os interessados

Deixo algumas sugestões que facilitarão sua vida na prova e no camping: leve lenços umedecidos (para limpar mãos, objetos e, na pior das hipóteses, servir como banho); bateria externa para carregar GPS e celular (não há tomadas) e guloseimas (afinal, seu corpo precisa de um carinho depois de tanto esforço).

Em casa, separei as roupas e suplementos necessários em três bolsinhas organizadoras de mala, uma por dia de prova. Durante as etapas não precisei me preocupar com nada, além de transferi-los à bolsa que segue com a organização.

Por segurança, levei reposição de suplementos e bastante água, que não foram usados e poderia ter corrido com menos peso.

Amigos me disseram que bastões de trekking eram desnecessários, não os levei e faria diferente. Catava galhos para ajudar nas subidas e os descartava nas descidas, mas senti falta de algo mais adequado. Também levaria álcool gel e pregadores de roupas, para improvisar um varal na barraca.

Levei uma toalha de microfibra bem funcional, mas negociei com a pousada o empréstimo de uma toalha de verdade, branquinha e felpuda. Quer saber? Depois de 30 km e o banho num lago a 12 graus, precisava mesmo é ser envolvida por tecido de verdade.

O meu Cruce de Los Andes

As expectativas eram altas, e incrivelmente foram superadas. A organização do Cruce é impecável: o kit é de boa qualidade, os banheiros químicos são limpos, as filas andam rápido, os horários são cumpridos, os traslados são eficientes.

Mas há aquilo que não esperava, que é o que faz do Cruce não apenas uma boa prova, mas uma experiência inesquecível: o abraço caloroso dos voluntários na chegada; o lago do acampamento que oferece banho, lavanderia, crioterapia e sala de estar; os amigos de infância que você faz pelo caminho e nunca mais encontrará. Se você busca apenas o carimbo de ultramaratonista, há opções mais fáceis. O Cruce deve ser desfrutado não somente durante os quilômetros do percurso, mas em toda a completude da vida na montanha.

Os percursos são surpreendentes e a vivência é intensa. Uma intensidade que não vivo no centro da cidade, no cotidiano das planilhas, relatórios e planos estratégicos do trabalho. Parece um paradoxo, mas achei o Cruce relaxante: ele é o oposto à vida na metrópole. É um microcosmos onde tudo que faço é correr, contemplar a natureza, comer e descansar. Foi uma desconexão do cotidiano e conexão comigo mesma.

Porque esporte, para mim, é menos sobre performance que sobre as sensações que ele traz. É experimentar, assumir riscos, aprender, cair e levantar. Pode incluir uma viagem, mas é sempre uma jornada.

Em dezembro, meus picos e vales não foram apenas geográficos. Os últimos meses pediram reflexão e resignificação, e na véspera da prova acordei com uma notícia super desagradável, que veio coroar um ano difícil. Eu tinha duas opções: lamentar pelo que viria em 2020 ou viver um dia de cada vez. E os últimos dias estavam sendo incríveis.

A montanha ensina a calibrar expectativas de tempo, ter paciência, ceder a vez, se perder, se achar e recalcular a rota. Também ensina que depois de uma subida dura, há uma bela paisagem. Nos Andes, as coisas ganham outra magnitude. Cada uma delas tem seu lugar, mas nenhuma é maior que a beleza de curtir a jornada.

Mais informações em www.elcrucecolumbia.com. A inscrição em 2019 custou 680 dólares e não é difícil de ser feita.

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