19 de maio de 2024

Contato

História Redação 15 de junho de 2018 (0) (126)

O PRIMEIRO BOOM DE CORRIDAS NO BRASIL PARTE 2 – 1993 – 2003

por Nelton Araújo

A corrida no Brasil no início dos anos 90 parecia ter retrocedido no tempo, onde havia pouquíssima divulgação, colocando o pedestrianismo bem à margem dos esportes praticados no país. Os jornais, que outrora davam páginas para a cobertura das principais maratonas nos anos 80, agora, no máximo publicavam breves citações de eventos ocorridos ali e acolá, sobretudo se fosse uma prova classificatória para a São Silvestre. Esta ainda vingava em popularidade, principalmente por conta da transmissão da TV e a mudança do horário, saindo da hora da virada do ano para a tarde.
No entanto, se nos fixarmos apenas em como a imprensa cobria os eventos de corrida nessa época, iremos cair no erro de se tomar o todo pela parte. Se, de fato, não havia tanta divulgação por parte da grande imprensa, o pedestrianismo estava consolidado. Contudo, com o crescimento de provas de menores distâncias, e a virada de pensamento de que correr uma maratona era condição indispensável para se sentir um “corredor de verdade”, espalharam os corredores para todos os lados.
Um dos principais exemplos, para não dizer o principal, era o crescimento dos 10 km Tribuna FM, em Santos. E as próprias maratonas no Brasil ainda tinham um público fiel, que se transferiu para o eixo sul do país. Se Rio de Janeiro e São Paulo estavam em seus anos sabáticos de maratona, Porto Alegre, que caminhava para sua décima edição, e Blumenau, criada em finais da década de 1980, passaram a ser as principais corridas de 42 km, intactas ao fim do boom da corrida da década anterior. O que não significa afirmar que eram provas de qualidade.
Elementos básicos numa prova simples nos dias de hoje, como aferição do percurso, medalha, hidratação, e até banheiros químicos, nem sempre estavam presentes nas provas no início dos anos 90. Tanto é que a grande novidade da São Silvestre, então já chancelada como “Corrida Internacional” e integrante do calendário da IAAF, e com os 15 km devidamente aferidos teve, apenas em 1995, a introdução dos banheiros químicos, dada a pressão dos corredores e dos moradores da Avenida Paulista, que não suportavam mais a visão grotesca de homens e mulheres se abaixando e urinando enquanto esperavam a largada.

POUCA INFORMAÇÃO. Curioso é refletir e se perguntar como as informações sobre essas provas chegavam aos corredores se pouquíssimo espaço era dado a elas na grande imprensa, e mesmo assim tínhamos provas com 1.500, 2.000 corredores inscritos. Com exceção de provas ligadas diretamente a algum grupo de comunicação, que divulgava constantemente em suas páginas, exemplo dos 10 km A Tribuna, organizado pelo jornal de mesmo nome, havia outras formas dessas informações chegarem. Não era raro o incentivo dessas competições nas academias, dando prêmio para aquela que levava mais inscritos, o que fazia com que esses locais fossem espaço de incentivo para os primeiros passos de um corredor, e era mais econômico que pagar por um anúncio no caderno de esportes. E também há aquelas provas que já tinham se consolidado a tal ponto, que não era preciso muito esforço para se divulgar. Caso da São Silvestre, ou da Corrida de São Sebastião, no Rio de Janeiro, a Volta da USP e o Circuito Corpore, que era uma das poucas referências de qualidade no panorama brasileiro de corridas de rua.
Ainda assim, fica uma lacuna, porque não havia publicação alguma específica para os corredores, que desde julho de 1985 não contavam mais com a Revista Viva, que simplesmente parou de ser publicada sem mais delongas. Algumas outras de muito menor alcance e de curtíssima duração apareceram e sumiram rapidamente nesse ínterim, o que desestimulava quem pensasse em produzir alguma publicação do gênero, pois havia um estigma de que corredores eram um grupo que não gostava de ler, seja revista, seja livro, ou matéria de jornal, e era por isso que as tentativas anteriores tinham sucumbido ao fracasso, uma visão rasteira que logo se mostraria falsa.
Era justamente a falta de um elo que ligasse todos os corredores do Brasil, e que nos anos 80 estava nas mãos da Maratona do Rio e da coluna, no Jornal do Brasil, de José Inácio Werneck (que depois daria continuidade na Revista Viva), que dava a impressão de que estavam todos dispersos, conformados com a falta de informações e mesmo de formas de defender demandas de seu interesse. Ou seja, era necessário alguém ou algo que se tornasse o “porta-voz” dos corredores, em todos os sentidos. As pequenas publicações não lograram êxito justamente porque não se propuseram a ocupar essa posição, dando informações curtas sobre provas da sua região. Fazia-se necessário um passo além, ousado, tal qual Werneck e o JB tinham realizado na década anterior.

SURGE A CONTRA-RELÓGIO. É nesse cenário que temos o surgimento da aniversariante deste mês, a revista Contra-Relógio, do seu fundador e editor Tomaz Lourenço. Ele, que tinha uma vida esportiva voltada ao ciclismo, e começara a correr para ganhar condicionamento físico, perguntava-se justamente como era possível um esporte, mesmo que amador, possuir um contingente expressivo de atletas e nenhuma forma de representação, como uma revista. Um projeto de revista estava em sua cabeça desde 1990 e foi para o papel em início de 1993, quando um incidente logístico (o ônibus da sua equipe errou o caminho e chegou atrasado para a largada) tirou o sonho de um sub 3 horas na Maratona de Blumenau, para qual tinha treinado por um ano.
Ao mesmo tempo em que se inteirava sobre a criação de uma revista, Tomaz entrava em contato com organizadoras sobre calendário e resultados de suas competições e, antes mesmo do lançamento da primeira edição, mandava cartas para vários grupos querendo saber sobre pautas a serem discutidas, bem como o interesse em fazer a assinatura da revista, haja visto que no seu início era extremamente dispendioso aumentar sua produção e todos os trâmites para se colocar nas bancas de jornal. Em seus panfletos, uma das frases era a síntese de seu pensamento “Somos milhares e merecemos uma revista especializada!”
Assim, em outubro de 1993 era lançada a primeira CR, com um corpo editorial de respeito, incluindo Ayrton Ferreira na preparação atlética e Henrique Vianna, treinador da Pé de Vento, na área de medicina desportiva. A revista já contava com centenas de assinantes, de várias partes do Brasil, como podemos ver na sessão de cartas da primeira edição, desmitificando a antiga ideia de que corredor não gosta de ler.

INFORMAÇÃO E RESPEITO. Em seu primeiro editorial, Tomaz Lourenço já lançava as bases de sua linha editorial, ao dizer que “A Contra-Relógio surge com o objetivo de congregar esse imenso grupo, passar-lhe informação e dar à corrida e aos corredores sua devida importância”. Tal linha editorial pode ser dividida em duas áreas. Buscava-se suprir a curiosidade sobre o mundo dos atletas de elite, como sobre o soro que os maratonistas tomam durante a prova, os diversos tipos de treinamento da elite ou mesmo a dieta das atletas chinesas, na época, a principal força no atletismo feminino.
Porém, a revista buscava levar informações, suprindo a necessidade dos leitores sobre calendário de provas (nada existia nesse sentido, até então), coberturas das principais aqui e no exterior, o que fomentava interesse em participar de uma corrida no exterior. Bem como periódicos Guia do Tênis, matérias de saúde, fisiologia e nutrição. Todas voltadas para o atleta amador e até com uma linguagem mais rebuscada do que é observado hoje, muito provavelmente porque a revista estava voltada para o corredor já com um nível básico, e não um iniciante, que hoje é motivado a correr muito mais por uma questão de estética e moda do que necessariamente pelo prazer proporcionado por essa atividade física em si.
As coberturas de prova eram acompanhadas de uma listagem de elementos essenciais para uma boa corrida, como banheiros químicos, aferição, hidratação, participação do público, e a forma de avaliação era um polegar para cima ou para baixo dado pelo autor do texto, que, na grande maioria das vezes, tinha participado da competição.
A linguagem do periódico, observado, sobretudo, nos editoriais, era de informalidade, querendo mostrar a igualdade entre editor e leitor. Ao ler as primeiras edições, você se sente como que acompanhando a forma que a revista está crescendo, quais os principais problemas, a alegria das novidades ou do aumento da publicidade. Tudo de forma transparente, mostrando que a Contra-Relógio precisava, sobretudo, da participação do leitor para crescer e consolidar-se.
Destacavam-se também os treinamentos para as principais provas como a São Silvestre e depois para maratonas como a de Brasília e de Porto Alegre, orientados por Ayrton Ferreira, em uma época que treinadores e equipes eram raros, mesmo nas grandes cidades. Mais à frente começou-se a publicar os resultados completos de algumas grandes provas e logo depois a se produzir um ranking tanto dos atletas elites, em colaboração com a CBAt (Confederação Brasileira de Atletismo), como também dos melhores maratonistas amadores nas provas brasileiras, disponibilizando a eles um diploma que o confirmava dentro dessa lista, ação que permanece até hoje.
Não obstante abordar outras distâncias, o foco da Contra-Relógio sempre esteve sobre os 42 km, e capas como a de fevereiro de 1994, cujo título é “Comece a sonhar com o desafio da maratona”, dava a exata dimensão de um dos objetivos da revista: o resgate do fascínio e do prestígio de se treinar e participar de uma maratona.

BANDEIRAS DA CR. A segunda área de atuação está no que pode ser chamada de “bandeiras” que a revista levanta ao longo dos anos. Aqui a questão não reside apenas em uma informação objetiva, um dado pronto, mas sim o discurso em prol dos interesses dos seus leitores. O fato da revista ter sido criada não somente por interesses econômicos, por alguém que também praticava a atividade e sempre receber muito bem as sugestões e críticas dos leitores, faz com que as demandas defendidas possam ser consideradas legítimas. Tais como respeito ao horário de largada, equipe de saúde presente, tráfego controlado, chegadas não tumultuadas.
E também a exigência de banheiros químicos que, a partir do momento que se conseguiu a instalação na maior prova do Brasil, a São Silvestre, em 1995, não somente por força dos moradores da Avenida Paulista, mas também pela força dos corredores, que ecoando pela revista, conseguiu abrir os olhos para todas as organizações em ter cuidado com a colocação desse serviço indispensável.
Outra das bandeiras da CR, em parceria com a CBAt (da qual o editor chegou a ser diretor de Corridas de Rua), foi a necessidade de aferição das provas, que logo teve ótima repercussão. Haja vista, por exemplo, na cobertura em 1996 da já então maior prova de 10 km do Brasil, A Tribuna, de Santos, quando a revista levantou dúvidas sobre a distância real, indicando que ela seria um pouco menor que a proclamada, daí não terem credibilidade as marcas. Ronaldo da Costa havia conquistado seu bicampeonato com o tempo de 28:20 e a jovem Márcia Narloch venceu com 33:49, sendo que, dois dias antes, ambos tinham competido no Troféu Brasil e fizeram tempos nos 10.000 metros bem mais altos em relação à prova santista, mesmo correndo em pista! No ano seguinte, a organização dava como grande novidade a aferição oficial pela CBAt, fazendo questão de publicar o certificado de homologação desta instituição.

NOVOS TEMPOS. Se em outubro de 1993, Tomaz Lourenço dizia, com razão, que não saía na grande imprensa uma única linha sequer sobre as corridas brasileiras, a partir de 1994 a roda recomeçou a girar favoravelmente. Timidamente, ao longo de 1993, notícias iam sendo divulgadas com maior expressão para além da São Silvestre, como o terceiro lugar de Carmem de Oliveira em Boston, ou a vitória de Joseildo Rocha na maratona de Los Angeles, ainda que ignorando quase que solenemente as vitórias de Luis Antônio dos Santos em Chicago em 1993 e 1994.
Mas a vitória de Ronaldo da Costa na São Silvestre de 1994, acabando com um jejum de quase dez anos de vitórias brasileiras na prova, bem como o anúncio da criação da Maratona Internacional de São Paulo, e seus preparativos, colocou de volta o pedestrianismo às colunas esportivas, exibindo, então, o perfil dos principais maratonistas brasileiros, bem como matérias falando de pessoas comuns que resolveram correr sua primeira maratona, mostrando-os como exemplo de superação. A primeira edição da prova, em 1995, contou com a transmissão da TV, aumentando assim a repercussão do espetáculo e fazendo com que muitos saíssem de casa e fizessem seu primeiro trote no dia seguinte, inspirados pelas imagens vistas no dia anterior.
Ainda bem longe do seu devido reconhecimento midiático, o segundo esporte mais praticado pelos brasileiros a partir da segunda metade da década de 90 saía da cortina que esfumaçava sua presença. Organizadores começaram a ver na Contra-Relógio uma ótima opção de divulgação de suas provas, não tão dispendiosa como na grande imprensa. Uma vez anunciado, mais pessoas compareciam aos eventos, o que fomentava o interesse e o entusiasmo em organizar mais competições.
A revista, que continuava sendo a única publicação no segmento, dava contribuição substancial em fornecer amplo material de informação, planilhas de treino, em uma época onde assessorias ainda eram raras mesmo nos grandes centros, e sua cobertura, ao dizer o que era bom e ruim em cada prova, estabelecia parâmetros de comparação para os corredores, sobretudo os que estavam iniciando a prática, sem deixar de fazer críticas e sugestões aos organizadores. Alguns não entendiam as boas intenções da CR, que visavam apenas melhor qualidade técnica dos eventos e ações que respeitassem e valorizassem os participantes, e a revista chegou a ser processada e muito criticada por aqueles que não viam que os tempos estavam mudando.

MAIS E MELHOR. Como resultado dessas atitudes da CR e de sua própria existência, a corrida de rua foi novamente deslanchando, agora com mais ênfase na capital paulista do que no Rio. E, diferentemente da primeira fase, nos anos 80, ela evoluía em tamanho e em técnica, com corredores mais conscientes de seus direitos em relação à estrutura da competição. A maratona de São Paulo se firmava, a do Rio renascia, a de Brasília se fortalecia, e a prova santista já contava com mais de 10 mil participantes e só perdia para a tradicional São Silvestre. Também merece destaque o surgimento, em 1993, da Maratona Pão de Açúcar de Revezamento, na cidade de São Paulo, que cresceria de forma exponencial nos anos seguintes e se transformaria em exemplo e motivação para outras semelhantes.
Por outro lado, começava a se fortalecer o interesse em correr no exterior e, sobretudo, trazer as experiências e o padrão observados lá fora para as provas daqui. A Maratona de Nova York era sem dúvida o sonho maior, mas outras passaram a atrair interesse dos brasileiros.
A internet chegou e fez a corrida dar outro boom no início do segundo milênio. Surgiram sites especializados, pessoas influenciadoras, grupos de corrida se formaram, treinadores se multiplicaram, assim como inúmeras novas provas e organizadores. Os tempos de corridas com inscrição gratuita, então comuns até os anos 90, estavam com os dias contados. Também o público mudava, de melhor renda, mais exigente, porém menos preocupado com performance.
Naturalmente, outras publicações do segmento nasceram, mas somente dez anos depois da primeira edição da Contra-Relógio. Logo, é impossível deixar de se afirmar que essa revista tem um peso enorme na revitalização das corridas de rua a partir de 1993. Por dez anos ela fora a principal diretriz, a principal fonte de informação e tutora dos atletas, em níveis atléticos e mesmo comportamentais. E, mais que isso, se colocou como porta-voz dos mesmos aos organizadores, levando, a partir dessa dialética, as provas para outro patamar.
Da mesma forma que a Viva e a atuação de José Inácio Werneck foram fundamentais para o boom dos anos 1980, incentivando e reunindo uma massa de corredores em um propósito comum, não há como negar que o segundo crescimento das corridas no Brasil e o que somos hoje só foi possível por conta das palavras e ações da revista. Ou, como os próprios leitores escreviam para a revista, “as corridas no Brasil se dividem entre antes e depois da Contra-Relógio”.

Veja também

Leave a comment