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História Redação 31 de março de 2018 (0) (641)

Em 1921, a primeira maratona no Brasil

por Nelton Araújo

A SP City Marathon, que cortou a cidade no último dia 29 de julho, é um dos vários eventos de 42 km que ocorreram na história da capital paulista e cuja origem veio de um evento que precedeu e inspirou a São Silvestre. Vejam os bastidores da primeira maratona em terras brasileiras, a “Marathona Paulista”.

Não apenas o futebol foi importado da coroa britânica para o Brasil no século 19. Na verdade, logo após a independência, em 1822, parte das elites começaram a adotar certos hábitos da Inglaterra, que iam desde o uso de expressões do idioma britânico, passando pelo consumo de chá quente ao invés de suco de fruta, e chegando às práticas esportivas.

Antes da proclamação da república, em 1889, o turfe e o remo já eram presenças certas na capital federal, o Rio de Janeiro. Estudantes brasileiros que voltavam da Europa (como aquele Charles Miller), e funcionários das indústrias britânicas que se estabeleciam no Rio de Janeiro e São Paulo, acabaram contribuindo para uma “cultura esportiva”, relacionada com superação, mas também com higiene e saúde. Envolvia modalidades como o ciclismo, a natação, o já citado remo, e mesmo o nosso conhecido futebol.

O atletismo também, mas em linhas tortas; era quase uma brincadeira organizada pelos ingleses que viviam na capital. O que se prova pelo seu divertido e não menos inusitado programa, que incluíam categorias com o uso de sacos de estopa ou mesmo pernas de pau.

Em São Paulo, nesse mesmo período, o pedestrianismo se desenvolveu de forma mais séria, possuindo até uma pista “oficial” de realização de competições, nas instalações do Velódromo do Clube de Corridas Paulistano. Localizada ao redor da rua da Consolação, pertencia à família de Antônio Prado, prefeito da cidade de 1899 até 1911 e um dos maiores nomes da modernização da cidade, o que incluía novas práticas esportivas, principalmente de matriz europeia. Quando, em 1916, o prefeito Washington Luís desapropriou o velódromo, considerado, então, a “célula mater do athletismo paulista”, o pedestrianismo já tinha se consolidado na cidade.

Enquanto no Rio de Janeiro se publicava um manifesto, em 1913, que demandava que fosse “considerada a Marathona no Brasil a prova de 10.000 metros”, dada a impraticabilidade climática da capital, em São Paulo mais eventos para os “pedestrianos” eram organizados. É bom sempre lembrar que esses eventos até 1980, apesar de serem abertos aos “amadores”, não eram eventos de massas, como são hoje: o número de participantes não passava de 60, os quais eram obrigatoriamente ligados a algum clube.

 

TAÇA ESTADINHO. Essa foi a quantidade máxima de inscritos de um dos eventos mais clássicos que antecederam a São Silvestre: a “Volta de SP”, ou, como melhor conheciam, a “Taça Estadinho”. Para os íntimos, apenas “Estadinho”. Organizada pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, a competição foi disputada pela primeira vez em outubro de 1918, com o objetivo, segundo o jornal, de levar “o pedestrianismo a sério”. Assim, homens (somente eles), entre 18 e 33 anos, podiam se inscrever gratuitamente para correr os 25 quilômetros nas ruas da cidade, com chegada na Avenida Paulista.

Um mês depois realização da “Volta de S. Paulo”, os embates da Primeira Grande Guerra se esgotaram. E dois anos depois o mundo voltava a se encontrar para uma outra batalha, só que por outros meios: os Jogos Olímpicos, que retornariam a ser realizados na Antuérpia, depois de oito anos em silêncio.  E foi também quando o Brasil, mesmo sem possuir de fato um Comitê Olímpico, iniciou sua participação. Apesar de voltar da cidade belga com três medalhas no Tiro, e ter levado equipes no Remo, Polo Aquático e Natação, não tivera estrutura para qualificar alguém no Atletismo, estando atrás de países sul-americanos, em especial o Chile, primeiro país do continente a enviar atletas para a maratona olímpica em 1912 e 1920.

Logo após os Jogos, começaram por aqui as reuniões pensando no desenvolvimento das modalidades olímpicas no país, já visando os Jogos de 1924, que aconteceriam em Paris. E, de imediato, a “Associação Paulista de Esportes Athléticos” (APEA), colocou-se como órgão principal em prol do pedestrianismo brasileiro. É aqui que começa a inspiração de fazer de fato uma maratona em São Paulo, quando, em abril de 1921, a Comissão de Educação Física da APEA recomendou a criação de uma prova desse gênero, para atrair, deslumbrar e estimular novos praticantes. Contudo, deveria ser feita em estrada, e sob seus auspícios, ainda naquele ano.

A MARATHONA PAULISTA. Mesmo que a APEA fosse, de natureza, uma entidade dirigente de Futebol, e que tutelava, sem dedicação exclusiva, outras atividades esportivas, a opinião pública aplaudiu a ideia. Exemplo é o editorial publicado pelo jornal paulista “A Gazeta”, logo após a reunião que bateu o martelo para que a “I Marathona Paulista” acontecesse no dia 14 de agosto de 1921. O texto afirmava que a realização deste evento seria fundamental para o espírito esportivo do brasileiro médio, já que, para muitos dos nossos, o Brasil era um pais sem aptidão para “grandes esforços” no pedestrianismo.

Era uma resposta direta aos jornais cariocas que, anos antes, diziam que uma maratona de distância igual à dos Jogos Olímpicos era impossível por aqui, e que insistiam que, se o atletismo quisesse vingar por essas bandas, deveriam focar em corridas “mínimas”, de cem a quinhentos metros na pista, e provas de rua de três a cinco quilômetros. Só que, para o editor, a história dos “matutos”, dos bandeirantes, Jeca Tatu, Borba Gato, os Anhanguera e Garibaldi, só estimulava seu povo para que tivesse “uma prova de resistência physica de grande alcance ”.

Não estranha que, quatro anos depois, o proprietário do periódico, Casper Líbero, viesse da França com ideias que consolidaram na criação daquela que se tornaria a mais tradicional corrida no Brasil (ou, para os críticos, a maior celebração da corrida de rua no Brasil sem corrida. Ou, aos mais críticos ainda, a anti-corrida), a São Silvestre.

Os jornais paulistas seguiram o mesmo tom, muitos deles afirmando ser a “Marathona Paulista” a primeira do gênero não só no Brasil como na América do Sul, um óbvio exagero de quem já tinha reportado, em 1914, uma “corrida de marathona” no Paraguai, da capital Assunção até a cidade de Pacaray, e de um campeonato do mesmo gênero em Santiago, em 1918.

Apesar das hipérboles, ao longo dos meses os jornais foram dando os recortes que nos permitem saber como foi realizada a prova. O percurso logo foi definido, e, buscando ser parecido com os trajetos das maratonas olímpicas, foi feita em estrada. Mais precisamente na “Estrada de Rodagem S. Paulo – Campinas” (berço da atual Rodovia dos Bandeirantes), largando do km 42 da estrada e chegando até o estacionamento do estádio do Palestra Itália.

O trajeto possuiria doze descidas, “mais ou menos brandas”, e dez subidas, algumas delas, “regularmente pesadas” e era “ideal”, segundo os especialistas nos periódicos, para os automóveis, motocicletas, bicicletas que acompanhariam os concorrentes, já que, com a previsão de largada às 8 da manhã, com menor movimentação de carros, não haveria possibilidade da “estrada se asfixiar” com os gazes da combustão dos veículos a motor, bem como a da poeira de um percurso de terra batida, como tinha acontecido na maratona olímpica na cidade americana de St. Louis, em 1904.

PERCURSO DE 42.759 M. Os atletas percorreriam 42,750 km; a institucionalização dos 42,195 km pela IAAF aconteceu três meses antes da maratona paulista. Só que a APEA não era uma entidade de atletismo em si, e resolveram reproduzir um evento que mimetizava a distância da maratona olímpica de 1920. Ao longo da distância mais longa da história das maratonas olímpicas, a APEA ofereceria um banquete aos atletas, mas não antes e, tampouco, depois da prova: durante.  O cardápio oferecido: café e chá quente, limão, laranja, suco de uva, pequenas doses de conhaque, vinho do porto, whisky, para repor o esforço dos 26 “pedestrianos” federados na APEA e com mais de 21 anos, que se registraram para a competição. Seis desses nem compareceram na largada.

Todos tiveram que levar atestados médicos no dia, para provar que poderiam correr sem prejuízo à saúde. Dos oito clubes que representavam, cinco eram da capital paulista e apenas dois existem até hoje: o Esperia e o Germânia (hoje Pinheiros). De fora da capital, vieram apenas atletas do Santos F.C. e do XV de Piracicaba. E o mais inusitado foi a inscrição de dois atletas do Mikado Athletic Baseball Association, a primeira agremiação fundada, um ano antes, por japoneses para organizar suas partidas de, sim, beisebol, na capital paulista e acabaram por expandir as suas práticas esportivas.

Tais clubes, além de emprestar suas flâmulas para a festiva recepção no Parque Antártica aos “marathonomacos” (o nome que eles diziam que os gregos dão aos corredores de maratonas e que, amém, nunca pegou por aqui), proveriam agasalhos aos atletas na chegada ou durante o percurso, em caso de desistência. Já os cinco primeiros colocados receberiam um diploma de conclusão, e o grande campeão não receberia quantia alguma, já que feria o estatuto do amador: a ele, apenas “as honras e regalias” de recordista – afinal, seria o primeiro recordista brasileiro de maratona – e o convite para participar de uma maratona de comemoração do Centenário da Independência Nacional, no ano seguinte, na então cidade avessa à “marathona integral”, o Rio de Janeiro.

Já passava das 11h20 da manhã naquele 14 de agosto de 1921. É bem documentado o silêncio das cinco mil pessoas que enchiam as arquibancadas da praça de esporte do Palestra Itália. Durante a manhã, foram entretidos pela competição de corridas rasas e revezamentos das escolas secundárias, porém aguardavam o momento sublime, no último trecho do caminho dos maratonistas, a Avenida Água Branca.

Matheus Marcondes era o principal favorito para a prova. Na verdade, o jovem negro de olhos azuis de 17 anos era o queridinho da imprensa que, ao contrário do futebol na época, não via problemas da presença de negros no atletismo, desde que lhe dessem resultados e uma esperança olímpica. Abrindo uma exceção ao regulamento, correu a primeira Volta de S. Paulo, com menos de 15 anos, chegando em segundo lugar. E por outra brecha do regulamento, inscrevera-se na primeira maratona de sua vida.  E o “popular corredor negro”, como reportavam, meio que para descrever, meio que para estereotipar, tomou logo à dianteira. A cada quilômetro, se distanciava dos dois japoneses, de Roberto Costa, do Brasil E.C., e de Alfredo Gomes, representando a Sociedade Esportiva Paulista.

QUEBRADEIRA. Se você for um leitor assíduo da nossa revista, sabe que, em geral, o primeiro e maior problema do maratonista de primeira viagem é não saber dosar seu ritmo, quebrando no final. Não seria diferente com “l’uomo del sorriso”, que trabalhava de dia numa fábrica de doces em conserva e à noite treinava na Associação Athlética Sul-América. Marcondes não tinha a precisão do esforço a desenvolver, tampouco tinha a estrutura dos vencedores olímpicos da época, que, tal como os ciclistas de então, tinham um staff em alguns pontos do percurso para lhe dizer se estava certo o seu “quadro marcha”, a maneira que eles chamavam o pace em 1921.

A comparação de ritmo não só de Marcondes, mas de todos os corredores, era com que eles faziam de mais longo, no caso, a “Taça Estadinho”, que possuía um percurso entre 20 a 25 km. Só que, atacando as subidas da Estrada S. Paulo-Campinas e não descansando nas descidas, pouco adiantou ao homem que viria a ser o principal nome do atletismo paulista nos anos 1920 colocar um quilômetro de distância ao pelotão que vinha atrás, pois na altura da cidade de Pirituba foi diminuindo o seu ritmo, até que, no km 30, entrou no carro da organização.

Já Alfredo Gomes e Roberto Costa, que herdaram a liderança de Marcondes, iriam sofrer pelas péssimas condições da estrada. Sim, é verdade que os jornais venderam o percurso como “uma das nossas melhores, senão a melhor estrada construída até agora no Estado”. Só que durante a prova, os repórteres constatavam o óbvio: “os atletas correram por estradas bizarras pelo pitoresco dos morros, das baixadas, o que nos dá a impressão de uma escalada ao Monte Branco ou ao Pão de Açúcar”.

Só que a reclamação maior era quanto a densa nuvem de poeira e de gazes da combustão de motos e carros, que, com a altimetria desnivelada da estrada, tornaram as coisas mais difíceis no último terço da prova, quando aumentou o número de veículos de curiosos que vinham da capital para estreitar ainda mais rodovia para os atletas. A quebradeira começou e dos 20 atletas que largaram, apenas 10 decidiram ir até o fim naquelas condições.

Enquanto Alfredo Gomes era o recordista brasileiro da Corrida de 1 Hora, percorrendo 16 quilômetros e 54 metros, na pista do Club Esperia dois meses antes, Roberto Costa tinha, ao seu lado, o irmão Bertholdo, inscrito para correr ao seu lado, o que não era uma novidade no mundo paulista da corrida de rua.

No km 29, os irmãos Costa já tinham colocado uma boa diferença a Alfredo Gomes, enervado e “asfixiado com poeira dos gazes dos automóveis e motocyclistas”. Alguns quilômetros depois, Bertholdo viu que não conseguiria completar o percurso e foi esperar para ver o triunfo de Roberto de dentro do Parque Antártica.

Se pareceu a algum membro, por um segundo, que a “I Marathona Paulista” pudesse ver o primeiro brasileiro batendo o recorde mundial (à época de 2:32:35), isso se foi quando o atleta do Brasil E.C. irrompeu o silêncio do estádio do Palestra Itália. Surgindo na avenida Água Branca atrás de fileiras e fileiras de automóveis, motocicletas e bicicletas, além dos trinta policiais, entre infantes e cavalheiros, Roberto Costa surgia embranquecido pela nuvem de poeira e exaurido dos 42,750 km.

 

ENFIM, A CHEGADA. Então, o “jovem Spiridon Louis” tupiniquim – sim, batizaram ele desta forma – entrou pela passagem destinada aos veículos e concluiu a maratona, com o tempo de 3:15:15 (tempo 17 minutos mais lento que o grego em 1896). Mal pode respirar e já recebeu sua coroa de louros.

Seis minutos depois, enquanto Costa é carregado pelo público, Alfredo Gomes chega à linha final. Dois dias depois, quando o Estado de S. Paulo se propôs a avaliar a prova tecnicamente, concluiu que a Marathona era superior à capacidade de corredor de Gomes, para eles “invencível nas distâncias de 5 a 18 mil metros”. De certa maneira, o segundo colocado da “Marathona Paulista” ouviu o conselho do jornal em “desistir das provas de grande resistência, para se dedicar às de meia resistência”, pois, fazendo carreira nos 5.000 m e em provas de cross-country, fez parte da primeira delegação de atletismo olímpico brasileira, em 1924, e foi o campeão da primeira edição da “Corrida de São Silvestre”, em 1925.

Mas foi a definição do terceiro lugar, um minuto depois da chegada de Alfredo Gomes, que trouxe emoção à arquibancada. Antônio Alexandre da Silva, do Esperia e Ildefonso Augusto de Oliveira, do Santos, travaram uma luta até o final, quando um dos inúmeros carros que aglomerava a chegada, fechou o atleta do Santos, que não fez se fez de vítima, pulou e saiu num sprint. Não, a história não teve um desfecho justo: Ildefonso não conseguiu ultrapassar Antônio, e chegou em quarto lugar por três segundos. Carmindo Silva, outro atleta do Brasil, completou o pódio.

A primeira “Marathona Paulista” foi considerada um sucesso, inspirando os dirigentes cariocas a criar a “Marathona de Centenário”, em setembro de 1922 no Rio. A delegação brasileira era composta por Roberto Costa, Matheus Marcondes e Idelfonso Augusto, versus os maratonistas chilenos. Se a primeira competição da então Capital Federal fez os brasileiros amargarem as últimas colocações, retirou a ideia de que uma maratona de 42 km era impossível na cidade e passou a integrar o programa de modalidades esportivas dos principais clubes cariocas. Bem como inspirou a continuidade do “Estadinho” e a criação de outras provas, como a São Silvestre.

A “Marathona Paulista” reapareceu de 1925 até 1929, quando então foi delegada ao esquecimento. Nesse período, a prova passou a ser disputada na estrada que levava de São Paulo até Mogi das Cruzes e, a partir de 1926, em definitivo, na estrada que levava até a Capital Federal. Foi quando Matheus Marcondes se tornou tetracampeão e se estabeleceu como o grande nome do pedestrianismo no Brasil. Porém, só conseguiu ir aos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles.

Em meio à crise econômica, passou duas semanas dentro do navio da delegação olímpica brasileira tentando vender saco de café para poder pagar sua entrada nos EUA. Conseguiu, mas não teve energia para completar a prova, vendo o argentino Juan Carlos Zabala ser o primeiro sul-americano a vencer uma maratona olímpica. Bem como o maior nome do atletismo paulista viu João Clemente da Silva, um carioca que competia pelo Flamengo, ser o primeiro brasileiro a completar uma maratona olímpica – uma das maiores ironias da história do atletismo no Brasil.

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