Que treino e alimentação são importante para a performance não se discute. O que ninguém sabe ao certo, apesar de muitos acharem que sabem, é exatamente como combiná-los. As ciências do treinamento e da nutrição estão cheias de teorias e modelos que se tornaram mundialmente populares, para meses ou anos depois serem desmistificados e esquecidos. É preciso humildade para reconhecer os erros e aceitar uma nova escola de pensamento, e seguir as novas evidências em direção à melhora da performance.
Uma das práticas populares atualmente, por exemplo, é o consumo de diferentes combinações de carboidratos e proteínas logo após sessões de treino. A ciência e a indústria passam por uma fase em que o correto é estar sempre de "tanque cheio", seja com o suplemento que for. Existem várias empresas com produtos para tal, de bebidas e géis a barrinhas ou mesmo refeições completas elaboradas por nutricionistas.
Aqui nesta coluna mesmo já falamos diversas vezes do uso de leite achocolatado como uma bebida ideal para acelerar a recuperação pós treino. Independente do método, a ideia é essencialmente a mesma: aumentar a capacidade de recuperação do organismo, por meio da ingestão de carboidratos e proteínas que estimulem rotas hormonais específicas para tal.
EFEITO CONTRÁRIO. E isto está errado? Ainda é cedo para dizer ao certo, mas existe uma corrente cada vez forte, argumentando que métodos que facilitem a recuperação do organismo acabam por diminuir a necessidade de adaptação frente a uma carga de treino e, assim, no longo prazo acabam por ter um efeito contrário ao treinamento. Nesta linha de pensamento, não só estratégias de recuperação "alimentar", mas também outras táticas como imersão em água fria, uso de meias de compressão, anti-inflamatórios e antioxidantes seriam contraproducentes ao treinamento.
A contradição que existe com relação ao que fazer após o treino também está presente quando se fala em estratégias nutricionais para antes e durante as sessões. Por exemplo, se sabe que o consumo de carboidratos durante o exercício melhora a performance, assim como se sabe que iniciar o exercício com estoques musculares de glicogênio cheios também favorece o rendimento. É daí que vem o famoso carbo-loading (carregamento de carboidrato) e o jantar de massas antes da maratona.
Por outro lado, e também já tocamos neste assunto por aqui, existe uma nova corrente propondo o treinamento em jejum, pois assim se conseguiria estressar mais o organismo, e consequentemente melhorar a resposta adaptativa. No entanto, justamente pela falta de carboidratos ser desfavorável para a performance, existe o argumento de que treinando em jejum simplesmente não se consegue atingir a mesma intensidade de treino.
COM E SEM CARBOIDRATO. Tentando conciliar estes diferentes paradoxos, um grupo de pesquisadores franceses, ingleses e australianos realizou um estudo com um desenho experimental muito interessante: um grupo de triatletas foi dividido em dois, e durante três semanas tiveram sua dieta e treino controlados de formas diferentes.
O grupo controle seguiu a "receita" atual, treinando sempre com alta disponibilidade de carboidratos, antes, durante e depois dos treinos. Já o outro grupo fez a seguinte intervenção: os treinos de alta intensidade (intervalados) eram sempre realizados no fim da tarde, enquanto os leves (rodagens ou equivalentes) eram feitos pela manhã.
Assim, os participantes deste grupo interrompiam o consumo de carboidratos imediatamente antes da sessão intervalada, e realizavam o treino leve da manhã seguinte em jejum. Logo após o treino matinal, o consumo de carboidratos era retomado. Assim, os dois grupos seguiram exatamente o mesmo protocolo de treinos e a mesma ingesta calórica, mudando apenas o timing do consumo de alimentos em relação ao horário dos treinos.
Após as três semanas, o grupo em que foi feita a intervenção apresentou diversas melhoras em relação ao grupo controle: aumento na eficiência de movimento, maior utilização de gordura para produção de energia, diminuição da sensação de esforço para uma determinada velocidade de corrida e, finalmente, melhora de performance em uma prova simulada de 10 km.
Juntamente com estas adaptações, durante o período de treino os participantes do grupo intervenção apresentaram sensação de esforço mais alta comparado ao grupo controle, quando faziam os treinos em jejum. Por último, o grupo com a intervenção perdeu cerca de 1 kg de gordura ao longo do período.
SEM RECUPERAÇÃO E JEJUM. Um dos pontos mais interessantes deste estudo é que nem sequer foi alterada a composição da dieta. Os dois grupos ingeriram quantidades similares de carboidratos, proteínas e gordura, seguindo as recomendações correntes para cada um (maioria do aporte calórico foi por carboidratos).
No entanto, a ausência de "recuperação" após o treino pesado e o treino em jejum no dia seguinte (é impossível dizer se talvez apenas um destes dois fatores foi o responsável pelos resultados) foram o bastante para modificar os efeitos do período de treinamento. Nas palavras dos autores, tal estratégia permite aporte nutricional adequado para treinos de alta intensidade, um período prolongado de sinalização molecular para respostas adaptativas (ou seja, não ingerir carboidratos após o treino, para não permitir recuperação acelerada) e por último uma resposta metabólica exacerbada para os treinos com restrição de carboidrato.
Será esta a receita para o melhor treino? É impossível dizer ao certo, mas que o barulho da turma "contra recuperação acelerada" está cada vez mais alto, isso está.