Performance e Saúde admin 2 de novembro de 2015 (0) (81)

O doping na corrida

Nas últimas semanas a Federação Internacional de Atletismo teve sua credibilidade abalada por uma série de alegações de doping, passando pelo treinador Alberto Salazar e pelo corredor Mo Farah, até o suposto vazamento de um relatório evidenciando diversos casos em que atletas de elite teriam tidos resultados suspeitos acobertados pela entidade. Como discutir a autenticidade destas acusações está completamente fora do alcance desta coluna, vamos abordar alguns estudos recentes que tentam jogar um pouco de luz sobre o tema no universo do esporte profissional.
A WADA (agência mundial antidoping) define doping como "uma ou mais violações das regras da entidade". As regras em questão (são 8) dizem respeito ao uso ou tentativa de uso de substâncias proibidas; posse e tráfico das mesmas; recusa de participar do antidoping ou tentativa de manipular os resultados do teste e qualquer forma de cumplicidade no doping de outro atleta.
Assim, um primeiro ponto a ser percebido é que hoje um atleta pode ser culpado de doping sem nunca ter se dopado, como a maioria das pessoas entenderia o termo. Ainda de acordo com as regras, um atleta é responsável por qualquer substância encontrada em seu corpo, mesmo que alegue ignorância sobre o fato. Além disso, atletas de elite precisam reportar à WADA onde podem ser encontrados por um espaço de pelo menos 60 minutos todos os dias, para que possam ser submetidos a testes "surpresa", fora de competição.
É neste tipo de situação, por exemplo, que o britânico Mo Farah (ouro nos 5 e 10 mil metros na Olimpíada de Londres 2012) foi acusado de não realizar testes em duas ocasiões. Ele alegou simplesmente não ter ouvido a campainha de casa. Se um atleta perde três testes em 12 meses, já pode sofrer sancões.
Ainda assim, os casos de doping que mais chegam aos ouvidos do público são aqueles em que uma substância proibida é encontrada em exames de sangue e/ou urina de um atleta. Novamente, é de inteira responsabilidade do atleta saber o que está ou não na lista da WADA e assegurar-se que nada lá presente entre em seu organismo.
Do ponto de vista do atleta, o problema não é a lista em si, um documento de 10 páginas facilmente acessível, mas sim ter a certeza de nada em todo o universo de alimentos e principalmente suplementos ou medicações que ele ou ela faça uso esteja na lista, estando ciente disso ou não.

MANIPULAÇÃO. Em alguns grandes casos recentes, por exemplo, atletas alegaram que farmácias de manipulação responsáveis pelos seus suplementos poderiam ter acidentalmente contaminado os produtos. O problema deste argumento é que para este tipo de contaminação acidental ser detectada no antidoping, a farmácia precisaria ter efetivamente trocado os componentes do suplemento – o que é bem mais difícil de ocorrer do que simplesmente utilizar uma colher suja ao preparar uma mistura – o que de uma forma ou outra conferiria ao atleta uma vantagem "desleal".
E como uma substância vai parar na tal lista? De acordo com o site da agência antidoping dos Estados Unidos, uma substância ou terapia precisa ser enquadrada em pelo menos dois dos seguintes critérios: 1) aumentar ou ter o potencial para aumentar a performance; 2) representar um risco real ou potencial para a saúde do atleta; 3) violar o espírito do esporte.
Como se pode ver, a terceira regra é absolutamente vaga, e qualquer coisa que se enquadre nos dois primeiros itens pode ser facilmente incluída no terceiro também. A maioria das substâncias, no entanto, está associada à melhora de performance. Para detectá-las, atletas de elite realizam testes de urina e sanguíneos dentro e fora das competições, e também possuem o chamado passaporte biológico, que nada mais é do que um registro da concentração de várias substâncias no corpo do atleta ao longo das temporadas, facilitando, assim, que desvios anômalos, em tese indicativos de doping, sejam detectados.

GATO-E-RATO. E este é justamente um dos maiores problemas do sistema de gato-e-rato do antidoping: a maioria das substâncias consideradas doping são naturalmente encontradas no organismo, e podem ter suas concentrações alteradas por mecanismos naturais, como treinamento.
Além disso, é preciso levar em conta que atletas de elite são por definição indivíduos fora do normal, mais propensos a valores extremos em testes que possuem relação com sua performance. Assim, os testes anti-doping precisam seguir a linha de "inocente até que se prove o contrário", e somente resultados muito fora das possibilidades naturais são (ou deveriam ser) detectados como doping.
Para tentar contornar este problema, hoje já se trabalha em analisar o rastro molecular (numa grande simplificação do processo) deixado pelo consumo ou injeção de determinadas substâncias proibidas, que muitas vezes é diferente daquele deixado quando a substância é naturalmente produzida pelo organismo.

HORMÔNIOS. Por último, outro problema crescente no esporte é a chamada exceção para uso terapêutico, em que um atleta pode fazer uso de uma terapia que normalmente seria considerada doping em caso de comprovação de necessidade médica. Na corrida, por exemplo, este tipo de caso tem aumentado com relação ao uso de medicamentos para asma. Talvez mais famosos sejam os exemplos de lutadores que recebem doses legais de testosterona sob a argumentação de possuírem um deficit fisiológico.
Nessas situações, a grande questão é: se a maioria dos atletas apresenta estas deficiências em função da carga de treino que realizam, então pode-se argumentar que seus corpos simplesmente não foram feitos para suportar tal carga de forma "natural", como prega o espírito esportivo. Seria então justo permitir que este atleta faça uso de hormônios? Por enquanto, o mundo antidoping diz que sim, mas não faltam críticos ao assunto.
A despeito das recentes acusações, um estudo realizado com os melhores tempos do mundo dos 5.000 m até a maratona não conseguiu encontrar grandes desvios de performance ao longo dos anos, o que poderia ser evidência de um aumento nos casos de doping ou do surgimento de uma nova modalidade de doping.
No ciclismo, por exemplo, os "anos dourados" do doping foram marcados por um súbito aumento de performance em provas como a Volta da França, que coincidentemente caiu logo após a introdução de testes para o uso de EPO.
No caso da corrida, a velocidade média dos melhores do mundo segue um mesmo padrão há anos, sugerindo que ainda que os casos de doping sejam (e possivelmente são) bem mais numerosos do que aqueles que chegam à mídia, a situação ainda não é tão desastrosa quanto o quadro que está sendo pintado.

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