Uma prova única e que transcende o ambiente da corrida, englobando também a cultura de um país muçulmano e a experiência de vida. Essas são as melhores definições para o Mountain Do Deserto do Saara, com a primeira edição realizada no dia 19 de novembro em Merzouga, uma pequena aldeia no Marrocos, a 20 km da fronteira com a Argélia, com a presença da Contra-Relógio. O ponto de partida e chegada foi o Hotel Tombouctou, onde foi montada a arena do evento.
O Saara é o maior deserto quente do mundo, localizado no norte da África, estendendo-se por Marrocos, Egito, Argélia, Líbia, Tunísia, Mauritânia, Mali, Sudão e Chade. As temperaturas variam drasticamente, dependendo da época do ano, fazendo frio na noite e madrugada a até 50ºC ao longo do dia no verão. A largada, às 8h, foi com cerca de 13ºC e chegou próximo dos 30ºC durante a prova. O céu azul, sem qualquer nuvem, e o sol brilhante deixou a corrida ainda mais bonita, mas também foi um desafio extra aos participantes, principalmente depois das 10h. Além disso, como é uma região de baixíssimo índice pluviométrico, os longos períodos sem chuva deixam o ar bem seco, fator que mais incomodou os participantes.
FRIO. "Já havia corrido no Deserto do Atacama (Chile), em Cusco (Vale Sagrado dos Incas, no Peru) e agora fechei o Saara. Quando surgiu essa oportunidade, viemos em seis corredores, apesar de todas as dificuldades, inclusive de logística, já que moramos em Belém", contou a treinadora e corredora Elza Ivonete de Oliveira Leite, assinante da CR. "Esse frio ao cair da noite e ao amanhecer aqui no deserto nós sentimos demais. Belém é muito quente. Tanto que corri de manga longa e calça comprida. Não senti tanto o sol, pois o de Belém é realmente bem forte, além de ser uma região muito úmida. A vantagem daqui é que tivemos vento."
Uma característica comum a todos os participantes era o sorriso no rosto e a satisfação após completar o trajeto. Com Elza não foi diferente. "O deserto é lindo, uma dificuldade grande para nós foram as enormes dunas, já que moramos em um local plano. Usamos a Maratona de Foz do Iguaçu como um treino para o Saara. Foi perfeito, só que a areia fofa judiou bastante. Felizmente, o treino de musculação, de fortalecimento, funcionou e todo mundo conseguiu completar", disse a assinante.
Tanto os 25 km quanto os 10 km foram praticamente percorridos todo o tempo em areia fofa, sem qualquer descanso para a musculatura. A começar pela largada na parte de trás do Hotel Tombouctou, já diante das dunas e da imensidão do Saara. Na maratona, havia cerca de 8 km no Deserto Negro, passando pelo quartel da antiga Legião Francesa e nas proximidades da fronteira com a Argélia, com um piso mais duro, muito pedregoso, que, apesar de oscilações na altimetria, com subidas e descidas, favoreceu um ritmo mais forte. Mas essa parte foi exclusiva dos 42 km, não sendo percorrida pelos corredores das outras distâncias.
O PERCURSO. Na largada, os atletas partem em direção ao centro de Merzouga, que tem uma rua principal. O piso mescla areia fofa, estrada de terra e um pouco de calçamento. Após cruzar a Porta do Deserto, voltam ao Saara. No km 15 há a separação dos 25 km e dos 42 km, com os maratonistas partindo para o Deserto Negro e os da outra distância, para as grandes dunas de Erg Chebbi. Por cerca de 8 km é possível correr bem, então, o retorno é feito pela estrada utilizada no antigo Rali Paris-Dacar, toda em areia fofa. Esse trecho foi o único com exigência maior de concentração dos participantes, para seguir as fitas colocadas pela organização, demarcando o caminho e não correr risco de se perder.
Após 7 km, acessam Erg Chebbi e enfrentam a pior parte da prova. Primeiro, pelo piso de areia fofa, com grandes subidas e descidas. Segundo, pelo aumento da temperatura, já com o sol forte. Terceiro pela distância: mais 7 km de dunas que judiam demais da musculatura, principalmente de quadríceps e panturrilha. Em toda essa região, bandeiras da organização foram colocadas para demarcar o caminho. O serviço mostrou-se eficiente. Os 4 km finais, no sentido do Hotel Tomboctou, são mais "corríveis" e com subidas e descidas bem menores, até a linha de chegada.
"Uma sensação completamente diferente de tudo o que a gente vem realizando e praticando nos últimos tempos, tanto em trilhas quanto na praia. Mesmo sendo bastante plano, o clima seco do Saara atrapalhou bastante a respiração. Confesso que no início achava que o percurso não seria tão difícil. Mas mesmo com a experiência de correr em areia de praia, acabou mostrando-se bem complicado. A parte mais emocionante foi na hora em que saímos, por volta dos 29 km, para enfrentar as grandes dunas. Você olha aquela imensidão de areia, sabendo que poucos terão a oportunidade de correr em um local como aquele", afirmou o assinante Reginaldo Batista, de Sorocaba, que correu acompanhando um aluno de 70 anos por toda a maratona. "O desafio dele era completar a prova e o meu de apoiá-lo. O objetivo foi alcançado."
SOLIDÃO. Como foram apenas 74 concluintes nos 42 km, em muitos trechos os corredores ficaram bastante sozinhos. Havia sempre carros da organização circulando, mas com um intervalo grande entre eles, então, mesclou o silêncio do deserto com o barulho da respiração, das passadas, de algum animal passando, do vento, em uma vivência inesquecível. Uma das características do Saara é que você consegue enxergar quilômetros para todos os lados, assim, a experiência foi ainda mais interessante pela completa solidão.
Mesmo com as dificuldades de uma prova como essa, houve quem a escolhesse para correr a primeira maratona., como Márcio Tuma, de Belém. "Estreei em grande estilo. Maratona é diferente de tudo o que já corremos, temos de ser firmes na estratégia, fazer uma preparação prévia e ter coração quando está cansado e as pernas já não respondem da mesma maneira. Essa prova foi a realização de um sonho e marca o início de uma nova etapa na minha vida de corrida. Corro há 20 anos, porém apenas distâncias curtas, então, estou começando a galgar outros patamares", disse Tuma.
"Isso aqui (Saara) é uma maravilha. Costumo correr com música, mas em vários momentos fiquei no absoluto silêncio, ouvindo as areias. Momentos de unir o foco da corrida com a reflexão, uma experiência de vida fantástica", completou Tuma, que sentiu mesmo a prova a partir do km 30, quando começaram as cibras.
BOM ABASTECIMENTO. Pelo regulamento da prova, era obrigatório largar com algum recipiente de água, como um cinto de hidratação (que veio no kit com duas garrafinhas) ou a mochila. Principalmente porque nos 7 km das grandes dunas de Erg Chebbi não foram colocados postos de abastecimento pela dificuldade e logística. Porém, na prática, o sistema fornecido pela organização foi extremamente eficiente, com diversos postos de água (em garrafinha) e dois mais completos, nos km 15 e 30, com isotônico, amendoim e gel de carboidrato. Um ponto negativo é que, mesmo com a orientação, corredores jogaram garrafas de plástico e o gel nas areias do deserto, além de uma garrafa de isotônico (não fornecida pela organização, que fez toda a limpeza do trajeto após o evento). As meias e polainas para colocar sobre os tênis também entregues junto com o kit mostraram-se eficientes para proteger os pés e evitar a entrada de areia.
Um grande atrativo da prova foi a presença do marroquino Abdelkaden El Mouaziz, bicampeão da Maratona de Londres, vencedor de Nova York e com 2h06 como recorde pessoal em Chicago. Atualmente, aos 48 anos, ele se dedica às ultramaratonas e provas no deserto, já tendo inclusive vencido a Marathon Des Sabres. El Mouaziz ajudou a organização do Mountain Do a definir e marcar todo o percurso. Ele venceu a prova em 3h21, seguido pelo brasileiro José Virgínio de Morais, com 3h27. Um ponto muito interessante é que o marroquino correu boa parte da prova orientando os corredores do primeiro pelotão sobre o ritmo a fazer, os locais a pisar e como comportar-se no deserto.
No feminino da maratona, a vencedora foi Ingrid Araújo Trindade, com 4h33. Os resultados completos podem ser conferidos em www.mountaindo.com.br.
Uma verdadeira maratona
O Mountain Do Deserto do Saara começa bem antes da largada. Não estamos falando do treinamento, da preparação ou da questão financeira. Todas importantes e que valem para qualquer maratona no exterior. A do Marrocos tem algumas características especiais. O voo de São Paulo a Casablanca é tranquilo, cerca de 9 horas. Depois, há a opção de pegar um avião pequeno até um aeroporto localizado a duas horas de distância de Merzouga. Porém, é preciso encaixar nos horários e disponibilidade.
Normalmente, essa viagem é feita pela parte terrestre, de carro, ônibus ou vans. Pode ser "quebrada", parando em Fez na ida e voltando por Marrakesh. De Casablanca, a reportagem da Contra-Relógio enfrentou 14 horas de van. Outros corredores ouvidos pela revista viajaram por cerca de 10 horas a partir de Fez. São trechos bem cansativos. Mas todo esse "sofrimento" vale a pena. Correr na imensidão do Deserto do Saara é algo único e inesquecível.
Em termos da prova, a altimetria não é um problema (a não ser nas grandes dunas, mas, nesse caso, subir e descer atrapalha menos; o problema é a areia fofa e fina o tempo todo, com os pés afundando). O que torna o Mountain Do Deserto do Saara uma das provas mais difíceis que já fiz é mesmo o terreno instável, praticamente todo o tempo, que judia demais da musculatura e o clima seco.
Mas uma experiência única (e talvez a corrida seja o único esporte a proporcionar isso para amadores) foi correr ao lado de um multicampeão como Abdelkaden El Mouaziz, e que ficará para sempre guardado na memória e no coração. Por cerca de 13 km, estive junto com ele, conversando, ouvindo as orientações, aprendendo. Depois, como terminei em quarto lugar no geral, subi ao pódio com El Mouaziz. Um dia para não esquecer jamais. (André Savazoni)