"Você sabe para onde vai?" Essa foi a pergunta que me fez a voluntária responsável pelo processo de liberar os atletas para saírem da área de segurança pós-prova. Esta pergunta importante, mas a princípio meio fora de contexto, é apenas um exemplo das dificuldades desta maravilhosa prova que é a Maratona de Boston. Na hora eu disse apenas que ia pra casa, apenas não falei o quão longe de casa eu estava. Refletindo depois, com a cabeça um pouco mais em ordem, tal pergunta faz todo o sentido. E vou tentar transmitir um pouco do que se passa nessa maratona.
Tudo começa com o qualifying. Cerca de 90% dos atletas devem comprovar a realização de uma maratona oficialmente reconhecida com um tempo máximo determinado por idade, e realizada em até 18 meses antes da prova. Qualifiquei-me em Londres em 2006 com o tempo de 3h09. Soube depois que o tempo de qualificação é o que define a posição dos atletas nas baias de largada.
A prova é limitada a 22.500 pessoas e você pode se inscrever pela internet (www.bostonmarathon.org). Tudo simples, claro, só não dá pra entender porque o custo para estrangeiros é de US$ 150 e para os locais de US$ 90. Uma idéia da organização é um eficiente sistema de comunicação antes da prova. Você recebe com freqüência dicas, oferta de produtos e serviços. Um desses permite que você cadastre três e-mails ou celulares para receberem on-line o desempenho do atleta.
Chegando em Boston se percebe imediatamente que a cidade está totalmente envolvida com a prova. Este é o assunto das manchetes dos jornais, milhares de out-doors, lojas decoradas, faixas nos postes, tudo gira em torno da grande Maratona de Boston em sua 111ª edição. A mais antiga, a mais desejada. Muitas das maratonas no mundo inteiro trazem como atração o fato de serem qualificadoras para Boston.
Eu não podia ficar de fora desta. Tinha que incluir no meu currículo a tão famosa prova. Logo após Londres em 2006, decidi que 2007 era o ano. Até porque já tinha realizado quatro das cinco mais importantes provas do mundo, ou seja, Berlim, Nova York, Chicago e Londres. As cinco maratonas são conhecidas como Worlds Major Marathons, ou WMM.
Sacolas laranjas. Boston é realizada sempre numa segunda-feira, Patriots Day, feriado local. Neste dia também sempre joga o Red Sox, time de baseball da cidade.
A feira para busca do kit do atleta abriu na sexta, dia 13, às 12h. Cheguei lá por volta das 13h para evitar a multidão do sábado. Serviço impecável, kit muito bom com diversos brindes e uma camiseta preta de mangas longas. Todas as marcas esportivas estavam presentes com grande destaque para Adidas, marca oficial da prova. Produtos excelentes com preços não muito acessíveis, mas o pessoal compra assim mesmo.
Já no sábado, ao circular pela cidade, identificava-se com facilidade grande quantidade de pessoas usando o material alusivo à prova. E como não reconhecer as sacolas plásticas cor de laranja, usadas para levar o kit, e também como guarda-volumes no dia da prova. Este sistema é muito inteligente e usado em muitas provas. Você só pode guardar os pertences na sacola da prova e para isto no kit há um adesivo com o seu número que é colado na sacola. Assim tudo fica mais fácil. Quando acaba a prova, você vem caminhando, ou arrastando-se, em direção ao guarda-volume e uma pessoa já está com a sua sacola na mão. Tudo o que você não tem neste momento é paciência para esperar por qualquer coisa que seja, ainda mais num frio de 7 graus.
Previsão de tempo péssimo. Como as condições do tempo são importantíssimas para uma maratona, vamos a elas. Nada podia ser pior. Frio, vento de até 50 milhas por hora, e chuva, podendo haver até inundações na hora da prova. Houve quem falasse em neve, e também quem cogitasse de cancelar a prova. Imaginem, um evento que acontecia pela 111ª vez, nunca cancelado, não seria justamente no meu ano que isto ocorreria. A organização da prova mandou mensagem informando os riscos de hipotermia, seus sintomas e riscos.
A largada em Boston se dá em duas "ondas" como eles chamam. Uma às 10h para os atletas com números até 10 mil e outra às 10h30 para os demais. Eu era o 4.963, ou seja, ficava na quarta baia dos que largariam primeiro. Até aí tudo ótimo, perfeito. O problema é que o único meio de se chegar até a largada, em Hopkinton, é de ônibus. Não ônibus comum, mas os da organização, semelhantes a Nova York, que saem do centro de Boston a partir da 6h até às 7h30. Os privilegiados que largariam na frente foram contemplados com os primeiros ônibus. Isto significava que precisaria acordar às 5h, tomar café, e pular no táxi até às 6h. Toda esta correria para chegar no local de largada às 7h30.
Na madrugada do dia da prova chovia, ventava e fazia muito frio. Difícil foi achar um táxi para ir até os ônibus. Juntamos um grupo no hotel e rachamos o primeiro que apareceu. Noite fechada ainda, difícil imaginar como correr naquelas circunstâncias. Estava difícil até para entrar no ônibus. A viagem até a largada foi torturante. A sensação de estar indo cada vez mais longe dava a sensação exata da distância que deveríamos correr de volta. Por sorte, tive um americano, boa gente, como parceiro de viagem, com quem troquei boas idéias sobre como correr naquelas condições.
O local de concentração é bem isto mesmo. Algumas tendas sobre um enorme gramado no colégio local. A vantagem de chegar cedo é que ainda havia lugar. Como esperar duas horas ali? O jeito é sentar da melhor forma possível, ler um pouco, ouvir MP3, ligar para os amigos no Brasil, especialmente para o Silvio, nosso grande treinador, e discutir eventual mudança de estratégia, mais roupa, menos roupa, mas especialmente aliviar a tensão. Uma ótima oferta de café, barras energéticas, pães, sucos etc fazia a alegria da turma. Importante é que há um bom espírito de camaradagem. Não há espaço para mau humor. Banheiros lotados, filas enormes. Fantástico o espírito da comunidade local. Muitos de garagens abertas para que o pessoal pudesse se abrigar da chuva, do vento e do frio.
Com que roupa? Hora de ir para a largada e deixar a sacola no ônibus. Decisões importantes: qual luva usar, que roupas levar, sabendo que a partir de agora o que não fosse usado seria jogado fora. Todo o material descartado é doado para entidades carentes e são mais de 30 mil peças de roupa. Há uma longa caminhada até o local de largada, cerca de 1,2 km, e a chuva não pára. Ao menos não há vento.
Um aviso surpreendente: quem houvesse esquecido ou perdido o chip, bastaria solicitar um novo para a organização. Tudo muito bem organizado, as baias bem definidas, sem problemas. Eis a questão: largar de calça comprida ou só de calção? Descartar luvas, camisa, blusão é fácil, mas para tirar uma calça há que descalçar tênis. Nunca corri de calça (tipo legging), mas vamos lá. Aproveitando a dica dos organizadores, de que grande parte do calor do corpo se perde na cabeça, usei um gorro especial para corridas embaixo do tradicional boné. No mais, camiseta de mangas longas por baixo e a verdinha do ChimasZRunners por cima, com o número aparente.
E vamos lá. Levo cerca de 2 minutos para cruzar a linha de largada. Muita gente, mesmo tratando-se de um pessoal que corre no meu nível, leva algum tempo para que se possa desenvolver um ritmo bom. Talvez um ou dois minutos mais, mas logo, com todos correndo forte fica fácil acompanhar, e basta acompanhar o ritmo, não é necessário forçar.
Com tudo isto, surpreendo-me com a chegada do primeiro quilômetro: 4:23, bem melhor do que esperava naquelas condições. Noto que a chuva parou, e não há vento. A partir daí as coisas melhoram, pista boa, muito bem sinalizada, água e Gatorade a cada milha e dos dois lados da pista.
Marcação em milhas, porém os tapetes de medição colocados de 5 em 5 km. Um comentário muito especial ao público espectador. Entusiasmo extraordinário, muitos oferecendo água, frutas, papel para secar o rosto, e o já tradicional cumprimento dos atletas, batendo na mão das crianças. Mesmo com aquelas condições climáticas, gente em quase todo o percurso.
Muitas subidas e descidas. A grande dificuldade do trajeto são as inúmeras subidas e descidas. Há poucos trechos planos. Este é o problema. Por sorte a chuva deu uma trégua, os ventos apareceram, mas confesso que não senti dificuldades. Tinha idéia de buscar o vácuo de algum outro corredor, mas não senti necessidade. Voltemos às subidas e descidas. Verificando a altimetria da prova percebe-se que parece mais um serrote invertido. Não fiz treinos específicos de subidas e descidas e senti os efeitos. Ao que me lembro, as dores nas partes anteriores das coxas, provocadas pelas descidas, começaram a surgir lá pelo km 20.
Comecei a sentir calor, tirei as luvas e logo as joguei fora. Estava certo de que não precisaria mais delas. A dúvida das calças persistia, pela primeira vez em uma prova meu tênis do pé direito desamarrou. Pensei, "Se tenho que parar para amarrar o tênis é hora de tirar as calças. Elas estão atrapalhando? Acho que não. Então vamos em frente", e assim foi.
Tinha o objetivo de concluir a prova entre 3h15 e 3h20, porém corri despreocupado com o tempo. Sabia que as condições adversas trariam uma perda de rendimento. Procurei correr por volta dos 4:30 por km, o que consegui até a meia-maratona, fechando em 1h36. Nada que me deixasse feliz, nem triste. Com as dores, a minha preocupação passou a ser resistir a qualquer tentação de parar, mesmo que fosse para caminhar um minuto, e levar a prova até o fim da melhor forma possível. Pensamento positivo, lembrava dos meus amigos, dos familiares torcendo por mim, acompanhando o desempenho on-line. Não posso desapontá-los. Na verdade, refletia, não posso frustrar a mim mesmo. E os amigos que não mandaram mensagens? Será que esqueceram? Nada disso. Pensamento positivo.
Encarando a Heartbreak Hill. Não perdi um posto de água e Gatorade, tomei água em todos e Gatorade em alguns. Power Gel nos km 10, 20, 28 e 35, tudo certo. Após o km 30, passei a fazer as contas do tempo em que terminaria a prova. Se mantiver um ritmo de 5:00/km chego abaixo de 3h20, mas está difícil. A subida da milha 21 é famosa (Heartbreak Hill), olhei para ela e vi o tamanho da brincadeira. Melhor não olhar, vamos ganhar dela na raça. Faltam apenas 5 milhas. Um treininho de 8 km. Uma barbada. Pensava na hidromassagem no hotel.
Só tive a certeza da chegada quando cruzei os 40 km. Dois quilômetros não são nada. O pessoal apoiando: "You're looking good", "One more mile". Parecia uma eternidade. Bom, pensei eu, ao menos acabaram as subidas e descidas. Nada disto, havia uma passagem embaixo de uma ponte. A esta altura qualquer obstáculo parecia insuperável, mas falta apenas um quilômetro. Pelo meu GPS já tinha chegado, mas isto só serve como estímulo para terminar. Finalmente após uma curva fechada para a esquerda entro na Boylston Street e vejo a chegada a uns 400 metros. Tão perto e tão longe. Vamos lá. As dores são fortes, mas e daí?
Escolho o local da chegada para não ser atrapalhado por outro corredor na foto. Coloco o pé no tapete marrom. Cheguei: 3h21 é o que indica o meu relógio. O tempo oficial foi 3:21:26.
Sensação de realização, de felicidade misturada com cansaço, com dor. Lembro que não posso parar, tenho que caminhar para evitar cãibras. Abraço-me numa voluntária que pergunta se está tudo bem, se preciso de alguma ajuda. Digo que não, estou bem. Há muitas cadeiras de rodas. Dá vontade de sentar na primeira. Sento para tirar o chip, descansar um pouco. Ao entregar o chip, a pessoa disse que não podia me entregar a medalha, tinha que colocar no meu pescoço. Ótimo, melhor ainda. Ela me abraçou, me virei, beijei a medalha e a ergui ao céu, num gesto que nunca havia feito antes. Emocionei-me. Pena que não havia ninguém com quem dividir este momento, ao menos fisicamente. Sabia que todos os meus familiares, amigos, colegas do Chimas, meu treinador, todos estavam tão felizes como eu.
Comecei a sentir muito frio. Estava com as roupas, tênis, tudo muito molhado, e a temperatura era de 7 graus. Hipotermia? Cuidado! Cadê o ônibus com a minha sacola? Quando o identifico, há muita gente, mas tenho sorte, na janela dos 4900 não há ninguém.
O frio aumenta, preciso achar logo um lugar para trocar de roupa. Encontro a saída e há um degrau ao lado da porta de um banco. Lugar perfeito. "Você sabe para onde vai?". Sei sim, para a hidromassagem.
*Carlos Biedermann é assinante de Porto Alegre