Parei diante do Rockfeller Center, edifício de 70 andares construído na década de 30, de onde se descortina uma vista sem igual da cidade. A catedral estava do outro lado da rua. Construída em 1850, a maior igreja católica do país é uma obra magnífica. De arquitetura gótica e feita em mármore branco com torres altas e pontiagudas, diferencia-se totalmente das construções próximas. Como é linda a Big Apple!
Subi os degraus sentindo a musculatura anterior da coxa. Empurrei a enorme e pesada porta de madeira e entrei. O interior é muito semelhante à Notre Dame de Paris. O altar dourado, as paredes decoradas, imensos vitrais, sendo alguns deles em forma de rosas.
Sentei em um banco e a não ser pelos flashes das máquinas fotográficas que de vez em quando eram acionados não se escutava mais nenhum som. Uma tranqüilidade tão grande! Respirei fundo como que querendo absorver toda aquela paz. Fechei os olhos. Era chegada a hora de cumprir o que havia prometido dois dias antes: retornar àquela igreja, ajoelhar-me diante do altar e agradecer. Motivos eu tinha de sobra. Primeiro pelo simples fato de estar ali, viva e com saúde. Depois por ter feito uma excelente prova, conseguindo superar todas as minhas mais otimistas expectativas. "Sub 4", pensei comigo mesma e ri cheia de orgulho. Grande conquista!
Estréia lá mesmo, em 2003. Foi a minha segunda participação na Maratona de Nova York. A prova não era novidade e muitas situações estavam gravadas na minha mente. E não tinha como ser diferente já que nessas ruas havia feito, em 2003, minha estréia no mundo das maratonas, sentindo poucas vezes na vida emoção maior.
O relógio marcava 5h30 quando deixei o hotel em companhia dos amigos Sylvio, Mirsa, Reinaldo, Valmir, Jaqueline e Hélio. A impressão naquele momento era a de que estava assistindo a uma nova versão do mesmo filme. Mesmo cenário, mas personagens diferentes. Ainda estava escuro e a cidade dormia. A temperatura devia estar em 4 ou 5 graus. Caminhamos em direção à Rua 42, ponto onde os ônibus que nos conduziriam ao local da largada ficavam estacionados. Longas filas formavam-se diante do maravilhoso prédio da Biblioteca Nacional, mas fluíam com rapidez.
Entrei no ônibus e sentei na primeira fileira. Dali teria uma vista privilegiada do trajeto. Enquanto seguíamos o céu foi clareando. Através do enorme vidro frontal pude acompanhar o amanhecer de um claro e ensolarado dia de domingo. A viagem deve ter levado uns 40 ou 50 minutos e quando chegamos milhares de corredores já transitavam pelo local. Atletas de todas as partes do mundo, numa total confusão de idiomas, bandeiras, agasalhos e bonés. Estiquei minha bandeira do Brasil no chão e ali tomamos café, agora também na companhia do Adeilton, Taurino e Evandro. Uma hora antes da largada retiramos os agasalhos e guardamos os pertences no guarda-volumes. Ainda conservei o moletom, luvas e uma capa plástica para tentar me manter aquecida. Me livraria deles no decorrer da competição.
Por que não 4 horas, ou menos? Posicionei-me ao lado do marcador de ritmo de 4h00. Objetivo um tanto arrojado, mas porque não tentar? De repente dá certo. Na realidade a meta era fechar com um tempo pouco inferior a 4h12, que foi como completei Paris este ano. Essa marca já seria motivo para festa, considerando que o percurso de Nova York é um pouco mais difícil em virtude das subidas. Aproximando-me mais das 4h seria uma maravilhosa surpresa. Batendo em cima das 4h seria a glória. Resolvi arriscar pensando nos conselhos do mestre Laurent, que sempre confiava e apostava mais em mim do que eu mesma. Ele já tinha me dito algumas vezes para não economizar e não me poupar tanto nas competições e, principalmente, para não sentir medo.
Conversamos longamente na véspera da minha viagem. Ele estabeleceu minha estratégia e orientou-me como proceder. O ritmo deveria ser de 9 minutos por milha. Ele garantiu que eu seria capaz e não deu a menor pelota para as minhas argumentações em contrário. Eu deveria passar pela 6ª milha (+/- 10 km) com o tempo próximo de 1hora; pela milha 13 (meia-maratona) com 2h; entre as milhas 19 e 20 (+/- 30 km) o tempo deveria estar bem perto de 3h; a partir daí, me disse ele, esqueça o relógio, concentre-se e acredite em você e no seu potencial.
Um estampido soou alto. Todos gritaram. A largada. Ao contrário do que ocorreu em 2003, desta vez eu estava na parte superior da ponte Verrazano e o visual dali era infinitamente mais bonito. A multidão começou a se mover. Pisei no tapete aproximadamente 6 minutos depois de iniciada a competição. Acionei o relógio, liguei o som do meu MP3 e comecei a correr.
Que festa é a Maratona de Nova York! Que evento! Por todo o trajeto tem gente reunida, gritando e torcendo pelos atletas, segurando faixas e cartazes de incentivo. Bom demais correr com a camisa do Brasil, ser reconhecida por outros corredores brasileiros e por brasileiros que estavam ali apenas como espectadores. A cada milha conferia o meu cronômetro com a pulseira que trazia no braço. Fiz a hidratação corretamente, tomando os sachês de gel, água e Gatorade nos momentos definidos. Segui no mesmo ritmo até o km 30, sempre conferindo o tempo milha a milha. Tudo transcorria dentro do programado e agora chegara a hora de correr com a cabeça e com o coração. Ainda faltam 12 km, pensei. As pernas estavam ótimas e firmes, fruto de um bom trabalho muscular feito com a orientação e apoio do meu personal. Obrigada Eder!
O Marilson já chegou! Só falta você! – Continuei conferindo os tempos a cada milha, mas sem a preocupação de seguir o que determinava a pulseira. Passei a rodar mais rápido, mas isso não me assustou, convencida que estava de que desta vez eu não economizaria. Margeando o Central Park e a aproximadamente três milhas do final, ouvi alguém gritar: – Vai Brasil! Olhei em direção ao som e fiz um sinal de positivo para um rapaz com a camisa da seleção. – O Marilson já chegou! Ele foi o campeão! Só falta você! Um brasileiro no pódio, campeão da Maratona de Nova York? Seria mesmo possível? E aquela levada de quenianos? Será que o nosso garoto de Brasília, tão humilde e franzino, havia conseguido? Se fosse verdade então o fato era inédito. Uma onda de emoção percorreu o meu corpo: não vai faltar mais… já estou chegando…
Esqueci o cronômetro, não conferi mais tempo, não bebi mais água, não olhei mais para os lados, não ouvi mais a música, não escutei mais a algazarra do povo e nem o som da minha própria respiração. Fui ultrapassando quem eu via pela frente, aumentando e acelerando a passada. Marilson no pódio, que lindo! Avistei a marca da 26ª milha. Alguns poucos metros me separavam da linha de chegada. Olhei o relógio e não acreditei. Olhei novamente para me certificar. Eu ia fechar a prova abaixo das 4h. Lá estava o pórtico, bem diante de mim. Levantei os braços e pisei no tapete, rindo sozinha, feito boba. Meu relógio marcava 3:56:50. Dei três socos no ar, pulei, abri os braços, olhei para o céu, agradeci. Chorar? Eu não tinha lágrimas. Que momento mágico! Que medalha bem-vinda!
E agora, no silêncio que reina dentro desta catedral, pude relembrar com mais nitidez, mas não com menos emoção, o dia em que corri pela segunda vez a Maratona de Nova York. Fiz minhas orações, levantei do banco devagar, comprei duas velinhas, acendi e depositei aos pés das imagens de São Pedro e São Paulo, em sinal de agradecimento. Segui em direção à saída, abri a imensa porta e ganhei novamente as ruas de Manhattan, mas desta vez deixando correr livremente pelo rosto as lágrimas que agora insistiam em brotar dos meus olhos.