Sem categoria admin 26 de março de 2017 (0) (102)

Pai e filha vencem obstáculos, por amor à corrida

Na infância, era raro o dia que Ronaldo Carnaval, do Rio de Janeiro, hoje com 74 anos, não praticava algum esporte no colégio. Mas os hábitos saudáveis começaram a mudar aos 13 anos quando, influenciado pelo pai e alguns colegas, ele começou a fumar. Pouco tempo depois, foi inevitável surgirem os primeiros problemas de saúde. Aos 20 e poucos anos, Ronaldo passou a observar um desconforto ao caminhar, mesmo pequenas distâncias. Em uma consulta médica recebeu o diagnóstico: tromboangeite obliterante. Trata-se de uma doença vascular inflamatória que envolve artérias e veias de pequeno e médio calibre, em geral nas porções distais dos membros inferiores e superiores, que costuma atingir homens abaixo de 40 anos e tem forte relação com o tabagismo. O remédio? Abandonar o cigarro!
Só que ele não deu muita importância. Aos 27 anos, um ferimento que não cicatrizava em um dedo da mão, acabou tendo complicações até que foi preciso uma amputação na segunda articulação. "O médico implorou: não fume, pelo amor de Deus. Novamente não segui a recomendação. A gente acredita que pode parar a qualquer momento. Mas a briga é desigual. O vício sempre sai vencendo. No meu caso, tive de passar por muitas situações desagradáveis para conseguir me livrar", diz.

CAMINHADAS, PARA COMEÇAR. A claudicação intermitente passou a ser considerada normal por Ronaldo, que se acostumou a parar de pouco em pouco enquanto caminhava. Uma fratura em um dedo do pé, aos 33 anos, o levou a uma nova amputação. "Não podia imobilizar por causa da tromboangeite obliterante, então essa foi a saída. Foram duas cirurgias para corrigir o problema. No ano seguinte, na perícia médica, o angiologista disse que iria sugerir minha aposentadoria por invalidez. Foi aí que comecei a reagir e procurei ajuda." Entre as recomendações estavam a prática de uma atividade física, como a caminhada, e, claro, largar de vez o cigarro. "Comecei a caminhar, mas não deixei de fumar. Só consegui dois anos depois, com ajuda de acupuntura. Desde então são 35 anos sem cigarro", conta.
A corrida entrou na vida do Ronaldo nesse momento, já longe do tabagismo, aos 38 anos. "Comecei a dar voltas pelo quarteirão, até que a distância começou a ficar pequena. Passei a ir para a praia e me entusiasmar com o movimento. Acabei em um grupo de corrida. Belo dia, já correndo uns 6 km, me inscrevi em minha primeira prova. Gostei: foram 8 km na Corrida dos Veteranos. Recebi um certificado e enviei para meu médico, que me estimulou a continuar."
Alguns anos depois, um amigo contou a Ronaldo que iria participar de uma maratona. "Perguntei como era aquilo. Quando disse o que seria, logo abandonei a ideia, mas o acompanhei em um treino de 16 km. Me entusiasmei e acabei me inscrevendo também. Resultado: completei em 6h01. E fiquei uma semana sem andar. Era 1984 e não havia nem medalha, só uma camiseta comprovando a participação", lembra.
Depois dessa, foram mais cinco maratonas no Rio: 1985 (5h39), duas em 1987 (4h30 e 4h13); 1988 (4h45); 1989 (4h30). "Além de cinco meias-maratonas, sendo o melhor tempo em 1h39."
Fabianna era pequena quando o pai parou de fumar e começou a se cuidar. "Tenho lembranças da rotina dos treinos, que começavam às cinco da manhã, além do cuidado com a alimentação. Cheguei a acompanhar meu pai em uma maratona, de bicicleta, levando um isopor com água de coco e mel em sachê. Ele me incentivava a correr, mas eu não sentia prazer. Uma vez ele me inscreveu em uma corrida rústica na Ilha do Governador. Cheguei em penúltimo e voltei para casa falando que não queria mais", conta.

"APAGÃO" E NOVA PARADA. Tudo ia bem com Ronaldo. Até que um dia, voltando de um treino de 28 km, ele teve um "apagão". "Procurei um cardiologista, que constatou hipertensão e me recomendou repouso. Só que não resisti e me inscrevi naquela que seria minha última participação em corridas: a Maratona do Rio, com novo trajeto. Porém, me comprometi com a família a parar no km 18, no Leblon, onde a Fabianna estava me esperando."
Ele se submeteu a vários exames até que foi constatada uma hipertrofia ventricular. "A orientação era a mesma: nada de grandes esforços. Mas continuei caminhando. Minha mulher me acompanhava, me mantendo em ritmo confortável. No entanto, nos dias em que ela não estava comigo, eu abusava um pouco."
Ronaldo parou de correr… e Fabianna começou. Aos 31 anos, após duas gestações e incomodada com uns quilinhos a mais, ela se matriculou em uma academia. "Comecei fazendo spinning, mas logo fui para a esteira. Aos sábados, os treinos eram na praia do Leblon. Minha primeira prova foi de 4 km, em 2004. No ano seguinte fiz minha primeira meia maratona", conta.
Em 2006, Fabianna mudou-se para São Paulo, onde foi apresentada a uma assessoria esportiva. "Fiz novas amizades e evoluí rápido. Mas a história do meu pai não saía da minha cabeça. A força e a determinação dele me fizeram acreditar que eu podia, sim, correr uma maratona. E foi em 2010, em Chicago. Não parei mais: fiz Buenos Aires (2011 e 2012), Cruce de Los Andes (2013), Paris e Nova York (2014) e Buenos Aires (2015). Esta última teve tudo de especial. Corri bem os 42 km, sem sentir dor, feliz da vida. O motivo? Meu pai estava lá pela primeira vez me dando apoio! Bati meu recorde pessoal (3:37:59) e consegui a qualificação para Boston (2017). Meu coração explodiu de felicidade. Aliás, o do meu pai também!"

RETORNO EMOCIONANTE. Vendo a filha no mundo das corridas, Ronaldo decidiu procurar outro cardiologista. "E ele me liberou para as corridas. Que alívio! Passei a correr 5 km; atualmente faço 8 km diariamente. Aos sábados, fico entre 10 a 16 km." A sensação de voltar às competições foi mágica. "Apesar da limitação, estava vencendo obstáculos. Aprendi a não me desesperar e a ter paciência, disciplina e, principalmente, determinação", diz.
"Quando meu pai falou que o cardiologista tinha liberado a corrida, comecei a sonhar com a possibilidade de poder, enfim, correr ao lado de quem sempre me incentivou e foi minha inspiração para encarar uma maratona. Em julho de 2015, durante as férias escolares, passei uns dias com ele no Rio e treinamos juntos. Percebi que estava ótimo e vi que meu sonho poderia se tornar realidade. Um mês depois, perguntei se ele correria uma prova de 5 km comigo; tinha marcado de correr com uns amigos. Meu pai aceitou e se juntou a nós. Foi uma felicidade tão grande, que logo após a prova planejamos outra, de 10 km, em setembro", relata Fabianna.
Correr ao lado da filha emocionou Ronaldo. "Não imaginava que um dia isso pudesse acontecer. Nunca a obriguei a praticar esporte, mas ela sempre participou da minha vida, me via e ainda me vê como espelho. Porém, chegar a correr com ela era algo distante para mim. Sabia que estava em um nível bem superior ao meu e não queria atrapalhar. Ela me acompanhou o tempo todo. E chegamos junto. Chorei, mas as lágrimas se misturaram ao suor – e deu para disfarçar", relata.

PRESENTE DE ANIVERSÁRIO: 21 KM. Depois da prova de 10 km, Fabianna anunciou em suas redes sociais que o próximo desafio seria uma meia-maratona ao lado do pai. "A princípio concordei e, no entusiasmo, achei que poderia. Mas existe uma distância grande entre o achar e o realizar", conta Ronaldo. Ele começou a treinar. A meia (da Globo) aconteceria em 16 de outubro de 2016, dia de seu aniversário de 74 anos.
"No dia da prova tremi, transpirei, senti sede… Mas ao meu lado tinha um escudo: Fabianna. No início tem logo uma subida. Vimos muita gente andando e fomos ultrapassando os mais lentos. Passamos pelo Leblon, Ipanema, até chegar a Copacabana, quando o sol começou a castigar. A fadiga começou, mas Fabianna não me deixava parar. Tudo passava pela minha cabeça. Lembrei até da primeira maratona, em 1984. Não podia pensar em parar. Era minha comemoração, meu aniversário, meu reencontro com uma corrida longa, na companhia da minha filha. Além disso, minha mulher – que começou a correr aos 62 anos – estava participando da prova de 5 km e nos esperaria no final. Só tenho a agradecer à filhota e à companheira que me suportaram e ajudaram em todos os momentos", lembra.
A meia-maratona também foi especial para Fabianna. "Talvez o fato mais emocionante depois do nascimento dos meus três filhos. Só desgrudava do meu pai para pegar água em todos os postos de hidratação. Apesar do sol forte, eu tinha condições de fazer uma boa prova, mas esse não era o propósito. Meu objetivo era dar total apoio, uma forma de agradecer o exemplo que ele foi para mim. Em cada quilômetro olhava para meu pai e me emocionava. Sei que não foi fácil para ele pelo calor e, principalmente, por ter ficado mais de 20 anos sem correr. Ali, mais uma vez meu pai me deu exemplo de força e superação."
Novos planos a caminho? "Sim: outra meia e, quem sabe, até uma maratona", diz, confiante, Fabianna.

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