Saber onde e como colocar seu esforço é a chave para o treinamento eficiente
É possível correr uma maratona em menos de 4h treinando 80 km por semana. Da mesma forma, é possível fazer em menos de 4h com 50 km por semana. Por que motivos o corredor deveria se expor a 30 km a mais de esforço, se o resultado final é o mesmo?
A realidade do treinamento é que existe uma margem de cargas de treino conhecida para cada grau de performance, e esta é refinada pela experiência dos treinadores e estudos especializados. Ainda assim, esta margem é razoavelmente imprecisa, e a tendência é seguir o que os melhores do mundo fazem (se funciona para eles, então…) dissolvendo o conteúdo para a realidade do amador.
O problema deste método é que como todo mundo está seguindo todo mundo, o treinamento “ideal” passa a ser um círculo-vicioso, em que poucos param para se perguntar se esta ou aquela parte do treinamento realmente é necessária ou faz sentido.
Origem da performance
Para que se busque dedicar o treino ao que realmente importa, sem fazer a mais, é preciso entender de onde vem a performance. Em esportes de endurance (resistência) como a corrida, são três os fatores do ponto de vista energético: o consumo máximo de oxigênio (VO2max), a fração do consumo máximo que o corredor mantém durante a prova e a sua economia de corrida.
O VO2max determina a taxa com que o corredor consegue produzir energia durante o exercício (a partir do processo em que o oxigênio do ar inspirado é utilizado nos músculos para “queimar” carboidratos ou gordura). A fração utilizada determina a produção energética efetiva, ou taxa metabólica, durante a prova. Por último, a economia de corrida irá definir como o corredor consegue transformar esta taxa metabólica em movimento.
Os três fatores possuem um teto genético, que eventualmente estabelece quais de nós podem ou não se tornar atletas de altíssimo nível. Dentro da capacidade máxima de cada um, contudo, os três fatores respondem ao treinamento físico de forma diferente (veja o gráfico), o que de certa forma dita a importância que merecem dentro da preparação.
Como dedicar seu tempo
Como visto no gráfico, a melhor alternativa para melhorar a performance é pela fração do VO2max utilizada. Para isso, é preciso treinamento intervalado de alta intensidade. Uma noção predominante hoje é o uso da chamada periodização polarizada, em que 80% do treino é feito em baixa intensidade (ritmo em que é possível manter uma conversa) e 20% em alta intensidade, mais forte que utilizado em provas de 10 km para corredores de elite ou ritmo de 5 km para corredores menos experientes.
Como existe um limite na velocidade de adaptação do organismo, para a grande maioria dos corredores não há motivos para realizar treinos de alta intensidade mais do que duas vezes por semana, pois a carga extra não se transformará em performance, ou proporcionalmente os ganhos serão menores.
Uma sessão de treino intervalado deve conter cerca de 15-30 min de séries em alta intensidade (ritmo de prova de 3-10 km), ou até menos, caso as séries sejam realmente intensas (por exemplo 6 x 30 seg em velocidade quase máxima com 3-4 min de intervalo).
Se o corredor realiza tal série duas vezes por semana, conseguimos calcular o volume semanal por inversão: 15 min são cerca de 3-4 km de corrida, que feitos duas vezes por semana totalizam 6-8 km semanais de alta intensidade. Se este volume representa 20% do treino total (proposta da periodização polarizada), chegamos a um volume médio de 30-40 km semanais como o ideal para que o corredor possa seguir melhorando sua performance, com dois treinos de alta intensidade na semana e uma corrida constante de volume variável. Este volume pode ser até menor, e aí cabe a cada corredor experimentar o que funciona e o que não.
Especificidade do treinamento
Uma das vantagens do treinamento é que as adaptações do organismo não são exclusivas ao objetivo principal da sessão. O treinamento que visa aumentar a fração de utilização do VO2max também terá um efeito sobre o VO2max em si, e o acúmulo de volume possivelmente influenciará a economia de corrida.
A questão principal é: se entre os três fatores a fração de utilização é o mais promissor para ganhos, este deve ser o foco do treinamento, e as demais variáveis irão se ajustar de forma automática, mesmo que em um ritmo mais lento. Imagine o caso do corredor mediano que não apresenta nenhum grande desvio de forma que o coloque em risco de lesão.
Faz sentido dedicar 20-30 minutos por sessão de treino para exercícios de melhora de técnica e realizar sempre treinos de baixa intensidade? A possibilidade de ganho frente ao tempo colocado é ínfima perto do proporcionado pelos trabalhos fortes. O mesmo acontece com volumes absurdos em rodagens de baixa intensidade, aquecimento ou trotes de volta à calma intermináveis, ou ainda 4-5 sessões de alta intensidade na semana. Ou o estímulo é baixo demais para gerar um resultado, ou se está tentando mexer em uma variável que simplesmente não responde mais ao treino ou, ainda, se está adicionando mais carga do que o organismo consegue absorver.
A questão do volume
É importante ter em mente que além da capacidade de manter a provisão de energia para os músculos pela duração a prova, também é necessário manter os músculos produzindo a força necessária para o deslocamento. É neste ponto que entra a importância do volume de treino e dos treinos específicos (como a sequência de longos para a maratona).
É preciso perceber que existe uma diferença entre ser capaz de manter uma velocidade porque o sistema cardiorrespiratório consegue suprir os músculos com o oxigênio e substratos necessários, e manter uma velocidade porque a musculatura possui a capacidade de suportar a produção de força, uma vez que tenha o aporte energético necessário. Quando falamos apenas do primeiro caso, o treino de alta intensidade reina quase absoluto, e duas curtas sessões na semana são o bastante para que o corredor siga melhorando em sua carreira. Quando se fala em resistência à fadiga, por outro lado, é preciso volume. E para ganhar volume, é preciso tempo de treino.
Corrida e saúde
Se o objetivo do corredor for estar em forma, do ponto de vista de saúde, hoje se acredita que três sessões semanais, de cerca de 30 minutos cada são o suficiente (estes números são baseados em estudos populacionais que analisam o risco de mortalidade na população).
Quanto à intensidade, os corredores capazes de sustentar ritmo de 5 min/km por cerca de 10-15 minutos apenas já se encontram no auge da proteção. Quem já enfrentou treinos para maratonas ou meias pode achar pouco, mas para quem é sedentário conquistar esta rotina e condicionamento físico pode ser um sonho distante. Além disso, volumes e/ou intensidades de corrida terão efeito sobre o balanço calórico do corredor, mas não há evidências de que tragam mais benefícios a saúde.