Notícias admin 1 de dezembro de 2011 (0) (139)

Berlim, o crepúsculo dos deuses?

Quando apresentou a sua ópera "O Crepúsculo dos Deuses" pela primeira vez em 1876, o famoso maestro e compositor alemão Richard Wagner certamente não tinha intenções premonitórias em relação ao que aconteceria na 38ª edição da Maratona de Berlim, 135 anos depois, a apenas 190 km da sua Leipzig natal. Obviamente sem nenhuma relação direta, o título da ópera wagneriana talvez sirva à perfeição para resumir a prova, disputada no belíssimo domingo de sol que foi o dia de 25 de setembro na capital alemã.

Os deuses crepusculares em questão são o etíope Haile Gebrselassie – sobretudo ele – e, ok, bem menos, a inglesa Paula Radcliffe. Detentores dos recordes mundiais da distância até o momento da largada da prova, os dois saíram com os seus status de divindades esportivas bem chamuscados pouco mais de duas horas depois. Se Paula, 37 anos, ainda manteve seu recorde (2:15:25, Londres 2003) e conseguiu um honroso terceiro lugar, com o nada desprezível tempo de 2:23:46, Haile, 38 anos, além de abandonar a prova pouco depois do km 35, alegando dificuldades de respiração por uma suposta asma induzida pelo esforço, ainda viu seu recorde de 2:03:59, estabelecido ali mesmo, em 2008, ser melhorado em 21 segundos pelo queniano Patrick Makau, 26 anos, que conquistou o bicampeonato em Berlim com 2:03:38 – em 2010, sob chuva, ele vencera com 2:05:08, a apenas 2 segundos do seu conterrâneo Geoffrey Mutai.

Makau, o mais novo candidato a uma vaga no seleto grupo dos deuses maratonistas, estabeleceu o oitavo recorde mundial da história da Maratona de Berlim, apesar da temperatura um pouco alta – dos 15ºC na largada, às 9h, ela chegou a mais de 23 depois de três horas de prova. Cinco destes recordes foram no masculino, sendo que dois deles pertencem a Haile – o primeiro, 2:04:26, foi em 2007 – e um, ao brasileiro Ronado da Costa (2:06:05, em 1998). Completa a lista o queniano Paul Tergat (2:04:55, em 2003). No feminino, foram três recordes batidos: pela alemã Christa Vahlensieck (2:34:47, em 1977), depois pela queniana Tegla Loroupe (2:20:43, em 1999) e, em 2001, pela japonesa Naoko Takahashi (2:19:46).

 

ZIGUEZAGUE. Se o clima não era o ideal, a organização fez de tudo para que o recorde fosse batido, contratando uma tropa de elite de coelhos quenianos com a missão de passar a meia abaixo dos 62 minutos. Missão dada, missão cumprida: o pelotão líder, puxado pelos coelhos, passou a meia em 61:44, com Haile, o deus em exercício, liderando entre os favoritos. No km 27, no entanto, Makau decidiu acelerar. Haile o acompanhou, mas três quenianos (não coelhos) ali mesmo ficaram para trás: Edwin Kimaiyo (que terminaria em terceiro, com 2:09:50), John Kyui e Emmanuel Samal. Em seguida, o endiabrado queniano começou a correr em ziguezague, com a nítida intenção de desestabilizar Gebrselassie. Este parou pouco depois, fazendo gestos que indicavam dificuldades respiratórias. Após um minuto parado e uma rápida conversa com o diretor da prova, que acompanhava numa bicicleta, Haile resolveu retomar a perseguição a Makau. Mas não adiantou: o deus etíope, autor de 27 quebras de recordes mundiais em diversas distâncias, bicampeão olímpico e tetra mundial dos 10.000 m, acabou desistindo de uma maratona pela segunda vez seguida – a outra fora em Nova York, em novembro de 2010.

Caminho livre para Makau, que fez a segunda meia em 61:54, apenas 10 segundos mais lento do que a primeira, quando contou o tempo todo com a ajuda dos coelhos quenianos. Estes trabalharam até o km 32, mas um deles, Stephen Chemlany, foi até o fim e ficou com a segunda colocação, em 2:07:55. "O ziguezague é uma das minhas táticas, fiz isso para confundi-lo. Eu estava com muita energia e queria cansá-lo. Ele (Haile) queria me usar para manter o ritmo, mas eu queria correr sozinho, então fiz os ziguezagues e acabei perdendo-o de vista", revelou Makau depois da prova.

 

HAILE E PAULA. Ao deus-atleta Haile, que estranhamente não compareceu à coletiva de imprensa depois da prova, resta agora, segundo seu empresário, tentar o índice para as Olimpíadas de Londres na Maratona de Dubai, em 27 de janeiro de 2012, onde ele é tricampeão (2008, 2009 e 2010), com excelentes tempos, dignos de um Deus maratonista: 2:04:53 (ainda hoje o recorde da prova), 2:05:29 e 2:06:09, respectivamente. Haile nunca escondeu que, depois de tantos recordes e medalhas em mundiais e olimpíadas, seu desejo final na carreira é o ouro olímpico na maratona. Com ou sem ele, uma eventual participação em Londres 2012 talvez sele de uma vez o seu destino como atleta em atividade, mas não como Deus – pensando melhor, e contrariando Wagner, deuses nunca perdem a divindade. Assim, para Haile, como Deus das pistas e ruas, nunca haverá crepúsculo – afinal, deuses como ele são eternos.

De volta às maratonas após dar à luz seu segundo filho – depois da pausa pela primeira gravidez, voltou a competir em maratonas vencendo em Nova York, em novembro de 2007, com 2:23:09 (depois seria bicampeã em 2008) -, Paula Radcliffe pelo menos não teve o desgosto de ver seu recorde quebrado, e ainda completou a prova. A queniana Florence Kiplagat, 24 anos, que fazia sua estreia na distância, assumiu logo a liderança do pelotão, apesar de revelar, posteriormente, que sua meta inicial era apenas completar bem, e não vencer. Com 2:19:44, ela estabeleceu o segundo melhor tempo feminino do ano na distância. A cazaque naturalizada alemã Irina Mikitenko, 39 anos, campeã em Berlim em 2008, foi a segunda colocada, com 2:22:18. As seis primeiras correram sub 2h26, o que fez desta edição a mais rápida da história da prova feminina.

 

MINEIROS RÁPIDOS. Com um expressivo contingente de brasileiros entre os 40 mil inscritos, de 125 diferentes países, o que provavelmente fez dela a maratona fora da América Latina com mais atletas brasileiros até hoje – 520 completaram a prova integralmente (ver texto a respeito dos que cortam caminho, na seção Contra-Corrente), contra, por exemplo, 654 na nossa vizinha Buenos Aires, duas semanas depois -, Berlim vem se firmando a cada ano como destino ideal, tantos dos que querem fazer uma boa estreia na distância, quanto dos maratonistas já experientes que buscam melhorar seus tempos. Sem atletas profissionais brasileiros inscritos este ano, muitos amadores dedicados conseguiram excelentes tempos. Entre os mais rápidos, destaque para as seis mulheres que correram abaixo de 3h15, e os sete homens que terminaram abaixo de 3h.

O brasileiro melhor colocado foi o professor de educação física Heleno Fortes, 38 anos, sócio da assessoria HF, de Belo Horizonte, que levou um grupo de 16 pessoas para correr em Berlim. Com o tempo de 2:36:55, ele não conseguiu melhorar seu recorde pessoal de 2:34:16 (Buenos Aires, 2010). "Fui bem até o km 30, depois de passar a meia em 1:17:05. Queria fazer um split negativo (segunda metade mais rápida do que a primeira), mas a partir do km 32 comecei a perder de cinco a sete segundos por km", observa. Sobre o clima, ele não achou que foi o culpado pela sua performance aquém do esperado. "Comparado ao clima que temos normalmente no Brasil, até que estava bom, mas não o ideal para se correr uma maratona; quando fiz Berlim 2008 (tempo de 2:39:17) cheguei a sentir frio antes da largada", relembra. Com um volume semanal que chegou aos 140 km, Heleno treinou especificamente para a prova por dez semanas, incluindo treinos em dois períodos, às terças e quintas. "Minha meta agora é tentar melhorar minha marca em Boston, no ano que vem, para isso vou fazer um trabalho especial que inclua descidas e subidas", revela.

Também de Belo Horizonte veio a melhor brasileira em Berlim 2011, e a única a correr sub 3h. Com 2:59:03, a servidora pública Claudia Helena Dumont, 34 anos, da equipe Teo Esportes, conseguiu seu objetivo duplo na quinta vez em que encarou os 42 km: correr abaixo de 3h e melhorar seu recorde pessoal, de 3:03:18, obtido em Buenos Aires 2010. Apesar de elogiar muito a organização e o entusiasmo do público, ela estranhou a quantidade de corredores na prova: "Eu me senti encaixotada o tempo todo, nos postos de hidratação inclusive tive dificuldade para pegar os copos de água; por outro lado, o fato de ter sempre alguém correndo ao seu lado é muito motivante", reconhece. Com três participações consecutivas na Maratona de Porto Alegre (2008, 2009 e 2010), ela estava mais habituada a provas "desertas", especialmente de público. Claudia se prepara agora para correr a Maratona da Disney, em janeiro de 2012 – este ano ela já havia feito a Meia-Maratona da Disney, onde foi a 12ª no geral feminino e segunda na faixa etária, com 1:26:20.

Outra brasileira que fez um excelente tempo em Berlim foi a advogada carioca Andrea Folegatti, 35 anos, da equipe Filhos do Vento. No entanto, com 3:01:47 ela não melhorou seu recorde pessoal por menos de um minuto na sua sexta maratona. "Larguei muito forte, desobedecendo meu treinador e acabei tendo câibras no km 35; sofri muito e achei que ia fechar em 3h30, então acabei ficando feliz quando vi meu tempo", destacando que aprendeu muito com seus erros na prova. Sua meta agora é correr a Maratona de Paris, em abril de 2012, para tentar completar abaixo das 3h. Animada com a versão em patins da Maratona de Berlim, que acontece tradicionalmente no sábado, véspera da corrida, ela pretende voltar no ano que vem e fazer a dobradinha patins e corrida no fim de semana.

 

SUB 3 HORAS. Companheiro de equipe de Andrea, o gestor de recursos Carlos Woelz, 38 anos, de São Paulo, conseguiu completar em 2:57:03 a sua segunda maratona, ambas em Berlim – em 2010 havia corrido em 3:03:38. Mesmo vindo de uma lesão no pé a cinco semanas da prova, conseguiu manter o condicionamento fazendo treinos no transport e em sessões de spinning na academia. "Cheguei a pensar em não ir, mas o meu treinador insistiu e acabou dando certo", comemora. Sobre o calor, ele lembra que boa parte do percurso é sombreado, mesmo assim reconhece que bebeu muita água. "O grande defeito de Berlim são os copos abertos em que a água é servida, tive que parar em alguns postos para conseguir beber. Mas, fora isso, foi tudo perfeito, inclusive havia muitos brasileiros participando e até tocou Ivete Sangalo no sistema de som pouco antes da largada", diverte-se.

Também da equipe Filhos do Vento, a veterinária Juliana Trindade, 33 anos, do Rio de Janeiro, completou em 3:14:05 a sua terceira maratona – a segunda em Berlim, que já correra em 2010, com 3:24:38. "Achei que ia completar abaixo de 3h10, mas minha pressão caiu e senti tonturas a partir do km 30", conta a atleta, que em 2012 vai começar a se dedicar ao triatlo, sem no entanto abandonar as corridas. Praticante de triatlo – fez o Ironman do Brasil em maio de 2011, em Florianópolis, o analista de sistemas Luis Felipe Wright, 44 anos, acredita que não se preparou tão bem para correr em Berlim a sua décima maratona, a primeira na Alemanha – seu melhor tempo foi conseguido em Nova York, em 2006, com 2:51:07. "Estava estressado do grande volume de treinos que fiz para o Ironman, mesmo assim não me cobrei, tentei fazer a primeira meia forte, em 1h25, e negociar a segunda metade. Até o km 25 estava tranquilo, mas do km 30 em diante eu quebrei", recorda o carioca, que treina com Lauter Nogueira há sete anos. "Cheguei a parar para beber água e baixar um pouco a frequência. Quando terminei, eu, que normalmente volto trotando para o hotel quando faço uma maratona bem treinado, desta vez não aguentei e peguei um táxi-bicicleta para retornar", diz, com bom humor, referindo-se aos táxis de dois lugares puxados por ciclistas, muito comuns nos principais pontos turísticos de algumas capitais europeias.

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