Quase todos esses dados podem ser encontrados em guias turísticos ou livros de história. Outros, porém, só existirão na lembrança daqueles que viveram essa aventura e que, assim como eu, jamais esquecerão.
O outono em Amsterdã é sempre chuvoso, mas no céu daquela manhã de 17 de outubro não havia uma nuvem sequer. O sol deu o ar da graça logo cedo, mas não trouxe o calor que lhe é inerente e com o qual estamos tão acostumados. Era uma manhã clara e iluminada, mas gelada.
Chegamos com bastante antecedência ao local da largada e antes que os milhares de atletas tomassem conta do lugar, o que é comum nas grandes maratonas, tratamos de registrar tudo com nossas máquinas fotográficas. Fotos diante do Estádio Olímpico, sede dos jogos de 1928, dos anéis entrelaçados, do telão e do pórtico; fotos nas arquibancadas, na pista interna, no gramado central. Sempre juntos, sempre abraçados. Essa pose, tão característica entre nós corredores, naquele dia tinha um significado especial. Demonstrava a amizade, a união, o companheirismo, o espírito de equipe e a admiração que sentíamos uns pelos outros, guerreiros prestes a encarar uma importante batalha.
Livramo-nos dos casacos e agasalhos, deixamos as mochilas no guarda-volumes e caminhamos em direção à largada. Desejamos sorte e sucesso uns aos outros, zeramos os relógios e nos misturamos à multidão, agora calados e absortos em nossos próprios pensamentos.
Um tiro anunciou o início da prova e a música "Viva la Vida" tomou conta do ambiente. Não poderia haver trilha sonora mais apropriada. Era mesmo hora de homenagear a vida, de festejar, de agradecer, de comemorar, de celebrar. E celebrar a vida é interagir com as forças da natureza e carregar o corpo de energia. A sensação é de felicidade, de encantamento, de êxtase total. Que momento mágico! Agora eu estava pronta e preparada para mais um desafio.
Os espaços foram se abrindo e a multidão começou a dispersar. O som dos alto-falantes foi sumindo conforme me afastava do estádio e só então voltei à realidade. Fiz minhas orações, liguei o meu tocador de MP3 e ganhei as ruas de Amsterdã.
CORRIDA TURÍSTICA NA VÉSPERA. O percurso é lindo e a estrutura impecável. Aliás, os meus elogios à organização já vinham desde o dia anterior. É de praxe e já faz parte do calendário das mais badaladas provas o encontro entre os corredores, na véspera, para um trote festivo seguido de café da manhã. Foi assim em Berlim, Nova York e Paris, maratonas das quais já participei. Atletas de todas as partes do mundo se reúnem para uma grande confraternização. Mas em Amsterdã foi diferente.
O Good Morning City Run foi uma agradável surpresa e um evento pra lá de divertido. Grupos de dez corredores acompanhados por dois guias trajando coletes reflexivos saíam a cada cinco minutos para um city tour pelas principais atrações turísticas. O ponto de partida era a Praça dos Museus, em frente ao Rijksmuseum e ao enorme letreiro "I AMSTERDAM" localizado no gramado central. Percorremos 6,5 km seguindo canais, cruzando pontes, atravessando bairros, transpondo praças. E enquanto corríamos ouvíamos comentários sobre a cidade, sua história, seus monumentos, suas igrejas e seus heróis, que não são poucos: gênios da pintura como Van Gogh, Rembrandt, Mondrian e Vermeer; do esporte, como Joham Cruijff; da filosofia, como Erasmo de Roterdam; da angústia e da falta de esperança, como a menina Anne Frank.
Aquela população havia sofrido com as guerras religiosas entre católicos e protestantes e padecido sob o domínio espanhol. Tinha enfrentado desavenças com a Grã-Bretanha pela supremacia marítima, visto seu território invadido pela França de Napoleão Bonaparte e dominado pela Alemanha nazista de Hitler, que dizimou cerca de 80 mil judeus em campos de concentração. Hoje, no entanto, demonstra uma alegria e hospitalidade sem igual e orgulha-se de suas conquistas, da liberdade de expressão e do respeito aos direitos humanos.
Os holandeses podiam mesmo sentir admiração por sua encantadora capital, uma das mais charmosas do velho continente. E a cada quilômetro que eu percorria naquela manhã fria de outono mais me convencia disso.
DEVIDAMENTE IDENTIFICADA. Mas eu também tenho orgulho das minhas origens. Participar de uma prova internacional não tem a menor graça se não estiver usando uma camisa do Brasil Além das cores verde, azul e amarelo, a minha trazia o meu nome estampado nas costas. Isso facilitou o reconhecimento e o contato com outros brasileiros e me permitiu receber inúmeras palavras de incentivo e apoio dos espectadores. Ouvir alguém gritar o meu nome ou o do meu país gera uma descarga extra de adrenalina que faz estremecer o corpo e acelerar os batimentos cardíacos.
Atravessei a cidade de leste a oeste, correndo boa parte também por sua zona rural, margeando o Rio Amstel. Fazendas bem estruturadas e pastagens verdejantes recheadas de gado sucediam-se umas às outras. Não faltaram na paisagem os moinhos, tão característicos da região. Barcos com bandas de música subiam e desciam o rio animando os atletas. Diversos remadores pintavam as águas com seus caiaques e coletes coloridos. Ciclistas acompanhavam à distância e os moradores deixavam suas casas para assistir de perto e prestigiar os corredores. A criançada aproveitava para se divertir, oferecendo água, toalhas de papel, frutas ou simplesmente esticando o braço para que lhes tocássemos as mãos.
Concluí a prova em 3h53, meu melhor tempo em maratonas. A música do Coldplay não tocava mais nos alto-falantes do estádio quando cruzei a linha de chegada, mas o momento era novamente de celebrar: "Viva la Vida!"
E agora posso acrescentar mais alguns dados àqueles que citei inicialmente: um objetivo alcançado; um recorde pessoal; sete maratonas concluídas; uma imensa alegria; infinitos e eternos agradecimentos aos meus companheiros Kennedy, Nadja e Brasil, Graça e Ítalo, Carcílio e Neusa, Nélio, Janes e Sylvio; uma tremenda vontade de voltar aos treinos e planejar a próxima viagem. Não tem jeito. Sou uma "maraturista" de carteirinha.