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Quer melhorar? Descanse!

POR FERNANDO BELTRAMI | FISIOLOGIA | JULHO 2009

Entre corredores, poucas coisas podem ser mais comuns do que treinar, ao menos para a maioria. O desejo natural de alcançar tempos cada vez menores em distância cada vez maiores obriga todos a treinar cada vez mais quilômetros por semana, mais dias de pista, mais tiros, mais fundos, mais… cansaço, muito cansaço.


Aqueles que milagrosamente escapam das lesões, simplesmente entram num estado em que, apesar de treinarem cada vez mais, sua performance simplesmente não muda, ou pior, declina. Muitos corredores não percebem que, apesar de não estarem em estado de overtraining severo, estão entrando em uma zona onde não conseguem melhorar sua performance, apesar de treinarem cada vez mais forte, por um simples motivo: não estão descansando adequadamente.

Vamos aos fatos: treinar, em si, não faz de ninguém um bom atleta. Duvida? Então tente o seguinte: em seu próximo treino intenso, logo após acabar a última série, inicie imediatamente um teste de 10 km. O exemplo é extremamente estapafúrdio, eu sei, e você certamente não irá nem tentar fazer isso para responder o óbvio – por favor não tente –  que certamente estes 10 km estarão entre os piores de sua carreira como corredor. Mesmo assim, provo meu ponto. O corredor treinou, e isso não fez dele um corredor melhor. ‘Sim’, você deve estar pensando, ‘mas é preciso deixar que o corredor descanse adequadamente após o treino, para que faça efeito’. Pronto, provei meu ponto duas vezes, e agora você concorda comigo.

Se é tão simples assim concordar neste exemplo, por que alguns corredores insistem em treinar demais, sem o descanso adequado? Deveria ser bastante simples: você treina, sente-se cansado, descansa, sente-se melhor e então treina novamente, quem sabe agora um pouco mais forte. Este é um dos conceitos mais antigos em treinamento, que fala em exposição do organismo a cargas de estresse e uma posterior adaptação do organismo (veja o gráfico abaixo).


Para dar um salto na performance

Digamos que seu estado basal seja o ‘zero’ no gráfico. Após uma sessão de treino (carga estressora), seu condicionamento irá cair, como resultado agudo e desejado da sessão de treino. Com o passar do tempo (o descanso), seu condicionamento irá não somente retornar aos níveis anteriores, como irá apresentar o processo de super-compensação, ou seja, seu condicionamento irá além do nível inicial. Acredita-se que este processo ocorra como uma medida de proteção do organismo, que melhora sua estrutura para o caso de ser novamente exposto à carga estressora. Passado um tempo, seu condicionamento tende a retornar aos níveis iniciais.

Melhora paulatina

O objetivo básico da periodização de treinamento é encaixar as diferentes sessões de treino de forma que o corredor possa super-compensar entre uma sessão e outra, desta forma melhorando constantemente sua performance. Isto só é possível possibilitando o repouso adequado entre as sessões. Caso este período não seja respeitado, a nova carga ocorrerá antes que o organismo tenha sequer voltado ao seu estado prévio, e isto a longo prazo culmina no chamado overtraining.

No segundo gráfico, após uma carga inicial (em azul), temos dois exemplos de cargas posteriores, uma aplicada muito cedo, e tendo por consequência uma nova redução de condicionamento (em verde), e outra aplicada durante a fase de super-compensação (em vermelho), que é o objetivo da periodização.


Momento certo, momento errado

É importante frisar que, apesar de o overtraining como descrito pela literatura ser incomum entre corredores recreacionais, é bastante comum observar-se corredores que não melhoram suas marcas porque treinam demais ou porque não descansam o bastante.

Pensando desta forma, parece bastante simples identificar quando um corredor está respondendo adequadamente aos treinos ou não. Acontece, porém, que o gráfico de super-compensação não necessariamente é aplicado numa base sessão a sessão. É possível, por exemplo, criar uma semana ou mesmo um mês de treinos que gradualmente produzam a carga estressora e que, ao final desta, deverá haver a super-compensação.

Por isso, é preciso que haja uma grande sintonia entre o corredor e o seu treinador, e que o corredor esteja consciente de quais são os períodos em que ele deverá estar cansado e quais são os períodos em que ele deverá estar se sentindo melhor. Isto é fundamental na medida em que às vezes o corredor sente-se pior a cada nova semana de treino, acreditando cegamente que isso faz parte do desafio, que haverá uma luz no fim do túnel e que nos três dias anteriores a sua prova alvo tudo irá se resolver.

Talvez não fosse para ser assim, talvez o treinador nem saiba que seu atleta está respondendo desta forma ao treinamento. O fato de que um corredor é capaz de cumprir sua planilha não quer dizer que isso está melhorando seu condicionamento, quer dizer apenas que ele consegue cumprir a planilha. Por isso, a sensação de cansaço nunca deve ser menosprezada dentro do espírito de ‘faz parte’ ou ‘no pain no gain’ (sem dor não há ganho). Decidir se ‘faz parte’ ou não cabe principalmente ao treinador, que possui uma visão mais global dos planos de treinamento, e é a pessoa mais apta para dizer se a carga está adequada e tudo está andando como deveria ou se realmente é preciso recalibrar as cargas de treino.

Elite dorme, e muito…

Quem não fica impressionado quando lê que os corredores de elite correm 120, 140, 180 km por semana, para não citar outros mais extremos? O pensamento lógico aparentemente é ‘se eles correm tudo isso, eu tenho que tentar também’. Parece loucura, mas acontece, e muito. No entanto, quem já viu em alguma publicação de corrida quantas horas por dia estes corredores dormem?

Todos se preocupam em treinar e tentar copiar as planilhas dos grandes atletas, mas poucos realmente param para pensar que toda a carga irá necessitar de um repouso proporcional para que possa ser benéfica ao corredor. Assim sendo, aqueles que quiserem se aventurar pelo mundo das altas cargas e volumes de treino devem estar preparados para descansar também. E isto hoje em dia não é tão fácil, já que trabalhar, ficar parado no trânsito e afins não contam como descanso.

Numa de suas entrevistas, por exemplo, Haile Geb disse ir pra cama às 21h30 e se levantar às 6h00. Some às nove horas e meia de sono uma tentativa de descansar pelo menos mais duas horas por dia e teremos um descanso total de 11-12 horas diárias. Quantos corredores amadores que correm perto de 100 km semanais têm um descanso sequer próximo disso?

A mensagem que fica é que, independente do tempo que você possui disponível em sua agenda para treinar, para se ter resultados consistentes é preciso também ter consciência de quanto tempo se têm para descansar. De nada adianta aumentar volume e intensidade de treino se a rotina diária não permite incorporar o repouso que estes acréscimos irão exigir para que se revertam em performance. Leve em conta quanto de descanso sua rotina lhe permite e, dentro disso, qual é o seu teto de esforço para continuar evoluindo. Isto irá possibilitar, além de melhores marcas, uma ‘carreira’ muito mais longa e livre de lesões.

Confira matéria original na versão digital da edição 190 da CR (páginas 42-44), julho de 2009.

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