Como tinha por duas vezes, no ano, feito duas maratonas em fins de semana seguidos (Sevilha e Barcelona; Porto Alegre e São Paulo), pensei que nada melhor que repetir a dose, mas alongando um pouco o percurso: fazer duas ultras. Como estaria a trabalho na França no início de dezembro, não foi difícil descobrir duas corridas com este perfil: a SaintéLyon, que já havia corrido há dois anos, e a Route de la lavande, que faria pela primeira vez.
Fiz tudo direitinho. Os treinadores da minha equipe 100 Limites, Weslle e Raimundo, montaram uma planilha assassina, que segui praticamente a risca: algo em torno de 20 km por dia, com longões no fim de semana que, no auge, chegaram a um de 40 km no sábado e outro de 50 km no domingo. Quando terminei as quase sete horas de treino naquele domingo, sabia que estava preparado.
No fim de semana seguinte fiz, de forma extremamente fácil, a Maratona de Curitiba, em pouco mais de 4h20. O editor da CR tem razão: quando estamos nos preparando para uma ultra, fica fácil fazer uma maratona. Depois, foi a loucura de fim de semestre (sou professor), junto com a preparação da viagem. Quase não deu para treinar. Quando cheguei a Paris, o ritmo continuou o mesmo, e só consegui fazer dois treinos curtos, de pouco mais de uma hora. Ainda por cima fiquei resfriado, mas não me incomodei. Meses de treino não iam ser comprometidos por duas semanas de treinos mais leves, ou por um simples resfriadinho. Eu realmente sabia que estava preparado.
SAINTÉLYON: PARA OS ULTRAS, MESMO QUE LENTOS
A SaintéLyon, como o nome já indica, é uma corrida que sai de Saint-Étienne e chega em Lyon. No total são 69 km, por trilhas, estradas de terra e algumas ruas e estradas asfaltadas. O meu Garmin marcou 2 mil metros de desnível positivo no total, e um pouco mais de desnível negativo. Os organizadores chamam a corrida de mítica. Não é para menos. Está em sua 55ª edição, e neste ano, entre corredores e caminhantes solo – como o tempo limite é de 15 horas, muitos fazem a prova caminhando -, e corredores em equipes de dois, três ou quatro, foram mais de 9 mil inscritos! Quando penso quantos se inscrevem nas nossas ultras, no Brasil… É ainda a mais antiga corrida noturna da França, e inspirou várias outras pelo mundo afora, como é o caso da meia-maratona de Extrema – que faço todos os anos, e, mesmo sendo péssimo de trilhas, acho maravilhosa.
No sábado, dia 6 de dezembro, perto das oito horas, saí do hotel em que estava em Lyon para ir para o estádio de Gerlan (do Olympique Leonais). De lá partiam os ônibus para o estádio do Parcexpo de Saint Ettiene, de onde seria a largada da corrida, à meia-noite. Cheguei ao estádio, peguei o meu número, conversei rapidamente com a moça da organização, que não conseguia entender como um brasileiro podia vir de tão longe para correr no frio, arrumei um cantinho no chão, e me deitei. À minha volta, além de vários franceses, podia ouvir pessoas falando alemão, italiano. Pois é, a prova é mesmo um sucesso.
Onze e meia, dei a última passada no banheiro, coloquei gorro, luva e casaco, ajeitei as duas lanternas (uma na cabeça e outra na cintura), e me preparei para a largada. Saí do quentinho e fui para o frio que fazia lá fora: dois graus, descobri um pouco depois. Tocou a buzina, mas ainda levei uns cinco minutos para chegar na largada. Era muita gente! E foi assim ao longo de toda a corrida. Em nenhum momento fiquei sozinho e, em geral, estava acompanhado de muitos.
TRILHAS ENLAMEDAS. A prova começa com uns 6 km de asfalto. Mesmo sendo principalmente em subida, é asfalto. E, queira ou não, eu sou um corredor urbano. Mas aí começam as trilhas, e não terminam mais. Neste ano, devido à chuva, elas estavam muito piores, escorregadias, enlameadas. Em alguns trechos era impossível escapar das poças. Já disse, sou ruim, muito ruim de trilha. Todos me passavam. Felizmente, ainda havia uma multidão atrás de mim. É uma infindável sucessão de trilhas: mais fofas ou mais firmes, com mais ou menos pedras, em aclive e em declive, estreitas ou mais largas. De vez em quando, para desafogo, um breve trecho de asfalto. Mas a felicidade durava pouco.
Eu já sabia que era assim, era a segunda vez, mas parecia que desta vez as trilhas tinham se alongado. Elas só se tornam mais raras a partir do km 36,5: depois são basicamente estradas de terra – firmes – ou estradas de asfalto. O paraíso. Novamente tive a sensação de que esta corrida é feita para corredores como eu. Após ser ultrapassado por todos, chega o asfalto e a vingança. E comecei a ultrapassar, mesmo corredores do revezamento – que usam número vermelho. Sentia-me um super-homem, mas todo o tempo me dizia: devagar, Paulo, ainda falta muito.
E não forcei. Os quilômetros foram se sucedendo, sem grandes dificuldades. Parava nos postos de abastecimento, bebia algo quente – café ou sopa – comia alguma coisa, e ia em frente. Mas aí chegou o km 52. Sempre ouvi falar da famosa "parede", dos 30 ou dos 36 km. Nunca a havia sentido. É porque nunca tinha chegado tão bem tão longe, como nesta prova. Era uma subida difícil, com terra fofa, um breve trecho de trilha. E aí me deu um cansaço medonho. Virei para mim mesmo e disse: come e caminha devagar; a subida vai terminar e o cansaço também. Fiz uma mistura pouco convencional: um gel, um BCAA, um pedaço de lingüiça, um doce à base de gelatina – que havia pegado no último posto -, e um pouco de isotônico. E fui subindo. A terra virou asfalto. Olhei o fim da subida e pensei: na descida você deixa de moleza, e corre. E corri – ou algo parecido com isto, já que estava quase em ritmo de caminhada. Mas ele foi aumentando, a descida era boa, e lá fui eu, chorando de felicidade. Tinha destruído o muro. Agora era só acabar. Faltava tão pouquinho, pouco mais que uma meia… Doce ilusão. Mas é bom se iludir.
Depois do penúltimo abastecimento, eu lembrava que tinha uma subida. Mas, juro, não lembrava que ela era daquele jeito: praticamente 100 m de aclive em 1 km. Dizer que subi andando é mentira: me arrastei, lento, muito lento, mais de 15 minutos. E depois de um planinho, mais subida. E aí, o segundo paraíso: uma descida que não acaba mais. Fui devagar, controlando meu desgaste. Faltavam ainda uns 10 km. E teríamos, eu sabia, escadas, pontes, e um infindável trajeto ao longo do rio Rhone.
Terminou a descida, após algumas escadas. Passei no último posto de abastecimento. Já tinha percebido que seria quase impossível repetir o meu tempo de dois anos antes, 10h30. Mas aí aconteceu o milagre. Quer dizer, não foi milagre, foi o efeito de meses de treino e de uma corrida – nem eu tinha até então notado – bem administrada. Eu comecei a correr. E não é metáfora, pelo menos para mim. Fiz os últimos 5 km num ritmo de 6 minutos por quilômetro. Eu mesmo não acreditava. Nunca terminei uma ultra tão inteiro – ou melhor, só uma vez, mas era uma prova de 24 horas, que é algo totalmente diferente. Não parava de rir e de chorar.
Quando vi o estádio de Gerland, ainda consegui acelerar. Terminei em inacreditáveis 10h23. Estava inteiro e feliz. Peguei a camiseta da prova – eles não dão medalha – felizmente ainda havia a XS, e voltei para o hotel. Ia ter uma semana de muito trabalho, com três conferências diferentes para fazer. Ia poder correr pouco, mas tudo bem. No sábado seguinte, era ir para Avignon, e no domingo seria a segunda corrida. Mas nada é assim tão simples.
ROUTE DE LA LAVANDE: UM DESAFIO A CONCLUIR
No meio da semana descobri que não havia transporte de Avignon para Pernes les Fontaines, de onde sairia a prova. O que fazer? Mandei um email para o organizador, mas não tive resposta. Depois, descobri, ele estava super atarefado, bolando um trajeto alternativo para a última parte da prova. Nevava na França com uma intensidade que não ocorria há muito tempo, e uma parte do trajeto estava com mais de 20 cm de neve. Tentei alugar um carro, mas não deu certo. Não desanimei. Minha esposa, a Fátima, sugeriu que eu fosse de táxi. Ia ficar caro, mas não tinha outro jeito. Não tinha vindo de tão longe para deixar de correr por causa de alguns euros.
O serviço meteorológico na França é excelente. Desde o início da semana que eu sabia que a previsão para domingo era de chuva, talvez com tempestade. Além dos outros itens essenciais – luva, gorro e as lanternas para depois que escurecesse – levei um abrigo semi-impermeável, que coloquei por cima da blusa. Achei que seria o suficiente. Às sete cheguei na largada. Paguei a inscrição, coloquei meu número, conversei um pouco com alguns corredores. Tinha café e bolo, comi. É uma corrida bem mais modesta que a Saintélyon: cerca de 300 corredores, alguns fazendo a prova em trio. Eu tinha medo do tempo de corte do primeiro posto – 3h30 – mas achava que se conseguisse passar por ele, depois seria só administrar, para terminar perto do tempo limite, de dez horas.
Largamos às oito, sem chuva. Mas ela logo chegou. Após de cerca de 3 km de asfalto, começam as trilhas. De início tranquilas, eu consegui correr. A minha roupa, mesmo molhada, era confortável, pois não estava muito frio – algo em torno de 10ºC. A chuva aumentava e diminuía, quase nunca parava. Depois de duas horas de prova, e um bom trecho de asfalto em aclive, as trilhas ficaram péssimas. Em alguns trechos só era possível correr no meio da água. Lembrei da última edição do Praias e Trilhas. A diferença é que em Floripa era primavera, e aqui, quase inverno.
Logo comecei a notar que estava perdendo a sensibilidade nos pés. Movia os dedos sempre que lembrava, e ia em frente. Tivemos de tudo: trechos com água, com lama, descida com pedras escorregadias e soltas, duas árvores caídas no meio do caminho. Minha preocupação era só com o tempo de corte. Sempre que era possível, corria, mesmo em subidas. Começava a achar quase impossível conseguir. Mas não ia desistir. Perto do km 21, com 3h15 de prova, cheguei numa estrada de terra, firme e em declive. Corri o mais rápido que podia. Eu não ia ser cortado. Vi o posto, à distância. Ia chegar uns 3 minutos depois do tempo limite.
QUATRO SANDUÍCHES E CHÁ. Cheguei no posto, e perguntaram se eu queria continuar. Isso é pergunta que se faça? Claro que sim, havia me matado para isto! Muitos tinham ali desistido. Disseram que a prova nunca tinha ocorrido com tempo tão ruim. Comi uns quatro sanduíches – nem tinha notado que estava com tanta fome – tomei chá quente, coloquei um cubo de açúcar na boca, e lá fui eu.
Nesta hora éramos seis que tínhamos saído praticamente juntos. Três logo se distanciaram, um quarto também acelerou, e eu fiquei alternando posições com um outro corredor. Era uma longa, infindável subida, numa trilha com muitas pedras, um tipo de terreno em que nunca tinha corrido. Logo no meio das pedras começou a surgir uma aguinha, que foi aumentando. A chuva tinha piorado muito, cheguei a ouvir dois trovões, e o vento por vezes ficava tão forte que era quase impossível andar. A paisagem em torno foi ficando branca, e passado um tempo lá estava eu me arrastando no meio da água, cercado de neve por todos os lados. Molhado, morrendo de frio, perdendo a sensibilidade nos pés e nas mãos.
Em algum momento a subida acaba, começo a descer, e esquenta um pouco, pensei. Meu queixo batia involuntariamente. Acho que nunca senti tanto frio. Logo fui alcançado pelo rapaz que estava tirando as tiras de plástico que marcavam o caminho. Eu era o último! Olhei o relógio, e pensei que apesar de tudo, ainda seria possível terminar nas dez horas. Já havia passado a metade da prova, em menos de cinco horas. Pedi para o rapaz me ajudar: eu não conseguia mais abrir o zíper para pegar um gel. Ele pegou para mim. E eu fui comendo, devagar. E o topo, enfim, chegou. Havia subido 800 m desde o abastecimento. E cá estava eu, molhado, cercado de neve por todos os lados.
Mas na minha frente havia uma descida, numa estrada de terra, enlameada, mas transitável. Comecei a correr. Passei por um posto em que só tinha água, suco e refrigerante, tomei um gole de suco. Perguntaram se eu ia continuar. Disse que sim. E ainda insistiram: Tem certeza? Estava morrendo de frio, muito cansado, mas tinha certeza. E continuei. Não sei quanto tempo se passou, mas não foi muito. Apareceu um carro do meu lado, e me disseram: pode parar de correr, entre no carro, a corrida foi cancelada.
Era para ficar chateado. Mas não fiquei. Um carro quentinho era quase o paraíso. Eu devia estar transparente, pois as duas moças que estavam no carro – da Cruz Branca – não paravam de se preocupar comigo, mesmo tendo recolhido outros dois corredores. Deram dois cobertores para me cobrir, um bolinho para comer, e disseram que logo íamos chegar em um ponto de apoio que, como toda a região, estava sem luz.
Quando ia sair do carro, chamaram um rapaz para me ajudar. Não recusei. No posto, trocaram a minha camisa por uma seca (que eu tinha na mochila) e um paramédico ficou fazendo massagem nos meus pés. Eles estavam mesmo transparentes. Depois de muitos sanduíches e uns dois cafés, me senti quase inteiro. Fui levado, junto com outro corredor, para a chegada. Lá, também sem luz, tinha comida e vinho! Conversei com pessoas da organização, e junto com alguns corredores descemos num utilitário para Pernes. E aí começou a nevar. Foi lindo, dentro de um carro quentinho, vendo a neve cair. Se a prova não tivesse sido cancelada eu ainda estaria correndo. É, realmente não havia a mínima condição dela continuar. Um corredor depois me levou até o hotel. Tirando uma dor na perna direita – que passou depois de dois dias – eu estava inteiro.
Pois é, não consegui realizar o meu plano. Acabei fazendo só uma ultra e meia. Mas não tem problema. Com certeza foi um fim de temporada inesquecível. Agora é descansar um pouco, e começar a pensar no ano que vem. Outros desafios virão. É só ir me preparando para eles.
SITES DAS PROVAS:
SaintéLyon: www.saintelyon.com/course-raid-nocturne
Route de la Lavande: www.rapo84.com
Paulo Motta Oliveira é assinante de São Paulo