Especial admin 4 de outubro de 2010 (3) (229)

Treinando a mente para a corrida

O treinamento cerebral não substitui, é claro, a preparação física. Ao contrário, é um aliado do treino de corrida, potencializando seus resultados. Assim como no treino físico, é preciso disciplina e regularidade para se conseguir os benefícios esperados, e também controle para não exagerar.

Basicamente, o método aborda exercícios de visualização e ensaio de situações de corrida e de treino, que mudam a postura do corpo, a contração dos músculos e, principalmente, a maneira como o esportista vai encarar seu desafio.

O norte-americano Matt Fitzgerald já escreveu sete livros sobre treinos de corrida e triatlo, três deles para a editora da revista Runner's World. Este ano ele lançou um trabalho totalmente voltado ao treino cerebral para corredores (Brain Training For Runners – ainda não traduzido para o português). Nele, o treinador dá dicas sobre a propriocepção, ou a capacidade de conhecer melhor o corpo para poder tirar o melhor dele nas corridas (o dicionário "Houaiss" define propriocepção como a sensibilidade própria aos ossos, músculos, tendões e articulações, que fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no espaço etc.). 

Algumas das práticas recomendadas pelo autor estão reproduzidas nesta matéria. Na introdução a estes exercícios, Fitzgerald dá seu depoimento pessoal e também algumas recomendações. "Eu tenho usado a propriocepção no meu treino, nos últimos quatro anos, e acho que funciona realmente. Seu uso de forma efetiva requer concentração e disciplina", escreve.

"Nossa tendência natural é deixar os pensamentos livres, sem um objetivo enquanto corremos. Mas, se você está querendo melhorar seu rendimento você deve fazer um esforço de concentração. A melhora não ocorre da noite para o dia, já que seus hábitos seguem um modelo que já está de tal forma arraigado, que se tornam praticamente automáticos. Você vai conseguir resultados melhores se usar as dicas pelo menos três vezes por semana, e se concentrar em uma delas de cada vez, ao longo de toda a corrida", aconselha.

O autor diz ainda que os exercícios requerem que você use seus músculos de uma forma diferente da que está acostumado e, por isso, alguns deles podem se cansar mais rapidamente. Por isso, é melhor começar a praticar o treinamento cerebral usando cada dica específica apenas em corridas curtas de recuperação. E não é preciso esperar a perfeição de uma das dicas antes de passar para outra. Ao contrário, o melhor é um rodízio com todas elas, usando-as de forma alternada, para extrair os benefícios de cada uma de forma global.

Faz de conta. Renato Dutra, ex-diretor técnico da Associação dos Treinadores de Corredores de Rua (ATC) e que integra a equipe da Ação Total, sentiu necessidade de conhecer melhor a força do cérebro para usá-la na corrida. Por isso, integrou um grupo de psicologia do esporte durante um ano e chegou a dar treinos específicos sobre o assunto. Ele diz que ainda hoje se beneficia do que aprendeu, apesar de não ter mais como prioridade passar os conhecimentos adiante. "Poucas pessoas têm disciplina para reservar um tempo antes da corrida e dizer: ‘Vou fazer um ensaio de cinco minutos sobre a prova antes de começar a correr'. Muita gente tem dificuldade de lidar com o abstrato", afirma.

Para encorajar os corredores, Fitzgerald ressalta a integração do cérebro com os músculos. Ele defende a união dos dois treinos, para que eles não sejam vistos de forma isolada pelo corredor, que provavelmente negligenciaria a parte cerebral/motivacional. "Quando o corredor faz o chamado treinamento físico, ele também está treinando o cérebro, junto com os músculos, o coração etc. Esteja consciente disso ou não, sem o cérebro o corredor não pode aumentar os batimentos cardíacos e a respiração para correr mais rápido, ou controlar as passadas de maneira adequada, coordenar os movimentos ou ainda tomar a decisão de buscar o corredor que está à sua frente", destaca.

"O treinamento cerebral não deixa a preparação física em segundo plano. Apenas reconhece que o cérebro controla os aspectos físicos e mentais da corrida. Isso requer uma mudança de perspectiva, mais que qualquer outra coisa", completa Fitzgerald.

Imaginação. Mesmo com os argumentos de Fitzgerald, pessoas dispostas a experimentar o treinamento cerebral podem ter dificuldade e, portanto, precisarão ensaiar antes de aplicar as técnicas automaticamente durante a corrida.

Os exercícios que Renato Dutra aprendeu com os psicólogos são diferentes dos indicados pelo norte-americano em seu livro, por estarem mais ligados ao abstrato. Enquanto Fitzgerald recomenda que as imagens criadas pelo corredor sejam convertidas em uma mudança de movimento e/ou de postura durante o treino, o processo de mentalização sugerido pelo brasileiro lida mais com a motivação.

"Os psicólogos com quem eu trabalhei dizem que você pode imaginar uma conversa com uma pessoa querida, depois se imaginar entrando na pista para um treino e visualizar o que vai acontecer. Imaginar o primeiro tiro de 400 metros mais rápido e os seguintes, até o décimo tiro, por exemplo."

Quem já tem mais facilidade, incorpora essa visualização diretamente nos treinos, melhorando seu rendimento. "Mas você precisa de um tempo para assimilar tudo isso; não pode fazer antes da prova e querer os resultados já em seguida. É uma prática cotidiana".

O treinador cita um best-seller do canadense Terry Orlick para justificar a importância de ter também um preparo mental. "No livro In Porsuit of Excellence ("Em Busca da Excelência", em português) ele compara um grupo de atletas que fizeram um trabalho mental com os que não fizeram e percebe um desempenho excelente do primeiro grupo. Isso mostra que o que diferencia um campeão hoje é a atitude, já que, fisicamente, todos treinam", afirma.

Ele diz ter usado as técnicas em seus próprios treinos e percebido os benefícios. "Senti muita diferença na questão do conforto durante a prova e também fiquei mais preparado para lidar com várias situações. Em uma maratona, por exemplo, o corredor enfrenta uma fadiga grande, está sujeito à desidratação e imprevistos como bolhas, quedas no percurso. Com os ensaios, fica mais apto a lidar com essas questões, se o treino mental for abrangente."

É exatamente para estar mais preparado para lidar com as dificuldades do treino ou da corrida que Dutra recomenda a preparação mental. Ela também pode ser voltada para a performance, a melhora de tempo, mas ele adverte que há riscos envolvidos nesta vertente do treinamento. Um dos pontos de perigo está na superação do cansaço. Ao sentir os primeiros sinais de fadiga, o corredor pode saber que tem condições de ir além. Se estiver consciente de seus limites, vai saber até onde ir, mas pode ultrapassá-los, o que trará conseqüências ruins, como risco maior de lesão ou sobrecarga do organismo.

"Quando a gente corre muito tempo o corpo manda sinais para parar e, com isso, evitar a debilitação. O treino mental faz o corredor chegar mais perto do limite, o que vai exigir que ele entre na reserva funcional do organismo. O atleta vai flertar mais com o perigo, porque vai além", diz Dutra.

"Por isso, o foco do trabalho tem que ficar claro para o atleta. Eu acredito no uso do treinamento mental para ter menos ansiedade na prova e enfrentar melhor os imprevistos. Não precisa ser voltado só para performance, mas pode ser para curtir melhor a prova, por exemplo", completa.

Exercícios de treinamento cerebral

Em seu livro Brain Training For Runners, o treinador Matt Fitzgerald ensina uma série de técnicas para o corredor usar durante o treino e melhorar seu desempenho, aumentando sua resistência. "O livro é voltado para quem faz corridas de rua de 5 km até maratona", lembra.

Ele liberou algumas sugestões de treino para serem publicadas na Contra-Relógio. E explicou que elas devem ser utilizadas de forma alternada; ou seja, não é preciso treinar o mesmo exercício até fazê-lo com perfeição. Ao contrário, o ideal, segundo o autor, é se beneficiar de todas as dicas de forma regular, sem negligenciar nenhuma delas por muito tempo. O treinador diz que a prática constante é importante para lembrar de usar o corpo da maneira correta, especialmente quando se está cansado.

"O uso efetivo das técnicas de propriocepção requer concentração e disciplina. Nossa tendência natural é deixar os pensamentos livres enquanto corremos. Mas, se você está disposto a melhorar seu desempenho deve se concentrar e executar uma dica centenas de vezes. Os resultados não aparecem da noite para o dia", ressalta. Confira algumas das sugestões:

Caindo pra frente. Incline o corpo todo um pouco pra frente enquanto estiver correndo. Não se curve na cintura, mas incline o corpo todo a partir do tornozelo. Quando você começar a se sentir mais confortável, pode exagerar um pouco mais na inclinação, como se fosse cair. Então volte para o ponto em que se sinta confortável e sob controle, deixando que a gravidade ainda pareça estar empurrando seu corpo pra frente.

Esta dica ajuda a corrigir a passada longa, porque quando você está correndo um pouco inclinado, seus pés vão ficar naturalmente perto do seu centro de gravidade.

Umbigo e espinha. Concentre-se em puxar seu umbigo para dentro, na direção da coluna vertebral, enquanto estiver correndo. Isso vai ativar os músculos abdominais mais profundos que são importantes para dar equilíbrio à pélvis e à lombar.

Com isso você vai reduzir as rotações desnecessárias (e muitas vezes assimétricas) dos quadris e coluna, conseguindo uma estabilidade melhor e transferindo com mais eficiência a força entre os membros superiores e as pernas.

Correndo na água. Imagine que você está correndo sobre a água e que seu objetivo é não afundar. Para isso, você deve aplicar o máximo de força no solo em um tempo mínimo de contato, como uma pedra saltando sobre a água. Tente fazer com que seus pés saltem sobre o solo de forma rápida e com leveza, ainda que com força.

Esse exercício vai ensiná-lo a fortalecer sua passada, minimizando o contato com o solo e facilitando a propulsão.

Puxando a estrada. Imagine que seu percurso de corrida é uma esteira gigante não-motorizada. Com isso, para correr sem sair do lugar, você terá de empurrar a cinta para trás com os pés. Imagine-se fazendo o mesmo com o percurso quando estiver correndo ao ar livre. Assim, você não anda para trás, mas estimula esta força ao "empurrar" o caminho para trás com cada um dos pés.

Esta dica vai ensiná-lo a gerar a propulsão mais cedo, fortalecer sua passada e reduzir o tempo de contato com o solo.

Martelando o chão. Muitos corredores aprendem a correr o mais suavemente possível. Na verdade, a velocidade na corrida é quase inteiramente uma questão de como você pisa no chão com seus pés. O corredor típico, especialmente o que tem passadas largas, deixa seu pé cair no chão de forma passiva. Em vez disso, pratique a forma com que você coloca o pé no chão. Tente colocar um pouco de força para trás no movimento, em vez de fazê-lo de forma inteiramente vertical.

Se você pisa no solo primeiro com o calcanhar, trabalhe a redução das passadas e a melhora da pisada antes de se dedicar a esta dica. Depois, ela vai ajudá-lo a fortalecer a passada, ganhar propulsão e reduzir o tempo de contato com o solo.

Direcionando a coxa. Concentre-se em colocar a coxa da perna de impulso um pouco mais pra frente do que você geralmente faz. Este movimento forçado para frente e para cima vai criar um contrabalanço para baixo e para trás na perna de apoio, na hora do contato com o solo (é uma ação semelhante ao movimento do braço livre em oposição ao que está lançando uma bola com força).

Você pode se concentrar no trabalho em apenas uma coxa ou nas duas, se conseguir (com uma média de 150 passadas por minuto, pode ser difícil se concentrar o suficiente nas duas pernas).

Este exercício vai ajudá-lo a coordenar melhor os movimentos das pernas e melhorar a flexibilidade da passada.

Pés desengonçados. Os tênis restringem muito o movimento natural dos pés. Para recuperar parte do que é perdido, além de escolher um modelo que deixe o pé livre para executar os movimentos, você também pode fazer alguns exercícios de auxílio. Um deles é se concentrar em deixar os pés o mais "desengonçados" ou "frouxos" possível enquanto estiver correndo.

Você ainda deve bater com força no solo, mas usando os músculos superiores da perna para isso, deixando os pés relaxados.

Desta forma, você permite que os pés absorvam e transfiram a força do impacto de forma a reduzir o estresse em tecidos específicos e aumentar a quantidade de energia elástica livre que você poderá guardar e reutilizar.

Compressão das extremidades. No instante imediatamente antes do pé fazer o contato com o solo, contraia os músculos do quadril e das nádegas do mesmo lado do corpo e os mantenha assim durante toda a passada.

Este exercício vai torná-lo apto a buscar mais estabilidade nos quadris, pélvis, coluna e até mesmo joelhos quando estiver correndo, além de minimizar as rotações desnecessárias.

Percebendo a simetria. Canalize sua atenção para uma parte específica do seu corpo, ou de sua passada, tanto do lado esquerdo como do direito. Concentre-se, por exemplo, na sensação do balanço dos braços, no movimento pra frente que a perna faz durante a passada, no movimento dos pés etc. Compare as sensações registradas do lado direito com as do lado esquerdo. Se houver discrepância, ajuste sua passada de forma a eliminá-la ou ao menos reduzi-la. Altere principalmente a passada do lado em que se sente menos confortável, para que ele passe a ser mais parecida com o outro lado, com o qual se sente melhor.

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3 Comments on “Treinando a mente para a corrida

  1. Todos nós, em algum momento de nossos treinos e competiçôes ja até observamos algumas dessas dicas, mas o operacional de atentarmos quase que exclusivamente na redução de tempo em virtude de melhores resultados , nos faz tornar tudo isso secundário, o que comprovadamente não é.

  2. Ótimas dicas,só não entendi no que devo me concentrar na hora que eu estiver correndo.

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