Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (578)

Transpirar é muito bom e fundamental ao se correr, porém…

Tanta pesquisa trouxe novidades interessantes, entre elas o alerta sobre o verdadeiro atentado à saúde de uma prática até comum, que é a da pessoa enrolar o corpo em plástico, vestir agasalhos e sair para correr na esperança (infrutífera) de perder peso. Essas pesquisas também nos alertaram sobre os benefícios de correr com roupas claras, de evitar os horários mais quentes do dia para treinar e de vários outros detalhes que ajudaram a entender melhor a relação entre o treino e o calor.

Como estamos no verão de um país tropical, vale a pena abordar alguns tópicos fundamentais para que a prática esportiva nestes meses seja antes de tudo saudável. Vamos a eles, começando pela hidratação.

Calor interno. De todas as mudanças provocadas, uma que merece registro é a importância que passou a ter a hidratação. Saímos de uma situação em que não se bebia durante as corridas para o extremo oposto. A mudança refrescou as corridas de muita gente e, certamente, trouxe mais conforto ao esporte.

Mas quem corre sabe que, mesmo com toda a água, é mais confortável e produtivo correr em um clima mais ameno. E isso acontece porque o desconforto provocado pelo calor não está ligado exclusivamente à falta de água, mas ao calor interno do corpo.

Correr é uma atividade que produz calor, independente do clima, e isso ocorre porque a maior parte do trabalho muscular, cerca de 70%, é transformada em calor. Só os 30% restantes são convertidos em movimento. Como se vê, nosso corpo é extremamente eficiente em produzir calor, o que é bom, já que somos animais de sangue quente. Acontece que o calor produzido durante a corrida pode extrapolar o limite dentro do qual a vida é possível.

Quando o calor interno, que é a soma do calor produzido pelo trabalho muscular com o do ambiente, ultrapassa a capacidade do corpo se resfriar, podem ocorrer danos à saúde. Tomando por base nossa temperatura de repouso, que é por volta de 36,5°C, aumentos de 2 a 3°C geralmente não acarretam qualquer efeito maléfico; no entanto, variações de 5°C podem provocar disfunção do sistema nervoso central, com náusea, tontura e redução da taxa de transpiração. Por fim, aumentos de 7 a 8°C podem causar lesão celular, lesão cerebral permanente e, inclusive, morte.

Capacidade de regulagem. Apesar de o nosso organismo ser pouco tolerante a pequenos aumentos de temperatura interna, somos capazes de suportar situações extremas, como as vividas pelos atletas que participam de corridas como a do deserto do Saara (Marathon des Sables), que é um evento em que o competidor corre/anda mais de 200 km por dias seguidos com temperaturas que não raro ultrapassam os 50°C. Essa capacidade extraordinária do ser humano só é possível porque possuímos mecanismos que resfriam o nosso corpo, sendo o suor o principal deles.

Dada a capacidade de trabalho do corpo em ambientes tão hostis, a despeito da sua pouca tolerância a pequenas variações de temperatura interna, percebemos a importância desse mecanismo de refrigeração que é o suor, mecanismo esse que, mal comparando, lembra um radiador convencional. Aquele dos motores à combustão.

Nesses motores, o funcionamento é basicamente o seguinte: a água aquecida flui do motor para o radiador, onde é resfriada pela ação do ar. Uma vez resfriada, volta novamente para o motor em um ciclo contínuo de aquecimento / resfriamento. Sem esse mecanismo, os motores não suportariam trabalhos em alta rotação por longos períodos.

Tal qual o conjunto motor / radiador, nossa "máquina" não suportaria trabalhar em alta rotação por longos períodos, não fosse o nosso sistema de refrigeração: nosso radiador biológico. O sangue aquecido flui do motor (músculos) para o radiador (pele), onde, por causa da ação do ar sobre o suor, é resfriado, voltando para o interior do corpo refrigerado e recomeçando o ciclo. O resfriamento da pele ocorre quando o suor produzido evapora e leva consigo o calor do corpo.

Pequenas adaptações tornam esse mecanismo ainda mais eficiente. Com o exercício físico, o sangue é desviado dos órgãos não essenciais para onde ele é realmente importante para a atividade, ou seja, para os músculos e para a pele. Ao mesmo tempo, ocorre aumento da produção de suor e do diâmetro dos vasos sanguíneos que conduzem o sangue para a pele, o que permite maior troca de calor.

Problemas da desidratação. Mas se transpirar é importante para mantermos o resfriamento da máquina em um nível tolerável, não podemos perder de vista que ao suar nos desidratamos, isso é, perdemos água (e sal), e um nível elevado de desidratação provoca redução do fluxo de sangue para a pele o que, conseqüentemente, aumenta o calor interno.

A redução dos níveis de água do organismo também está relacionada à redução da performance do atleta. É sabido que 5% de perda do peso corporal por desidratação podem comprometer a performance em até 30%.

Apesar da importância da hidratação, outros fatores são tão ou mais importantes para o aumento de temperatura do corpo. Os principais são: a velocidade de corrida do atleta, as condições climáticas do dia e a predisposição do indivíduo.

Para conseguir maior velocidade, maior é a atividade muscular, e, conseqüentemente, maior é a produção de calor. A predisposição, por sua vez, está relacionada a fatores como o genético. Por fim, as condições climáticas dizem respeito, principalmente, à temperatura e à saturação de água no ambiente.

Condições climáticas. O último fator mencionado – condições climáticas – desempenha um papel crucial, muito embora a sua importância não seja bem percebida por muitos. Para melhor esclarecer essa questão, utilizarei o seguinte recurso. Responda em qual das duas situações abaixo a refrigeração do corpo é mais eficiente?

SITUAÇÃO A: Corrida no deserto com o sol a pino, na disputa de uma competição de 10 km em que você tenta o seu melhor tempo;

SITUAÇÃO B: Corrida dos mesmos 10 km, em que você tenta o seu melhor tempo. O horário da corrida é o mesmo da situação anterior, só que agora, troque o sol a pino por um tempo nublado e não tão quente quanto na situação anterior. Para encerrar, imagine essa corrida à beira da praia.

Na corrida da situação B você tem a maior chance de fazer o seu pior tempo. Não, você não leu errado. É isso mesmo. A situação B é aquela em que a sua refrigeração tem mais chances de ser comprometida e, como você leu lá atrás, se a refrigeração é comprometida, a sua performance também o é.

Para os que duvidam, aí vai a explicação: no começo da matéria, vimos que o suor, ao entrar em contato com o ar evapora e com isso tira calor do corpo. Acontece que a evaporação é mais eficiente quanto mais seco for o ar. O ar do deserto é seco. O ar próximo à praia, principalmente em dias nublados, é úmido. Essa é a razão para muita gente sentir-se desconfortável ao correr no litoral, principalmente em dias nublados. Nessas ocasiões, é comum a pessoa transpirar muito mais do que o normal; o suor escorre em abundância, mas quase não evapora. Para piorar, como a água não evapora, mais quente fica o corpo. Mais quente o corpo, maior a quantidade de suor vertido. E assim por diante, em um ciclo vicioso que gera um grande desconforto.

O desconforto provocado em ambientes quentes / úmidos decorre da dificuldade de nos livrarmos do excesso de calor interno. Em relação a isso, podem ser identificadas situações que prejudicam e outras que favorecem essa remoção de calor.

As situações que prejudicam a remoção do calor podem ser divididas assim: as que reduzem a eficiência do sistema de refrigeração e as que bloqueiam a sua ação.

A Umidade Relativa do Ar – URA – é um fator que reduz a eficiência do nosso mecanismo de refrigeração. Repare que aqui há água suficiente para o corpo transpirar em abundância, mas o suor não evapora adequadamente, de forma que não rouba calor da pele.

A desidratação, por outro lado, é um fator que bloqueia a ação de refrigeração. Não se trata, nesse caso, do suor não roubar calor do corpo, mas do corpo não ser capaz de produzir suor em quantidade suficiente para realizar uma refrigeração adequada.

O uso de protetor solar à base de óleo e o uso de desodorante antitranspirante são também fatores, de muito menor alcance é verdade, que comprometem a refrigeração. De qualquer forma, dependendo das condições da sua próxima corrida, vale a pena pensar nesses detalhes.

Mas se existem fatores que diminuem a eficiência do nosso mecanismo de refrigeração, há outros que melhoram a sua eficiência. Nesse caso, estamos falando de um processo chamado de aclimatação.

Aclimatação. Apesar de ser mais do que simplesmente sair correndo debaixo do sol forte, a aclimatação é, em linhas gerais, um processo de exposição progressiva do organismo a temperaturas elevadas e, durante esse processo de adaptação, que dura entre 7 e 14 dias, o suor passa a ser produzido mais cedo durante o exercício, em maior quantidade (até 3 vezes mais) e com menor concentração de sal.

Perceba dois aspectos importantes da adaptação: o organismo passa a produzir suor mais cedo e o produz em maior quantidade. Chamo a atenção para esses detalhes para que fique claro que o organismo adaptado é mais eficiente em termos de controle de temperatura. Isso não quer dizer, no entanto, que o organismo adaptado a correr em ambientes quentes precise de menor quantidade de água. Pelo contrário, como há aumento da produção de suor, mais água é necessária para o funcionamento ótimo desse mecanismo.

Aqui entramos na questão do consumo de água durante a atividade. Pontuamos que a hidratação não é o fator mais importante para o aumento de temperatura interna do corpo. Nem por isso, contudo, ela pode ser negligenciada e, como também foi destacado no início da matéria, já evoluímos bastante nesse quesito, de forma que já é consenso entre os corredores que a hidratação é importante. Por outro lado, parece não haver consenso em outros temas relacionados, entre esses o quanto, o quando e o que beber, que ainda são assuntos controversos.

Bom senso na hidratação. Como já foi bem destacado por esta revista (edição de novembro), a hidratação não deve ser tratada como fórmula matemática, em vez disso, deve ser encarada com bom senso. Como bom senso é medida individual, apresento estes fatores como importantes para balizar o julgamento:

1) o tempo de competição para determinado atleta;

2) as condições do clima, sendo a URA o fator mais relevante;

3) o nível de hidratação desse atleta no início da prova;

4) o nível de condicionamento / adaptação do atleta para a prova.

Chamo atenção para um detalhe em relação ao item 1. Não importa o tamanho da prova, mas o tempo que o atleta vai passar nela. Em provas de 10 km, por exemplo, existem atletas que terminam a prova próximo aos 30 minutos, enquanto outros a concluem em mais de uma hora.

Dependendo da combinação das variáveis acima, existirão situações em que a hidratação durante a atividade é até dispensável. Em outras, a hidratação adquire importância vital, devendo ser tratada como parte da estratégia de competição.

Quando os estudos começaram a mostrar a importância da hidratação durante a atividade, logo foi proposto que mais era melhor. Assim, em pouco tempo já era corrente a idéia de que os atletas tinham que beber o máximo que pudessem. Isso incluía consumir líquidos antes, durante e depois das corridas; treinos ou competições. A idéia era beber por beber, com ou sem sede. Mas o tempo passou e novas pesquisas foram aparando as arestas dos exageros.

Entre os exageros, a idéia de beber em excesso foi questionada. Parodiando Nélson Rodrigues, arrisco-me a dizer que todo o exagero é burro. Assim foi com a ditadura do "sem água", assim se repetiu com a do "máximo de água". A questão do excesso do consumo foi trazida pela Contra-Relógio ao público já em 1999. Na sua edição de n° 69, junho, pág. 47, a revista chamou a atenção para o fenômeno da hiponatremia alertado pelo Dr. Tim Noakes. No seu livro, The Lore of Running, Noakes destaca a possibilidade de o excesso de água provocar intoxicação. E mais uma vez, na edição de novembro último, a matéria de capa aborda o tema.

Hiponatremia. O tema é apresentado assim por Noakes: "Apenas recentemente foi notado o perigo de consumir muito fluido, especialmente durante uma ultramaratona (beber 1 litro ou mais em vez de 500 ml por hora)." Em outro ponto ele se refere a alguns casos: "foram relatados quatro casos, dois sérios, de corredores que desenvolveram hiponatremia (intoxicação pela água) durante ultramaratonas e ultratriatlos (…)". Na seqüência, são descritas ocorrências na Comrades (ultramaratona na África do Sul). Em relação aos casos apresentados, Noakes assegura que "todos esses corredores desenvolveram essa condição (hiponatremia) porque não foram capazes de prevenir o aumento do volume sanguíneo seguido da diluição dos níveis [sangüíneos] de sódio [sal] quando eles ingeriram muito fluido durante exercícios prolongados." Por fim, ele aponta que "os corredores afetados por hiponatremia não são os da elite, mas aqueles que completam suas ultramaratonas entre 9 e 11 horas. Sua velocidade mais lenta permite a esses corredores o consumo de fluido de um maior número de posto de abastecimento durante as corridas".

Vale ressaltar dois aspectos descritos acima. 1) a hiponatremia ocorre em eventos de longa duração. 2) Noakes refere-se a fluidos, mas o termo a ser lido é "água". A atividade física por longos períodos produz grande quantidade de suor, pelo qual perdemos água e sal. Com o consumo exclusivo de água por longos períodos, ocorre a redução do sal no sangue e é a isso que Noakes chama de intoxicação pela água.

Existe a possibilidade da hiponatremia acontecer em eventos mais curtos, mas isso é muito incomum. Casos raros assim poderiam estar ligados a uma excessiva produção de suor em atletas que ingerissem muita água e já apresentassem um quadro de redução do nível de sal no sangue no início da competição.

Equívocos. Quero aqui abrir um parêntese para registrar que leituras apressadas ou superficiais quase sempre resultam em equívocos. Quando foi estabelecida a importância da hidratação durante as atividades físicas, logo virou verdade absoluta que todos, e em qualquer atividade, deveriam se hidratar. A novidade não poupou nem a sede. Beba mesmo sem sede, era a palavra de ordem. Para fechar o parêntese, quero deixar destacado que água não faz mal, o que pode fazer mal é a redução da concentração de sal no sangue provocada pelo consumo excessivo de água.

E depois da corrida? O consumo de água pura depois das corridas pode ser substituído, e é até aconselhável que o seja, por bebidas desportivas (isotônicas). A razão para isso é que essas bebidas contêm sal, que ajuda a reter a água no organismo. Outra razão é que essas bebidas são mais saborosas, de forma que favorecem o consumo de líquidos. A propósito, a menos que haja alguma recomendação de seu médico em contrário, não é contra-indicado o consumo desse tipo de bebida durante os treinos e competições.

Conclusões. A aclimatação é um importante recurso para quem vai competir em climas mais quentes/úmidos. A hidratação, apesar de não ser o fator mais importante para a manutenção de temperatura do corpo, não pode ser negligenciada. Nesse caso, deu sede, hidrate-se. Mesmo que não haja sede, não há nada contra beber. O que não convém é beber demais a ponto de ficar com o estômago "doendo" e comprometer a corrida. Regra geral, não se deve começar uma corrida com sede. Há competições curtas em que o atleta pode até optar por não se hidratar durante a prova e há competições em que a hidratação deve ser parte da estratégia da prova.

Uma boa dica antes de provas em que o abastecimento de água é incerto é beber um pouco mais antes do seu início. Nesse caso, o recomendável é que o consumo aconteça exatamente antes da largada, caso contrário, o excesso vai virar urina. Outra boa dica é o uso de porta-caramanholas nos longões de fim de semana.

Por último, gostaria de ressaltar que os problemas relacionados ao calor em um país como o Brasil são muito mais freqüentes do que os relacionados ao consumo excessivo de água. Na dúvida, opte por se hidratar.

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