Especial admin 6 de dezembro de 2010 (0) (93)

Sem treinador, sem equipe, só correndo

Uma coisa é certa: nas provas realizadas principalmente em São Paulo o número de tendas de assessorias esportivas é tão assombroso que é fácil pensar que a maior parte dos corredores está distribuída entre elas. Engano! Há uma legião maior do que se supõe fora delas.

No cadastro da Corpore, em cujas provas costuma haver um congestionamento de barracas de equipes, dos mais de 286 mil corredores registrados, 170 mil classificam-se como "avulso" quando perguntados sobre a equipe. Ou seja, quase 60% não está vinculado a nenhum grupo, seja ele equipe de algum treinador, de empresa, clube desportivo ou time de futebol. Correm por conta própria. "Na prova São Paulo Classic 2009, 51% dos inscritos não definiu equipe no cadastro, mas na Meia Maratona Internacional de São Paulo deste ano tivemos apenas 41% sem equipe", relata Edgard José dos Santos, diretor administrativo da Corpore.

É um número expressivo em um país onde a maior parte dos corredores parece pertencer a uma assessoria esportiva ou equipe, e maior ainda se compararmos com a realidade dos EUA e de países da Europa. Lá fora, essas superestruturas das assessorias praticamente inexistem.

O brasileiro Sérgio Borges é técnico em San Diego (EUA) há quase 20 anos e treina atletas amadores e profissionais de 17 a 80 anos. Atualmente dirige a seleção americana de triatlo e duatlo e nota muita diferença nos corredores dos dois países. "O americano é mais independente e tem tendência a ser autodidata, procurando aprender sozinho por meio de livros, revistas e internet. E eles têm uma cultura de correr bastante. Quase todo americano já correu, seja para perder peso, entrar em forma ou como parte do treinamento de outro esporte. Então é fácil colocar um tênis e sair correndo. Não há assessorias, mas existem os clubes de corredores, em que se paga apenas uma anuidade barata para participar, e geralmente são orientados por técnicos voluntários. No Brasil acredito que muitos procurem as assessorias devido ao aspecto "social", pois sabem que é um bom lugar para conhecer gente. Mas a grande diferença é visível nas provas. Não existem tendas de assessorias por aqui. Em provas grandes como a Rock'n'Roll Marathon, por exemplo, às vezes alguma aparece com sua tenda na expo nos dias que precedem a prova, mas é raro", comenta o treinador.

Pat Butcher é um jornalista inglês do site www.globerunner.org, especializado em corridas de rua, tendo participado de eventos no mundo inteiro. Ele dá um panorama das corridas na Europa. "Eu diria que a maior parte dos corredores do Reino Unido e da Europa treinam sozinhos. Veja meu exemplo. Eu sempre treinei conforme meu trabalho. Quando trabalhei em uma indústria, corria 10 km na ida e 10 km na volta para casa. Mudei de emprego e fazia 20 km pela tarde. As únicas vezes que me lembro de ter corrido com amigos foram alguns domingos. Provavelmente eu seria melhor se tivesse um treinador, teria corrido melhor e descansado mais. Mas as coisas mudaram enormemente nos últimos anos. O sistema de clubes do Reino Unido não é exatamente bom, e as pessoas não treinam mais tão forte como fazíamos antes. Creio que o boom de corridas mostra que as pessoas não se preocupam mais em melhorar tanto o desempenho, elas são felizes apenas por estarem correndo", diz.

No Canadá, encontramos um panorama semelhante. O fisioterapeuta brasileiro Reginaldo Fukuchi cursa o doutorado em lesões da corrida na Universidade de Calgary (Canadá) e nos conta a respeito do tema. "Apesar do número de corredores que preferem correr em grupo esteja aumentando no Canadá, ainda está longe de ser como em São Paulo. Os que preferem correr em grupo acreditam que a motivação seja maior e, portanto, a melhora da performance venha mais rápida;. além do aspecto social, que sempre é levado em conta. Porém, com frequência maior encontro corredores avulsos. Eles preferem ficar sozinhos pois percebem que os grupos são heterogêneos, e acabam correndo em um ritmo além ou aquém de seu pace ideal. Outro fator é o acesso à informação, pois aqui existem lojas especializadas que oferecem oficinas e clínicas de orientação. Além disso, há facilidade de encontrar material educativo (livros, revistas, blogs), o que também deve ser considerado. A mesma coisa em relação aos equipamentos. Você não precisa ir a uma loja especializada para comprar um bom par de tênis, como no Brasil. Por isso, em geral, os grupos de corrida são menores e muito mais amadores comparados aos brasileiros. Durante as provas não há suporte. Os que participam de grupos correm uniformizados, porém sem a estrutura oferecida pelas assessorias brasileiras", compara o especialista em Fisioterapia Esportiva pela Unifesp e sócio fundador da Sociedade Nacional de Fisioterapia Esportiva.

 

265 EQUIPES EM SP! A Associação dos Treinadores de Corrida de Rua de São Paulo (ATC) tem 265 equipes cadastradas. "Como cada equipe tem em média três ou quatro treinadores, imaginamos existir 800 a 1000 técnicos só nestas equipes", contabiliza o diretor da entidade Nelson Evêncio. Em 2003, quando a organização iniciou as atividades, eram apenas 45 associados.

Essas assessorias cobram entre R$ 50 e R$ 200 mensais. "Depende do público-alvo. A maioria oferece, além do treinamento, pontos de apoio com treinadores, hidratação, frutas aos sábados, tenda de apoio em provas, uniforme, reserva de inscrições, desconto em lojas e outras coisas mais", aponta Evêncio.

 

MOTIVOS PARA FICAR DE FORA. E mesmo com todas essas "regalias", o que pensam os corredores avulsos? Por meio das entrevistas observam-se os mais variados motivos para ficar fora de uma equipe. Além do valor mensal a pagar, há aqueles que correm apenas por diversão, sem preocupações com resultados. Encontramos também muitos que já participaram de assessorias e depois de alguns anos viram que se conheciam bem o suficiente para correr de forma mais livre. Há, ainda, aqueles que não se encaixam na rotina mais "fechada" das planilhas ditadas pelos técnicos.

Marcos André de Oliveira, 36 anos, é funcionário público em Brasília. "Comecei a correr há três anos para abandonar o vício do cigarro. Sempre corri sozinho, apesar de já ter pensado em entrar para uma assessoria ou contratar um personal. Além do custo ser alto, tenho a impressão de que os técnicos são necessários para alguns tipos de pessoas, não para mim. Tem gente que precisa de motivação extra para sair da cama e pode se dar melhor nas assessorias. Os que têm lesões frequentes ou os que pensam em alto desempenho poderão ir mais longe com dicas de um bom técnico. Treinar sozinho exige disciplina tanto para estudar o bastante para estruturar o treinamento, quanto para executar os treinos propostos. Procuro ler bastante e pesquisar na internet e em revistas especializadas. Cada um deve procurar o método que ache melhor. O meu, hoje, é treinar sozinho. E tem outra: estudar sobre fisiologia, biomecânica, nutrição e outros assuntos é um enorme prazer. Creio que existam três parâmetros para saber se está no rumo certo: Os tempos estão baixando? Tive ou estou tendo alguma lesão? Treinar é um prazer ou está mais para um martírio? Nunca tive nenhuma lesão e meus tempos nos 10 km baixaram. Quando comecei a correr ficava por volta de 1h05, e hoje gira em torno de 50 minutos ou menos, dependendo do percurso", relata.

Para melhorar a qualidade de vida, José Márcio, 42 anos, começou a correr. Diabético, conta com a vantagem de poder dar suas passadas pela bela Fortaleza. "Comecei os treinos e logo me consultei com um médico desportista. Fiz os testes necessários e conversei com minha endocrinologista. Hoje já são 20 corridas e atualmente me preparo para a primeira meia, na Praia de Cumbuco, dentro da Maratona do Sol Poente do Ceará. Leio as revistas especializadas (sou assinante da Contra-Relógio) e também sites e blogs de outros corredores. Não sigo nenhuma planilha específica, faço os treinos do meu jeito, mas acho que funciona e tem consistência. Não entrei numa assessoria porque gosto de treinar sozinho. Estipulo uma meta para o treino do dia e sigo. Também gosto de fazer meu horário, além de preferir que o compromisso da corrida seja comigo mesmo. Assim, acabo sendo mais disciplinado. Antes das 5h30 saio para correr", conta o bancário que é natural de Bauru (SP). Em função do diabetes, mede a glicemia toda manhã e injeta insulina ou se alimenta em quantidades necessárias para terminar a corrida bem. Também tem cuidado extra com os pés, que devem ser protegidos com tênis apropriado, além de sempre carregar balas para o caso de uma hipoglicemia durante a corrida.

Muitos corredores contam que já passaram por assessorias, e a experiência adquirida possibilitou encarar os treinos solitários, como conta Alexandre Destailleur, administrador de São Paulo. "Depois de um tempo correndo sozinho, comecei a treinar com um profissional sério e competente, com planilha individualizada e acompanhamento total. Meu condicionamento evoluiu e pude dar adeus às tendinites frequentes. Em 2000 corri a Maratona de Paris e de Chicago para 3h08, conseguindo baixar em mais de 1h30 meu tempo na distância e terminando mais inteiro que quando treinava sozinho. Em 2004 tive um estiramento de grau 2 na coxa e depois de curado resolvi voltar a treinar sozinho. No fim do ano passado corri meu melhor 10 km e na minha 9ª São Silvestre também bati meu recorde. Treinar com assessoria é mais fácil, tem-se um acompanhamento profissional, há um grupo de pessoas que estarão nos locais de treinamento e isso ajuda muito, mas para mim o fundamental é disciplina e força de vontade em traçar objetivos e correr atrás deles. Por tanto tempo correndo (16 anos) e conhecendo o limite do meu corpo, somado à facilidade de informações sobre o esporte, posso planejar meu próprio treinamento. Daqui a uns anos vou fazer um Ironman e novamente procurarei uma assessoria especializada, uma vez que não tenho vivência nem prática com ciclismo e natação", conta.

 

"NOSSO GRUPO". Muitos treinam sem técnico, mas nem por isso gostam de correr sozinhos. Ai, os amigos começam a se unir e vão formando os grupos, muito mais por amizade e confraternização do que focados no desempenho propriamente dito. A diferença aparece logo. Não é correr na assessoria X ou do técnico Y. É sempre "o nosso grupo".

"A TA LENTOS não tem técnico e cada um faz os treinos de acordo com sua disponibilidade, pois temos integrantes de várias cidades. É um grupo de amigos que adora se encontrar e correr, principalmente nas provas de revezamento, as mais animadas. Enquanto alguns estão na pista, os outros se divertem fora dela. E quanto mais demoram a chegar, mais aproveitamos o tempo juntos" relata Sérgio Yokoyama. E o grupo formado por antigos amigos não hesita em incorporar outros. "A chegada do José Eduardo foi muito marcante, pois ele veio de tratamento na clinica de oncologia onde trabalha uma das integrantes e a sua perseverança é uma lição de vida a todos nós! Ele é o verdadeiro talento da equipe", completa.

José Eduardo Martins, a quem ele se refere, é um simpático senhor de 72 anos que venceu um câncer e começou a correr. "A camiseta da TA LENTOS é uma charge em que eu, o Matusalém do grupo, estou correndo amparado pelos amigos. Acometido de um linfoma com prognósticos sombrios em 2004, resolvi enfrentar a doença com as ferramentas de que dispunha: obediência ao tratamento, força de vontade e exercícios físicos. Resolvi desde logo correr. Curado, fiz a primeira São Silvestre em 2008 em 2h10, razoável para a minha idade. No ano seguinte, em 1h48. Mas o tempo é ilusão. O que vale é a grande sensação de prazer e sentir milhares de pessoas felizes comungando a mesma vontade", conta o pianista e professor aposentado da USP, explicando que corre sozinho três vezes por semana na Hípica Paulista. A depender do calendário das corridas, faz duas a cinco voltas – quatro a dez quilômetros. Aos domingos corro os longos pelas ruas e um amigo experiente e veterano das corridas lhe dá conselhos úteis. "Por vezes, ele abdica de sua velocidade e corre ao meu lado uns bons 10 km", conta.

 

"SIGA O GORDO". Outro grupo inseparável é o de Djalma Gonçalves Pereira, 36 anos, professor universitário em Uberaba (MG). Foi ele quem nomeou, ainda que involuntariamente, o grupo "Siga o Gordo". "Corro há três anos e sempre participo de provas. Comecei em um grupo da academia, mas ele acabou e eu continuei. Corro quase todos os dias, pedalo e faço musculação, além de aulas na academia. Monto meus treinos conforme meu objetivo de provas. Leio revistas para me orientar, Contra-Relógio notadamente, e alcancei resultados animadores. Baixei meu tempo nos 21 km de 2h06 para 1h54. Já treinei com assessoria, mas sozinho tenho mais flexibilidade, pois ajusto o treino de acordo com o tempo disponível, clima, cansaço e atividade que estou com vontade de fazer. Alguns dias treino na esteira, outros na rua. Quando estou com muita disposição, em vez de seguir a planilha, faço tiros; assim como há dias em que acordo muito cansado e corro menos. Faço também os educativos para não permitir que a bruxa apareça em forma de lesão", diz o mineiro.

Mas… porque Siga o Gordo? "O grupo sai da porta de um clube todo sábado de manhã. O Djalma, que pesava 128 kg, disparava na frente (hoje ele pesa 100 kg). Então, quando algum novato perguntava o percurso, os outros respondiam: siga o gordo", diverte-se outra integrante, Jussara Tuma.

O "Siga o Gordo" tem 15 pessoas, cada um fazendo seus treinos individualmente na semana, mas encontrando-se aos sábados. "Saímos para um percurso pré-definido via e-mail na semana. Nem todos cumprem o trajeto completo, pois contamos com pessoas com objetivos diferentes, por isso alguns se separam, mas todos terminam o treino no mesmo local e esperam os demais", conta "o gordo".

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