Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (87)

Por Uma Vida Menos Ordinária

Ronaldo da Costa não correu no último 20 de setembro. Em um cálculo impreciso e otimista, também não correra nos duzentos e dez dias anteriores, quiçá no ano. Faltava a energia que a mãe, Dona Eugênia, obrigava-o a gastar quando criança, impondo ao caçula dos 11 filhos um sobe-e-desce pelas ladeiras de terra de Descoberto em busca de água na mina, de lenha no mato. Maratonista fora de ação é como poeta de mal com as palavras ou carpideira sem lágrimas. Na praça do centro da pequena cidade da Zona da Mata, onde nasceu há 38 anos, o mineiro abre um sorriso maroto enquanto aponta de uma depressão à falta de vergonha na cara para justificar o descaso com seu maior dom. "Comecei a treinar de novo há três semanas. Deus do céu, só ajuda. Já voltaram os bons pensamentos, as coisas boas. Andava muito triste comigo mesmo. Quero correr pela minha saúde, pela alegria."

Patrono do Mundial de Meia-Maratona, o que lhe rendeu um contrato com a Caixa Econômica Federal até o final do ano, Ronaldo arriscou seus primeiros trotes deste reinício na semana anterior à prova, realizada em 12 de outubro. Queria perder peso antes de encontrar os amigos no Rio de Janeiro. Pois na medida em que enferrujavam as habilidades naturais – marcar as passadas, acertar a respiração, vigiar o fôlego, controlar o jogo mental -, Ronaldinho pagava o preço na balança. Chegou aos 63 kg. "Mas essa balança tava errada, tava não?", pondera, bem humorado, ao acariciar a barriga, espelho dos 8 kg a mais que ostenta hoje em comparação aos 51 registrados no dia do recorde em Berlim. Se não paga a dívida de reconhecimento do Brasil para com seu único recordista mundial em provas de corrida de todos os tempos, a homenagem durante o evento carioca estimula o campeão a retomar os treinos. "Fico orgulhoso de ver o respeito que corredores como o Vanderlei Cordeiro e o Marilson dos Santos têm por mim", confessa Ronaldo, ainda dono de um dos 20 melhores tempos da história para a maratona (é o único não africano de nascimento na lista). Em outra vitória épica, ganhou a São Silvestre de 1994, encerrando um jejum de nove anos sem triunfo de brasileiros na prova de rua mais tradicional do país. Ele diz que faltaram assessoria e estrutura de equipe para explorar melhor o status de número um do mundo.

Ronaldinho jamais chegou próximo de repetir a performance da capital alemã. Todo atleta tem seu ápice e um tempo pessoal que nunca mais será igualado. Mas nenhum campeão admitirá, no dia seguinte ao de estabelecer um recorde, que seu auge foi ontem e que, dali pra frente, suas marcas serão decadentes – esse é o tipo de verdade que só se aceita muitos anos depois, quando a experiência e a satisfação pelo trabalho bem feito varrem a vaidade. "Ficava um pouco frustrado, sim. Nos treinos para a Maratona de Tóquio, em 2003, fiz tempos melhores do que quando me preparava para Berlim", conta Ronaldo. "Estava treinando para 2h06, 2h05. Só que na hora saiu tudo errado, fazer o quê? Era frio demais, meus músculos endureceram, não deu nem para terminar a prova." Ronaldo afirma que algumas contusões e problemas pessoais (como o fim de seu primeiro casamento e o processo por utilizar uma carteira de habilitação falsificada) prejudicaram seu desempenho pós-recorde.  "As coisas nunca mais encaixaram. Não estava preparado para agüentar a pressão", admite. "Também joguei muito dinheiro fora, com gastos desnecessários e alguns investimentos errados em imóveis".

O prêmio pela maior vitória (em torno de 100 mil marcos alemães, mais 100 mil dólares pelo recorde) foi administrado pelo agente e pago em quotas ao longo dos últimos anos. Ronaldo recusa-se a falar sobre o assunto, que nunca foi muito bem explicado. Limita-se a dizer que recebeu em outubro a última parte do acordo. Outra fonte de renda são os quatro imóveis que aluga em São João do Nepomuceno. A receita garante uma condição financeira acima da média da população na cidade, mas sem os luxos de outrora. Mora em um aconchegante apartamento de três quartos, com a mulher Lucila, a filha Vitoria e o enteado, mas não há mais carro zero na garagem, nem o Fusca 72 dos últimos tempos. Há cinco meses ele entrou no consórcio de um automóvel 1.0 com parcelas mensais de R$ 372. Está na dúvida entre um Fox e um Gol – e conta com os sorteios para tirar o veículo até abril.

Ronaldo acorda antes das cinco da manhã. Quando batia o desânimo, se mandava ainda de madrugada para a chácara (batizada de Berlim 98) que mantém na região. Por lá ficava uma, duas semanas, dormindo em um quartinho dois por dois à noite e colocando a mão na massa para terminar a casa principal durante o dia. Mergulhos na piscina e o cultivo de uma horta ajudavam a desanuviar as incertezas quanto ao futuro. A roça recarrega as energias de Ronaldinho e traz à tona lembranças da infância, quando a família plantava arroz, feijão e milho para o próprio sustento em terras emprestadas por amigos. O excesso era vendido aos vizinhos para reforçar o orçamento, incrementado com as diárias de dona Eugênia nas casas mais abastadas da região e o esporádico envio de pequenas quantias pelo irmão mais velho que morava no Rio de Janeiro. A vida era ganha com muito suor, mas nunca faltou comida na humilde casa em que até hoje vive a matriarca em Descoberto. Ronaldo trabalhou para a prefeitura dos 12 aos 16 anos, quando disputou sua primeira corrida, em Descoberto. A primeira vitória viria na prova seguinte, acompanhada de uma traquinagem. Ronaldo combinara com o irmão gêmeo Romildo de atravessarem a linha de chagada de mãos dadas. "À cinco metros do final, larguei a mão dele e ganhei sozinho", diverte-se. "Dei uma cambalhota para comemorar e continuei a correr – mas dele, que ficou louco de raiva."

À procura de novos talentos da região que possam seguir seus passos, Ronaldinho realiza anualmente a Maratoninha Ronaldo da Costa, em São João Nepomuceno e Descoberto. A popularidade do corredor continua em alta nas cidades onde nasceu e vive, e ele gosta de andar pelas ruas para conferir seu prestígio. Há um ano tem passado mais tempo em Betim, na Grande Belo Horizonte, do que em sua área.  Acredita ser mais fácil encontrar parceiros para seus projetos no pólo industrial do que na Zona da Mata. "Quero retomar o trabalho com crianças que comecei em Descoberto e hoje está parado. O objetivo é formar bons cidadãos, para depois, quem sabe, achar uma pedra preciosa para o esporte".

Outros planos incluem completar o Ensino Médio em um supletivo e cursar uma faculdade de Educação Física. A volta às competições? "Quero me preparar para correr a São Silvestre no final do ano", diz, sem muita convicção. Ronaldo sabe que precisa de quilometragem nos treinamentos para voltar a um nível razoável. "Não penso em ganhar, não. Só de estar no meio do povão de novo já ficarei feliz", revela, com a certeza de que, se tivesse se cuidado melhor, poderia ter prolongado a carreira competitiva como outros contemporâneos seus. "Mas não me arrependo, não. Se ficar pensando muito no que fez ou não fez, fica doido. Tenho que olhar é daqui para o futuro."

2:06:05

Em 20 de setembro de 1998, Ronaldo da Costa surpreendeu o mundo ao pulverizar em 45 segundos o recorde mundial da maratona, então em poder do etíope Belayneh Dinsamo há uma década. A marca foi estabelecida durante a tradicional competição de Berlim, na Alemanha, onde correra pela primeira vez, no ano anterior, os 42.195 metros nobres do atletismo – a prova do recorde foi apenas sua segunda disputa na distância. Para cravar as 2:06:05, passou por 65 dias de treinos puxados, a maioria deles realizados nas estradinhas que interligam as cidades da Zona da Mata mineira. No auge da preparação, corria mais de 200 km por semana. 

"Sabia que poderia bater os recordes brasileiro e sul-americano. Fui preparado para isso, nem pensava em recorde mundial. Mas na hora da corrida eu me senti mais leve. Sofria há mais de ano com uma dor no calcanhar esquerdo que, no dia, sumiu", lembra. Na largada, o atleta repetiu a única superstição pessoal: prender uma folha de planta qualquer entre o calção e a cintura. "Pra não sentir a famosa ‘dor de viado', aquela pontadinha abdominal que dá. Dizem que são gases, né?" 

O brasileiro cumpriu a segunda metade da prova em um tempo menor do que a primeira. Proeza rara para a época e que passou a ser uma meta dos atletas de ponta da distância. Aumentando o ritmo no final, passou a imaginar, depois do km 41, como eternizaria a vitória e um possível recorde – que, a essa altura, já ganhava contornos reais. Decidiu comemorar como nas corridas que ganhava em Descoberto: com cambalhotas e estrelas, habilidades desenvolvidas nas aulas de capoeira da infância. O excesso de energia demonstrada ao final do excepcional desempenho para o exaustivo percurso gerou espanto entre os gringos e suscitou boatos maldosos. Ronaldo nem liga. "Quem é da roça é saudável, não se apega a essas coisas. Isso é inveja. Tô na história, meu amigo! Quem não gostar que vá lá e bata o tempo", desafia o mineiro, que ficou com o recorde mundial em seu poder por pouco mais de um ano. Em de outubro de 1999, a marca de Ronaldo foi batida em 23 segundos pelo marroquino (que viria a se naturalizar americano) Khalid Khannouchi – um dos únicos dez atletas que, nesses dez anos, correram abaixo do tempo cravado pelo brasileiro em Berlim. E dia 28 de setembro último o etíope Haile Gebrselassie tornou-se lá mesmo, em Berlim, o primeiro homem a cumprir a distância em menos de 2h04.

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