Em 2011 o atletismo viu pela primeira vez um atleta paraolímpico atingir o índice A para participação no Mundial de Daegu. O corredor sul-africano Oscar Pistorius, conhecido como Blade Runner (corredor das lâminas, em tradução livre), despertou um debate até então inexistente: o que alguns estão chamando de era pós-humana nos esportes. Pistorius, que possui as duas pernas amputadas logo abaixo dos joelhos e corre com próteses de fibra de carbono, trouxe o debate sobre onde estão os limites para definir uma competição justa ou não entre esportistas. A participação de Pistorius na Coréia, em agosto, foi cercada por uma série de controvérsias, incluindo os cientistas que o defenderam em uma corte do esporte admitirem que as próteses lhe conferem sim uma vantagem mecânica.
Oscar Pistorius, que completará 25 anos em novembro, está no auge de sua carreira como atleta profissional. O corredor foi parte do time sul-africano que conquistou a medalha de prata em Daegu na prova de revezamento 4×400, apesar de ele ter corrido apenas nas eliminatórias. Sendo um ícone do esporte e extremamente carismático, Pistorius facilmente envolve a multidão e conquista os fãs quando se prepara para largar contra corredores "normais".
O atleta nasceu sem as duas fíbulas (um dos dois ossos da canela), e por isso seus pais tomaram a decisão de amputar suas duas pernas logo abaixo dos joelhos quando ele tinha apenas 11 meses de idade. A decisão foi norteada pela ideia de que ao invés de possuir duas pernas não funcionais, uma amputação naquela altura ofereceria a Oscar a possibilidade de se adaptar a suas próteses da melhor forma possível e ter uma mobilidade plena. A decisão provou ser acertada, e com 11 anos Oscar já participava do time de rugbi de sua escola, além de praticar tênis, pólo aquático e luta olímpica.
IAAF CONVIDA E VOLTA ATRÁS. Após tornar-se uma sensação nas pistas do mundo paraolímpico, Pistorius viu seus tempos chegarem cada vez mais próximos das marcas de atletas "normais", e começou a sonhar cada vez mais alto. Sua participação em eventos não paraolímpicos ocorreu, ironia da história, por convite da própria IAAF (entidade que controla o atletismo mundial). Talvez o órgão não tenha percebido naquela altura o verdadeiro potencial de Pistorius, e o tenha convidado para gerar publicidade, sem acreditar que o nível de competitividade do corredor pudesse virar uma dor de cabeça.
Em julho de 2007, a IAAF modificou suas regras e passou a proibir o uso de "qualquer instrumento técnico que possua molas, rodas ou outro elemento que venha a conferir vantagens para atletas que os usem frente aos demais". Apesar de dizer publicamente que a regra não havia sido criada em torno da situação do Blade Runner, a IAAF estava na prática excluindo o corredor de seus eventos. No entanto, restava ainda definir se as próteses de Pistorius lhe ofereciam alguma vantagem ou não, como diz a regra.
Ainda no final de 2007 Pistorius foi submetido a testes na Universidade de Esportes de Colônia, na Alemanha. Os exames tinham por objetivo medir se as próteses do sul-africano eram mecanicamente melhores que um tornozelo humano no armazenamento e transferência de energia elástica. Os achados foram esmagadores, mostrando, entre outros pontos, que com as próteses Oscar consumia 25% menos oxigênio que corredores normais na mesma velocidade. Na época, foi o bastante para que a IAAF decidisse banir Pistorius de competir em eventos não paraolímpicos.
Logo após ser banido, Pistorius contratou um time de advogados e entrou com um processo na CAS (Court of Arbitration for Sport), entidade máxima para "justiça" desportiva. O atleta foi novamente submetido a testes de laboratório por um time de sete especialistas em biomecânica da Universidade de Rice, em Houston, Texas. Com base nos achados deste time, a CAS "inocentou" o corredor, que foi autorizado novamente a correr as provas da IAAF. E ele logo conseguia 45.07 nos 400 m, marca imponente para qualquer corredor da distância, e que o colocava na elite mundial.
O OUTRO LADO HISTÓRIA. Se o caso fosse simples assim, o conto de fadas estaria perfeito. Mas a história está longe do fim. Na verdade, um dos primeiros contatos feitos por Pistorius para inocentá-lo foi Ross Tucker, pesquisador do centro de esportes onde faço meu doutorado, na África do Sul. Tucker recusou o convite, pois sua intuição dizia que havia sim alguma vantagem e fazer uma pesquisa onde o resultado já estava pré-determinado é em si próprio sinal de problema. Pistorius então contratou um time da Universidade de Rice, em Houston (Texas), onde trabalham grandes nomes da biomecânica mundial.
Essa equipe levou à CAS apenas um argumento, o utilizado pela IAAF para banir Pistorius: se as próteses eram ou não superiores que o tornozelo humano, como sugerido pelos testes feitos em Colônia. O grupo de Houston indicou uma série de irregularidades metodológicas e limitações dos testes iniciais, como avaliar o corredor apenas em sua velocidade máxima, onde existe uma vantagem, mas não em velocidades mais baixas, e assim uma anularia a outra. Em apenas dois dias de julgamento, a situação foi revertida.
O curioso é que alguns meses após o julgamento o mesmo grupo de pesquisadores apresentou todos os resultados de seus testes e publicou um estudo onde mostrou claramente as vantagens das próteses sobre pernas normais. O caso se tornou um grande imbróglio de informação e a situação remete a cenas de humor pastelão, onde um personagem pergunta "por que você não disse antes?", e a resposta vem imediata "porque você não perguntou." O caso levado à CAS olhava especificamente para a pergunta "as próteses oferecem vantagem por serem superiores ao tornozelo humano no que se refere à transferência de energia?". A resposta apresentada pelo time de Houston e aceita pela corte foi um simples "não".
Mas artigos publicados um ano e meio mais tarde falam da vantagem das próteses por outros mecanismos, que não foram discutidos naquele julgamento. A informação adicional foi simplesmente omitida, pois ninguém havia pedido por ela, pelo menos não a acusação. Os dois pesquisadores do time de sete que inocentou Pistorius, e que mais tarde passaram a defender que as próteses são uma vantagem, não foram ao julgamento final da CAS. É impossível que não se pergunte por que isso ocorreu.
ENTENDA A DISCUSSÃO. O artigo completo sobre os testes, publicado em 2009, avaliou três diferentes hipóteses quando comparando Pistorius com corredores normais, de performances e características físicas similares: que o custo metabólico de corrida poderia ser diferente, assim como a capacidade de manter altas velocidades ao longo do tempo, e finalmente, que a mecânica de corrida também seria diferente.
O custo metabólico de corrida é a quantidade de oxigênio que se utiliza ao longo do tempo e distância, e que em humanos é relativamente constante ao longo de diferentes velocidades. A variável é expressa em mililitros de oxigênio por minuto por quilômetro. Se a velocidade for mais alta, esta quantidade constante de oxigênio terá de ser utilizada em um menor tempo (pois o quilômetro passa mais rápido), resultando em um consumo de oxigênio (ou VO2) mais alto. Pistorius possui um custo de oxigênio cerca de 17% menor que velocistas do mesmo nível, ou seja, é muito mais eficiente que os outros. Seus valores no entanto, são próximos aos de fundistas e até um pouco mais altos que os de Zersenay Tadese, recordista mundial da meia-maratona. Claro, você pode se perguntar se é normal um velocista possuir um custo de oxigênio similar ao de um recordista mundial de provas de fundo. Não é, mas ainda assim não se pode dizer que Pistorius possui valores sobre-humanos.
A capacidade de manter altas velocidades foi um dos fatores que mais surpreendeu. Sempre se acreditou que Pistorius, por não possuir panturrilhas, e sim membros de carbono que estão livres de fadiga, teria uma capacidade superior de manter altas velocidades. Nesse ponto Pistorius se revelou idêntico aos demais corredores, apesar de estar no limite superior da normalidade de comparação. Este fato é surpreendente até mesmo porque as curvas de velocidade do corredor são atípicas. Ele possui uma largada muito ruim, em função das próteses, mas alcança os demais corredores na segunda metade dos 400 m, fato em si que levantou muitas suspeitas sobre suas próteses.
VANTAGEM DE 12 SEGUNDOS NOS 400 M. O terceiro fator analisado, a mecânica de corrida, foi o mais polêmico de todos. Nestes quesitos, Pistorius está literalmente fora dos gráficos quando se fala em mecânica humana. Corredores normais possuem uma velocidade máxima de reposição de pernas muito parecidas, independemente do nível, e a capacidade de correr mais rápidamente está associada à produção de força contra o solo, e ao tempo de contato do pé com o chão. Em outras palavras, não é o quão rápido você mexe suas pernas que faz de você um corredor mais veloz.
Corredores de alto nível geram a maior quantidade de força no menor tempo possível. Pistorius não. Sua reposição de pernas é cerca de 20% mais rápida que outros corredores, seu tempo de contato com o chão é 14% mais longo e sua força vertical aplicada contra o solo é 22% menor! Com base nestes dados, os dois pesquisadores "dissidentes" calcularam que as próteses oferecem a Pistorius uma vantagem de cerca de 12 segundos ao longo dos 400m, o bastante para torná-lo de atleta internacional para corredor recreativo na distância.
A discussão sobre o assunto já perdeu o contorno científico, e insultos pessoais tomaram as linhas de periódicos de alto nível. Enquanto alguns concluíram que "o momento na história do atletismo em que membros artificiais superam os biológicos já passou", outros (do mesmo time de pesquisa, pelo menos inicialmente) defendem acirradamente que os resultados são inconclusivos.
A verdade é que Pistorius é um modelo de superação, um símbolo e fonte de inspiração para muitas pessoas. Por isso é um tema difícil e extremamente delicado. Seus defensores sempre argumentam que, se as próteses são realmente uma vantagem, qualquer um tem o direito de amputar as próprias pernas para tentar correr mais rápido. É um ponto, com certeza, mas será que é o ponto certo? A discussão segue…