Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (302)

Os segredos de Lucélia Peres, nossa melhor corredora

Prestigiada pelo tricampeonato da Volta da Pampulha e com o título da mais famosa corrida de rua do Brasil, a São Silvestre, Lucélia ganhou também em Cuiabá, dando seqüência a uma carreira que começou a se tornar séria, na rua e na pista, quando ela tinha apenas 14 anos.

"Bons tempos", recorda-se do distante 1993, quando tudo começou. Naquela época, eram corridas sem compromisso, na base da brincadeira, coisa lúdica, mesmo. "As corridas de revezamento eram as mais divertidas. Mas, ficou tudo sério, muito sério", diz ela, aos 25 anos, já num tom de atleta responsável. "Ah, isso eu sempre fui. Disciplinada também. Sigo as planilhas de treinos mesmo na ausência do meu técnico – Edilberto Santos Barros", garante. De estilo quieto, ainda hoje, e evitando badalações, não foi difícil adotar, desde cedo, a rigorosa disciplina de atleta profissional.

Agora, destacando-se com a principal fundista do país, essa mineira de Paracatu, radicada em Brasília há mais de 20 anos, não mudou a simplicidade. Mas perde o humor quando alguém se refere ao atletismo como "esporte amador"… "Argh!!! Amador?", protesta.

Pior é quando um leigo em esporte lhe pergunta: "Mas você só corre?" A explicação é didática: "O atletismo exige muito do físico e da mente. São treinos, viagens, preocupações, medo de adoecer, de uma lesão. É uma atividade em que o atleta não tem carteira assinada e, por isso, sem garantias de férias, 13º salário, seguro saúde, aposentadoria, nada", diz ela, convicta de que o tempo no esporte tem limites e, por isso, o futuro precisa ser planejado.

Festas, muitas festas. Depois da Corrida de São Silvestre, Lucélia teria 15 dias de férias. Conseguiu parar apenas cinco. A vitória na corrida paulista mudou a sua rotina. "Tentei voltar logo à vida normal, mas eram muitos convites, entrevistas, visitas, solenidades. Fui até recebida pelo presidente Lula, imagina!" Poucos dias antes, o governo do Distrito Federal também a homenageou, ao lado de outro brasiliense, campeão na Corrida de Reis em Cuiabá e vice na São Silvestre de 2006, Clodoaldo Gomes da Silva.

A última cerimônia dessa fase festiva foi em Paracatu, Minas Gerais, terra natal de Lucélia. A cidade parou, por ordem do prefeito, Vasco Prado Filho. Foi um dia cheio para festejar a corredora famosa. E só na volta a Brasília Lucélia conseguiu, enfim, dar rumo aos treinos, pois o ano é de Pan-Americano e ela quer estar na pista dos 10.000 m. E, dependendo do calendário do torneio, poderá correr também os 5.000 m. "Mas a prioridade são os 10 mil", reforça.

Nascida de família de hábitos simples, Lucélia cresceu numa comunidade carente, o Paranoá, nos arredores de Brasília. Dali tirou lições importantes para a formação de seu caráter. Aprendeu, por exemplo, a valorizar as pequenas conquistas. Daí porque se identificou com o atletismo, onde vencia e ganhava o pódio, mas cujo potencial técnico trouxe resultados crescentes, até lhe garantir prêmios maiores e uma renda mensal.

"A verdade é que o atletismo mudou a minha vida e de minha família", reconhece. Entrou no esporte por lazer e fez disso profissão. "Uma profissão sim, pois ela ajuda muito a gente. E o nosso quebra-galho", garante dona Aparecida, mãe de Lucélia, que acompanha a filha nas provas locais e, em casa, capricha na lasanha, prato preferido da corredora.

Para não perder tempo, Lucélia dividiu treinos e provas com os estudos. Concluiu o curso de inglês básico e começou a cursar Educação Física, mas não resistiu às pesadas prestações e mudou o rumo. Foi estudar administração de empresas, numa faculdade – a UPIS – que passou a patrociná-la. Nesse curso, se identificou com o marketing esportivo e já admite se aperfeiçoar nessa área.

Profissionalismo sempre. Ainda nos primeiros anos, como juvenil, Lucélia não tinha noção de que chegaria a esse nível de profissionalismo. Ela participava do Projeto Shell de Atletismo, em Brasília, e foi identificada pela professora Lúcia – cujo nome completo não lembra mais – nos tempos das corridas sem maiores compromissos. Em seguida, ganhou a atenção de Edilberto Santos Barros, seu técnico até hoje. "Lucélia é extremamente profissional. Vou completar 14 anos de trabalho com ela e não tenho um só registro de falta a treino", diz ele, orgulhoso.

Com o tempo, veio a primeira decepção: o fim do Projeto Shell, em 1995, o mesmo ano em que, ironicamente, ela foi vice-campeã da São Silvestrinha. Sem o projeto, desapareceram as cestas de alimentação, os uniformes, calçados, passagens para viagens. Foi um período difícil para a família do casal João e Aparecida, pais de Lucélia e seus irmãos, Lucilene, Agnaldo e Clecio.

Mas não havia como retroceder, porque o perfil de atleta já se formava. "Foi aí que Edilberto me ´adotou´, assim como outros atletas", lembra ela, reconhecida. Ele acreditou no potencial da garota de então e pagava o transporte entre o Paranoá, onde mora ainda hoje, até o Cief, no Plano Piloto – cerca de 25 km de distância – único local na cidade com boa pista de atletismo.

Primeiro pódio aos 14 anos. A resposta às previsões de Edilberto vieram cedo. Com 14 anos, Lucélia foi para os Jogos Escolares Brasileiros, os JEBs, em João Pessoa. Foi a sua primeira longa viagem: "A gente nunca esquece", recorda. Não trouxe medalha, mas retornou com a convicção de que "a coisa estava ficando séria". Foi quando a ficha caiu. "Eu lembro que foi aí que eu vi que poderia ser atleta".

Três meses depois dessa constatação, Lucélia subiu ao seu primeiro pódio nacional. Mesmo sendo da categoria mirim, foi bronze no Campeonato Brasileiro Juvenil, em Indaiatuba, São Paulo.

A versatilidade dessa corredora se pronunciou muito cedo. Quando ela tinha 15 anos chegou ao pódio nacional da categoria menor em distâncias extremas: foi campeã dos 5.000 m e terceira nos 800 m, numa competição realizada em São José do Rio Preto, em São Paulo. "Foi engraçado. Quando me viram na pista dos 5.000 m, depois de eu ter corrido os 800, as meninas ficaram se perguntando: ‘O que ela tá fazendo aqui?' No final da corrida puderam ver que eu corria bem as duas distâncias".

Depois desses dois pódios, de volta a Brasília ela venceu os 3 km da Corrida da OAB. Como prêmio, ganhou tênis e conseguiu um patrocínio, da Casa Iracema. "Eu ganhava dois salários mínimos por mês e o uniforme. Imagina, muito bom!" Mas, em 1997 conquistou o primeiro grande patrocínio, da Academia Fit 21. "Foi demais! Eu estava quase rica", diz ela dando boa risada. Eram US$ 1.000 por mês, no tempo em que a moeda norte-americana tinha expressão e valia quase três vezes mais no Brasil.

A opinião de Carmem de Oliveira. A facilidade para correr na pista e na rua lembram os tempos de Carmem de Oliveira, a primeira brasileira a ganhar a Corrida de São Silvestre, em 1995. Carmem mantém, ainda hoje, os recordes brasileiros dos 5.000 m (15:39) e dos 10.000 m (32:06), além de ser a dona da melhor marca brasileira na maratona, com 2:27:34, em Bostom, 1994. Porém, em 2006, Lucélia fez a melhor marca continental dessas distâncias na última década: 15:50.08 nos 5.000 m e 33:04.72 nos 10.000 m.

Carmem de Oliveira diz que sempre observou essa dualidade em Lucélia. "A pista para ela é o diferencial. Quantas corredoras começaram na rua e já pararam? Outras, continuam correndo, mas sem melhorar suas marcas", analisa. "Lucélia tem consistência, foi segunda, depois quarta e finalmente ganhou a São Silvestre. Ganhou três vezes a Pampulha, teve vitórias importantes nas categorias menores. Ela tem um ritmo crescente, e isso é dado pelo trabalho de pista. Os técnicos em geral têm que olhar essa particularidade", sugere.

Lucélia reconhece a importância desse treino: "O que se faz na pista ajuda nas corridas de rua e vice-versa", diz ela. A verdade é que tanto numa como noutra prova a gente está sempre aprendendo. Isso é constante. Nunca se sabe tudo. Aprende-se principalmente com os erros de uma competição", reconhece com humildade.

Foi assim na São Silvestre de 2004. Chegou a se sentir campeã, foi vice. Depois, 2005. "Eu estava bem treinada, vinha de um excelente segundo lugar na corrida do ano anterior. Mas terminei em quarto lugar". Na corrida do ano passado ela mudou a estratégia. Nada de se preocupar com adversárias e tentar acompanhá-las. Fez a sua prova e marcou o ritmo combinado com o técnico Edilberto, entre 3:25 e 3:30/km. Fez isso com rigor cronometrado e venceu.

A queda na Meia do Rio. Outra lição foi na Meia Maratona do Rio de Janeiro, em 2006, quando assustou muita gente ao desmaiar, depois de sofrer uma hipoglicemia a poucos metros da chegada. Lucélia entrou naquela prova carioca sem treinar nas duas semanas anteriores, recuperando-se de uma tendinite. Pior, sob uma temperatura de 28 graus, não tomou o repositor que usa em provas longas, fragilizando o seu organismo. O susto passou e no dia seguinte Edilberto diz que sentiu o nível de profissionalismo de sua atleta. "Ela disse que não falaria mais no episódio, pois era passado. Pediu para fixar nas provas seguintes e fez isso, determinada. Resultado: foi tricampeã na Pampulha, ganhou a São Silvestre e a Corrida de Reis de Cuiabá".

Nesse corre-corre, Lucélia consegue tempo para namorar, Elismar Divino da Silva, de 29 anos, também corredor. Porém, uma coisa assusta a corredora: a velocidade do tempo. "É muito compromisso, estudo, treino, viagens, e aí a gente vai ver e está indo tudo muito depressa". Mas nada que mude o seu astral, que a fazuma garota alegre. Por isso, ainda hoje dispensa psicólogos. "Sou muito crítica. Acho que eu sou a melhor psicóloga para mim mesmo".

Como todo corredor de elite, Lucélia viaja muito. Mas ainda não conseguiu aprender a fazer uma mala pequena. Se for para passar três dias numa determinada cidade, leva roupa para uma semana. No dia 21 de marco ela viajou para uma temporada na altitude de Paipa (3.000 m), na Colômbia. "Na altitude, longe de ouros compromissos, eu fico focada no treino. Rende muito. Já estive em Paipa e me fez muito bem", garante.

Seu próximo compromisso será em pista, no Brasil, no Campeonato Nacional de Fundo, no Rio. Como a meta é disputar os Jogos Pan-Americanos, a pista continuara tendo prioridade. Por isso, fará uma prova forte de 10.000 m, em abril, na Stanford University, na Califórnia, Estados Unidos. Mas, dependendo do calendário, poderá participar dos 5.000 m também.

PÓDIOS

Títulos brasileiros
Campeã menor dos 3.000 m
Campeã menor dos 1.500 m
Campeã menor dos 5.000 m
Pentacampeã juvenil dos 5.000 m
Tricampeã juvenil dos 1.500 m
Tricampeã juvenil dos 3.000 m
Campeã de Corridas de Rua – 1999
Campeã do Troféu Brasil adulto dos 10.000 m (34min05s) – 2001
Campeã do Troféu Brasil adulto dos 10.000 m (33min30s) – 2002
Tricampeã adulta de cross country
Campeã do Circuito de fundo em pista nos 10.000 m – 2006
Campeã do Circuito de fundo em pista nos 5.000 m – 2006

Títulos sul-americanos
Tricampeã juvenil dos 5.000 m
Bicampeã juvenil dos 3.000 m
Tricampeã juvenil de cross country

Principais vitórias nas ruas
Campeã da Corrida de São Silvestre 2006
Tricampeã da Volta da Pampulha – 2004, 2005 e 2006

Veja também

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