Especial admin 10 de março de 2015 (0) (100)

O começo, em 1993, com um sonho: melhorar as corridas de rua no Brasil

Em 1993 eu já corria há dois anos, depois de muito tempo dedicado exclusivamente ao ciclismo, mas sempre como "amador competitivo". Aí, meio por acaso, comecei a correr para alternar com o ciclismo, peguei gosto e acabei ficando só com as corridas, aliás, só com os treinos, já que provas naquela época eram raríssimas, mesmo na capital paulista, e estamos falando de apenas 20 anos atrás.
As pouquíssimas de que participei eram muito ruins, a começar pela inexistência absoluta de banheiros, largadas sempre atrasadas e com muito xixi no chão (sim, os corredores se abaixavam e urinavam no chão, enquanto esperavam o sinal da saída), trânsito pouco ou nada controlado, água às vezes no percurso, nada de atendimento médico, chegadas caóticas, com filas antes (isso mesmo…) da linha final, para a entrega de senhas; depois, premiações demoradíssimas, com muitas contestações, por vezes com o organizador sendo levado para a delegacia de polícia, porque não cumpria o que prometia em termos de valores em dinheiro ou em eletrodomésticos, como era comum então.
Apesar disso tudo, treinava regularmente pelo prazer de treinar e ficar em forma, sendo que no segundo trimestre de 1992, ao sair de um emprego, decidi tirar umas férias e me dedicar ainda mais à corrida. Foi quando, animado por um filme que tinha visto na TV sobre o etíope Abebe Bikila, vencedor da maratona olímpica de Roma em 1960 (quando completou descalço) e novamente na de Tóquio, em 1964, fui procurar saber se havia provas de 42 km no Brasil.

MARATONA DE BLUMENAU. Consultei, em maio de 1992, um corredor que também treinava na cidade universitária da USP, e ele (o médico Vanderlei Sokolowski) me informou que no final de julho haveria a Maratona de Blumenau, considerada a melhor do Brasil na época. Soube, então, que ele participava de uma equipe comandada pela treinadora Silvana Cole, me convidando a treinar com eles. Era um grupo sem qualquer estrutura especial, como hoje é corriqueiro, e foi com eles que fiz três longões de 35 km.
Viajamos eu e minha esposa Cecília, de carro, para Florianópolis, onde ela tinha um trabalho. Depois seguimos para Itajaí e pegamos a estrada para Blumenau; foi quando vi escrito "Largada" no chão e fiquei impressionado com o que teria que correr dois dias depois. Na véspera, Silvana fez uma prelação e nos entregou camisetas da "equipe", que tinha conseguido fazer. Pelos resultados nos longões, ela me indicou que conseguiria completar entre 3h10 e 3h20, mesmo sendo minha primeira maratona.
No sábado à noite fui cedo para a cama, mas não consegui dormir, pela tensão da estreia. Peguei o ônibus da organização, de madrugada para Itajaí, onde a largada era às 7 horas. Lá chegando, obviamente procurei um banheiro e constatei que não havia um sequer! E essa era "a melhor maratona brasileira", diziam os corredores. A visão das pessoas se aliviando no chão era chocante.
Com o ritmo sugerido pela treinadora na cabeça, larguei, mas logo descobri que meu histórico de ciclista iria falar mais alto, ou seja, "viciado" em pedalar pegando o vácuo dos da frente, ia seguindo os grupos e assim passei a marca da meia-maratona em 1h29. Mais para frente fui vendo vários corredores quebrarem, inclusive alguns da equipe e que sabia serem mais rápidos que eu, e procurei segurar um pouco o ritmo. Terminei em 3:04:30, até hoje meu recorde nos 42 km, aos 45 anos.
Animado com a marca e principalmente extremamente feliz com a experiência de fazer uma maratona, me filiei à equipe e comecei a treinar para valer, já no começo de 1993, com vistas novamente à prova catarinense. O treinamento foi sensacional, sendo que não participávamos de prova alguma, pois as poucas que existiam eram péssimas. A meta era completar sub 3h00 e um dos treinos que fizemos, algumas semanas antes da maratona, me deu praticamente certeza de que conseguiria. Ele consistiu em 6 tiros de 3 km (pelas alamedas do Parque do Ibirapuera, à noite), todos abaixo de 12 minutos!

A TRAGÉDIA DO ÔNIBUS. No jantar de massas, Silvana Cole me convidou a seguir no ônibus da equipe para a largada, e não nos que a organização disponibilizava. Aceitei, e aí aconteceu a tragédia: o ônibus se perdeu no caminho ainda escuro para Itajaí e chegamos atrasados alguns minutos, sendo ainda obrigados a parar a alguma distância da largada. Saímos como uns loucos, passando todo mundo, mas não sabíamos direito o tempo de prova e, naturalmente, estávamos muito irritados por estarmos vendo quase 7 meses de treinamento sendo jogados no lixo.
Não me lembro exatamente em que momento "desisti" da prova, de buscar um resultado, na medida em que o que era praticamente certo (o sub 3h) tinha se tornado algo pouco provável. Assim, completei em 3h07, absolutamente frustrado, encontrando Cecília, que já sabia dos acontecimentos. Fomos para o hotel, tomei um banho e imediatamente pegamos o carro de volta para São Paulo. Ao dar a partida (lembro muito bem), falei para ela: "Sabe aquele projeto de lançar uma revista, que estou acalentando há alguns meses? Ele começa amanhã!".
E assim fomos, na viagem, detalhando como deveriam ser os passos para concretizar o sonho de dar aos corredores brasileiros uma revista mensal, ainda sem nome. Aqui um parêntese: apesar de as corridas no país serem poucas e muito rudimentares, e o número de participantes ser bem menor do que atualmente e predominantemente de baixa e média renda, já eram alguns milhares e imaginei que esse contingente merecia ter uma publicação que os informasse e os valorizasse, e até que os defendesse dos maus organizadores.

COMO SURGIU O NOME. Foi esse tripé a base inicial da revista, o que me motivou a criá-la, mesmo em condições um pouco adversas, quando se lembra do perfil econômico predominante dos corredores brasileiros daquela época. Mas faltava um nome e não me agradava um "normal". Aí, ao ver a foto de largada de uma prova da Corpore no Ibirapuera, em que quase todos os corredores que estavam na frente tinham sua mão no relógio-cronômetro à espera do sinal, constatei que a maioria corria contra o relógio, e não em busca de posições ou classificações.
Surgia assim o título "Contra-Relógio", que durante muitos anos foi associado à minha longa vivência no ciclismo (existe uma prova com esse nome no esporte das duas rodas), mas que na realidade tem esta história como sua razão de ser.
Precisava, então, informar aos corredores do país que iria nascer uma revista especializada, mas como fazer isso numa época que nem se cogitava em algo parecido com a internet? Fiz um folder dando a boa notícia e pedi a uns poucos organizadores que me concedessem a lista de inscritos de suas provas, com endereços. Assim, enviei pelos Correios o folheto para esses corredores e, para minha surpresa, o retorno foi imenso, a que creditei o grande desejo dos brasileiros por informação sobre corrida, ainda mais que nada havia a respeito.
Revistas inexistiam e jornaizinhos apareciam de vez em quando; a saída era o "boca a boca", para saber sobre provas, ouvir a opinião dos mais experientes sobre treinos e lesões, entre outros assuntos. Até havia um livro traduzido – Guia Completo de Corrida, de James Fixx -, ao qual se recorria para saber um pouco mais sobre o esporte, que nos EUA já estava em outro nível. Foi um best seller, mas para nós de utilidade relativa, levando-se em conta seus capítulos abordando, por exemplo, os cuidados a tomar nos dias com muita neve…
Antes de sair a primeira edição, em outubro de 1993, já tínhamos centenas de assinantes, que confiaram no projeto, pois viram na revista a perspectiva de valorização da corrida, e de seus praticantes, e com maior destaque ainda um meio de se informarem sobre o seu esporte, tal a "viuvez ou orfandade" em que se encontravam. Algum tempo depois do lançamento da CR, tomei conhecimento que anos antes havia existido a "Revista Viva", por um breve período, muito focada na Maratona do Rio, a melhor e grandiosa prova daqueles anos.

NAS CORRIDAS E POR ASSINATURA. A revista começou obviamente pequena, saindo a primeira edição com 36 páginas, mas já a cores e em papel couchê. Distribuíamos pelos Correios aos assinantes e vendíamos nas provas, viajando (eu e Cecília) para onde houvesse corrida, onde montávamos uma mesinha e atendíamos aos interessados. Também distribuíamos diretamente em algumas bancas na cidade de São Paulo e a colocamos nas redes de livrarias Siciliano e Laselva.
Assim foi por uma década, até que em julho de 2004 a Contra-Relógio passou a ir para algumas bancas de cidades grandes e médias, o que se mantém ainda hoje. Era uma forma de atender corredores não tão fanáticos pelo esporte e que participavam de alguns poucos eventos por ano, daí terem interesse apenas eventual pela revista, notadamente quando saía a listagem (completa!) dos resultados de provas de que tinham participado.
Este detalhe das listagens é interessante e merece um comentário. A revista tinha assumido desde o começo, como citamos parágrafos atrás – aquele tripé, ou seja, que procuraria informar os corredores sobre aspectos técnicos do esporte e sobre dados objetivos (agenda de provas, especialmente), defendê-los dos maus organizadores (quase todos…), fazendo sugestões e críticas sobre problemas ocorridos, mas também de valorizá-los. Dessa forma, logo no terceiro ano já estávamos publicando os resultados completos das principais corridas do Brasil, em um encarte no corpo da revista, que anos mais tarde passou a ser apenas inserido, podendo ser descartado.
Não custa lembrar que não havia meio de se informar sobre corrida naquela época que não fosse pela Contra-Relógio, situação que prevaleceu até 2003, quando chegou às bancas uma segunda revista, aproveitando o crescimento desse mercado consumidor, que passava a ser atraente financeiramente.

A MELHORA DAS PROVAS. Para que os corredores brasileiros recebessem maior atenção, foi necessária uma década de empenho da CR na luta contra a desorganização das provas, sempre com críticas construtivas às inúmeras falhas, que infelizmente eram quase que aceitas como "naturais" pelos participantes, postura que foi mudando conforme publicávamos artigos a respeito, inclusive sugerindo o boicote às corridas que não respeitavam os corredores.
E não apenas a revista brigava por maior respeito aos corredores (a disponibilidade de banheiros era uma das principais bandeiras), como também passou a exigir que os organizadores realizassem eventos com rigor técnico, notadamente com chegadas sem tumulto e sem filas antes (novamente, isso mesmo) da linha final. Foram muitas as matérias indicando como montar essa área final, como atentar para que o cadastro fosse bem feito, para evitar confusões na premiação das faixas etárias, e por aí vai. Ou seja, a CR não apenas procurava bem informar em sua parte editorial, como também ainda fazia esforço de indicar caminhos para que as provas nacionais avançassem.
Nesse aspecto, um detalhe curioso e que não foi bem compreendido inicialmente pelos corredores foi a bandeira de que as provas deveriam cobrar inscrição, nem que fosse por um valor simbólico. O objetivo era que os organizadores assumissem responsabilidades, uma vez que corridas gratuitas (e que predominavam!) não criavam esse compromisso, ou seja, eventos gratuitos não podiam ser questionados. Não é necessário se estender muito neste ponto para vermos como mudou o conceito das provas brasileiras, que nos últimos anos vêm assumindo cada vez mais o seu lado comercial, ficando em segundo plano o esportivo.
Se não bastasse esse trabalho, levantamos outra bandeira, que foi a medição dos percursos. Assim, continuamos a bater na tecla do respeito aos participantes, agora exigindo que as distâncias anunciadas fossem reais, para que os corredores tivessem noção correta de sua performance. Como os outros objetivos "brigados" pela CR, este também demorou para ser implementado, mesmo por grandes e importante provas, mas o que se vê hoje mostra que valeu a pena o nosso empenho.

NOVO E MAIOR PÚBLICO. Com a melhora das corridas, em grande parte em função dessa atuação da revista, mais gente e de melhor renda passou a se interessar em participar, com o consequente crescimento dos eventos, mudanças que se mantêm até hoje. E esse novo contingente de corredores que passou a se inscrever em provas tinha (e tem) não só outro perfil econômico, como também objetivos diferentes na prática esportiva: agora, muitos estão mais focados na saúde e no social, do que no competitivo.
Enquanto há 10 anos participantes de provas com camisetas de equipe eram minoria, hoje eles predominam, notadamente em provas de menor distância e de revezamento. São grupos de academias, de empresas ou de treinadores, que entram em provas pela confraternização saudável, apesar de alguns levarem a sério a corrida e buscarem resultados. Em consequência dessa nova realidade, metade dos participantes de provas de 10 km costuma chegar acima de 1 hora, enquanto há 15 ou 20 anos eram raros os que corriam em ritmo superior a 6 min/km.
Nesse sentido, as alterações nos sistemas de inscrição (cada vez mais apenas pela internet) e de apuração (hoje praticamente tudo por chip e descartável), que sempre foram dois complicadores e motivo de grandes confusões nas apurações, até que pesaram pouco na atração dos "novos" corredores, mais interessados no que a prova oferece de mimos, isto é, o que vem dentro do saquinho dos kits.
Por isso mesmo, o aumento muito acima da inflação nas taxas de inscrição, que vem acontecendo nos últimos anos, não é motivo de grandes reclamações. Aliás, algumas provas passaram a chamar essa taxa de "investimento"(?!), com direito a receber determinados produtos, além de se poder participar da corrida, logicamente… Também os valores se alteram ao se aproximar a data do evento, havendo campanhas no gênero "inscreva-se antes do aumento da taxa".
Apesar dessa combinação de inscrições caras e kits recheados ter se revelado produtiva e se espalhado, mais recentemente se verifica algum boicote a essa "gastança", a ponto de determinados organizadores estarem dando a opção de inscrições econômicas (e kits idem), para os que querem apenas participar de boas provas, para correr… Eles ficam na posição diametralmente oposta àqueles que se inscrevem apenas para receber o kit, o que pode parecer incompreensível, mas que se constata.

CONTESTAÇÕES. Com a evolução das corridas brasileiras, tanto no respeito aos corredores (agora também consumidores…) quanto nos aspectos técnicos, a revista pode se concentrar mais na sua linha editorial, deixando um pouco de lado sua postura crítica (construtiva…) em relação aos organizadores.
Verificava-se uma multiplicação de informações para os corredores brasileiros, seja pelas novas revistas que surgiam, mas que também desapareciam, pela proliferação dos sites e mais recentemente pelos blogs, e pelo crescimento no número de assessorias esportivas. Mas muito do que se passava aos adeptos da corrida era a repetição de recomendações que ninguém parava para pensar se eram mesmo "verdades", se tinham algum embasamento científico ou pelo menos técnico.
Dessa forma, recomendava-se aos corredores para treinar dessa ou daquela forma, para terem determinadas atitudes, mesmo sem qualquer comprovação de suas reais utilidades e muito menos se procurando saber onde tinham surgido tais indicações.
Assim, a Contra-Relógio começou a questionar algumas dessas posturas, ficando famosas duas por chocarem corredores, treinadores e outros "especialistas". A primeira foi de que alongamento antes de correr não servia para nada e podia até ser prejudicial, portanto, ao contrário das recomendações da época (alguns poucos anos atrás…) de "alongue antes para evitar lesões". As matérias da CR mostraram que nada havia de comprovação para a sugestão generalizada e que o correto seria realizar um aquecimento previamente e, eventualmente, um alongamento depois de correr.
Agora são poucos os treinadores que ainda fazem sessão de alongamentos antes de treinos, mas algumas provas continuam promovendo esses acontecimentos, que sempre garantem boas fotos antes da largada, além de distrair o público até o momento do sinal de saída.
Outra contestação da revista que contrariou muita gente (inclusive nutricionistas) foi a de que a recomendação "beba antes de ter sede" não passava de uma bobagem. Essa linha chegava a sugerir que se ingerisse um copo d´água a cada 20 minutos (sem contar os que se deveriam tomar antes do treino ou prova), esquecendo de levar em conta as condições climáticas e a real necessidade de cada pessoa. A CR buscou informações concretas e de resultados de pesquisa que sugeriam a hidratação apenas na hora em que o corredor sentisse vontade, e hoje só novatos ainda acatam a velha recomendação, mas que continua a ser divulgada, por inércia.
Nesse caso, havia por trás uma política de valorização da hidratação, por parte de empresas envolvidas com a área, e essa campanha era reforçada por técnicos e nutricionistas, de certa maneira para mostrar o quanto correr era algo complicado, que exigia uma enorme atenção à ingestão de líquidos, antes, durante e depois da corrida. O alerta da CR foi aos poucos sendo aceito, recebendo a "ajuda" de noticiários sobre algumas maratonas do exterior, em que corredores chegaram a falecer por terem tomado muita água, entrando em hiponatremia.
As atitudes da Contra-Relógio nestes 20 anos tiveram sempre como embasamento a busca e divulgação de dados e informações que ajudassem efetivamente os corredores brasileiros a melhorarem seus tempos, a terem mais prazer e menos problemas com seu esporte, os motivassem a participar de provas no país e no exterior, enfim, ser uma referência confiável aos mais diversos desejos e dúvidas daqueles que escolheram a corrida como seu esporte preferido.

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