20 de setembro de 2024

Contato

Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (220)

O álcool nas corridas: use-o ao seu favor

Utilizado como combustível, desinfetante, conservante ou solvente, quando puro ele é um líquido incolor, que possui certa volatilidade e apresenta gosto acentuadamente áspero e irritante. Produto químico simples e desagradável ao paladar, quando combinado com água e outras substâncias adquire aparência, textura, sabor e cheiro apetitosos. Ficou confuso? Tem toda razão. O álcool confunde mesmo.

A confusão começa pela variedade de nomes – etanol, hidratado, etílico, anidro, neutro e absoluto são tipos de álcool -, passa pela gama de aplicações práticas – beber, fazer limpeza, fabricar remédio, conservar produtos, carburar… – e aumenta no instante em que, em meio a tudo isso, descobre-se que ele é a única droga existente que também pode ser classificada como alimento.

Rico em calorias e poderosa fonte de energia para o corpo, o álcool é usado pelas células no desempenho de algumas funções complicadas. No entanto, ao contrário da maioria dos alimentos, ele contém quantidade desprezível de vitaminas e minerais, contribuindo pouco ou nada para a nutrição das células (leia o quadro "Calorias Vazias"). Álcool é fogo.

Derivada do árabe "alkuhl", a palavra álcool significa essência. Para o bem ou para o mal, são as múltiplas e exatas combinações dessa essência com uma enorme variedade de outras substâncias – e bota variedade nisso! – que permitem fazer com que o uísque Bourbon seja diferente do escocês, que a cerveja Pilsen se distancie da Bock, que o vinho tal seja mais macio que o qual, que dão ao "sherry" aquele lindo clarão dourado. Aquecido por esses dois dedinhos de prosa, não importando se fundista ou velocista, se amador ou profissional, se veterano ou novato, está na hora de você saber um pouco mais sobre o álcool e as formas como ele pode atuar tanto sobre seu organismo como sobre suas corridas.

O consumo de álcool. Segundo registros arqueológicos, os primeiros indícios do consumo de álcool pelo homem datam de mais de oito mil anos. Num primeiro momento as bebidas eram produzidas apenas pela fermentação e, por essa razão, tinham teor alcoólico relativamente baixo. Com a descoberta e o domínio da técnica de destilação surgiram as bebidas mais fortes. A partir da Revolução Industrial (meados do século 19) elas passaram a ser fabricadas em série, o que fez baixar o preço e aumentar tanto a oferta como a procura.

No Brasil de hoje, descontados os 5% ou 6% de abstêmios que rejeitam química e mentalmente o álcool e, se o ingerem, passam mal, os demais adultos bebem. Em ambos os grupos há atletas. Existe, porém, uma grande distância entre aqueles que tomam um copo de cerveja ou taça de vinho de vez em quando e os que bebem doses maiores e mais regularmente. Um dos divisores de águas entre as duas situações foi fixado pela Organização Mundial de Saúde.

Para evitar problemas com o álcool, a OMS estabelece que o consumo aceitável deva ficar entre 15 doses por semana para homens e 10 para mulheres, sendo que uma dose-referência contém de 8 a 13 gramas. Os homens não devem ultrapassar 3 doses diárias e as mulheres duas, sendo que ambos não devem beber em pelo menos dois dias da semana. Em uma palavra: moderação, moderação e moderação. Fácil? Parece, mas não é.

Na medida em que transmite idéias diferentes para pessoas diferentes, o uso moderado de bebida alcoólica passa a ser um conceito difícil de estabelecer. Nos Estados Unidos, o National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism utiliza o termo "beber moderado" como referência ao consumo dentro de limites onde não haja prejuízos nem ao indivíduo nem à sociedade.

Segundo o NIAAA, a dificuldade de definição resulta das características pessoais dos indivíduos, ou seja, a quantidade de álcool que uma pessoa pode aquentar sem se intoxicar varia de acordo com genética, tolerância, experiência no beber, tempo no qual o álcool é consumido, estilo de vida e metabolismo. O mecanismo de absorção, este sim, é bastante conhecido.

Absorção e metabolização do álcool pelo organismo. Ao contrário da maioria das gorduras, proteínas e carboidratos, o álcool não requer horas e horas de encharcamento nos ácidos digestivos: poucos minutos após a ingestão sua presença já pode ser claramente detectada na corrente sangüínea.

Bebido, o álcool segue rápido para o estômago. Do estômago cerca de 20% cruzam imediatamente as paredes estomacais e vão ligeiro para o sangue. Os 80% restantes seguem do estômago para o intestino delgado, sendo depois despejados na corrente sanguínea. No sangue o álcool sofre um processo químico chamado oxidação, sendo então decomposto em gás carbônico (CO2) e água, liberando assim energia

Ao mesmo tempo em que se dilui, o álcool se espalha pelo corpo. Trinta vezes mais solúvel em água que em gorduras, ele se distribui praticamente por todos os líquidos corpóreos, intra e extracelulares, de acordo com o conteúdo de cada tecido. Em ordem decrescente, a maior concentração acontece no sangue, cérebro, rins, pulmões, coração, paredes intestinais, músculos estriados e fígado. Nos ossos e no tecido adiposo a concentração é muito baixa.

Vários fatores influenciam a velocidade de absorção, entre eles estão: a plenitude gástrica (se o estômago cheio ou vazio), o tempo de esvaziamento gástrico, o volume, a concentração, a natureza e a temperatura da bebida ingerida e se a ingestão é feita de forma rápida ou lenta. Um adulto de 70 quilos consegue metabolizar de 5 a 10 gramas de álcool por hora. Como um único drinque costuma conter médias mais elevadas, mesmo quem toma apenas um por hora acaba acumulando progressivamente álcool no organismo.

Após ingestão, cerca de 90 a 98% do álcool são metabolizados no fígado, sendo o restante eliminado pelos rins, pulmões, pele e saliva. O processo de eliminação pode levar entre 8 e 10 horas. A velocidade de remoção varia de acordo com fatores étnicos, idade, condição hepática, uso de drogas e, principalmente, se o indivíduo faz ou não uso crônico do álcool.

Droga, estimulante e sedativo. Permitido mas não totalmente liberado (existem regras e restrições ao consumo), o álcool é a droga lícita mais usada no mundo. Contudo, mesmo os usuários habituais não compreendem exatamente como ele os afeta. Solicitados a descrever suas propriedades farmacológicas, a maioria das pessoas, inclusive muitos especialistas, respondem ser o álcool um sedativo. Quando perguntados se é uma droga que cria dependência, a maioria, bebedores e não bebedores, responde sim.

Ambas as respostas são apenas meias-verdades. O álcool em grande quantidade é de fato um sedativo, mas, inicialmente e em pequenas doses, é um potente estimulante para os tecidos nervosos. Além disso, como cria dependência somente no longo prazo e em uma minoria de usuários, a OMS não o classifica como droga viciadora.

Numerosos estudos dão conta que em baixas doses o álcool aumenta o fluxo sangüíneo, acelera a taxa cardíaca, aumenta a condução e a transmissão de impulsos nervosos e excita os reflexos simples espinhais e do tronco cerebral. Não bastasse isso, o desempenho em tarefas complexas melhora, a memória e a concentração se aguçam e o pensar criativo se desenvolve. Através de condicionamento ou aprendizagem, até mesmo a simples previsão de um drinque pode desencadear efeitos agradáveis. Mas…

Mas, em pessoas que não costumam beber, concentrações de 50 a 150 mg/dl de álcool no sangue já são suficientes para provocar sintomas clínicos (veja quadro completo nesta matéria). Se o álcool fica presente no corpo em grandes quantidades por longos períodos de tempo, o fígado é obrigado a trabalhar constantemente para eliminá-lo. A preocupação do fígado com o álcool resulta em negligência para com seus outros deveres. Como resultado, as toxinas se acumulam e as funções de nutrição e hidratação do corpo são prejudicadas. Nesse caso, sendo você um esportista, mais especificamente um corredor, adeus desempenho!

O álcool nas corridas. A ingestão de bebida alcoólica por corredores pode ser analisada pelos mais variados aspectos. Um desses aspectos diz respeito ao momento do consumo, se antes, durante ou após as corridas. Embora não haja qualquer estatística, é fácil catalogar o consumo pós-corrida como o mais freqüente. Qualquer que seja ela, terminar uma prova é sempre motivo de comemoração.

No entanto, embora possa parecer fora de propósito, existem provas onde o competidor bebe álcool durante o percurso. Algumas maratonas são famosas exatamente por conta desse atrativo: corre-se 42 km com vinho servido à vontade nos postos de abastecimento. Duras como toda maratona, essas, que acontecem mundo afora, conservam certo ar de festividade.

Jim Fixx foi um dos primeiros incentivadores e divulgadores dos benefícios da corrida como atividade física. Em 1977, aos 35 anos, começou a treinar, emagreceu 20 kg, parou de fumar e contou suas experiências no livro "O Guia Completo da Corrida", que vendeu horrores em todo o mundo. Frank Shorter também entra na lista dos grandes campeões: venceu duas vezes a maratona Olímpica, em Munique (1972) e Montreal (1976). Na primeira quebrou o jejum dos americanos, que não ganhavam ouro na competição desde 1908. Bill Rodgers é outro corredor lendário: entre 76 e 79, venceu quatro vezes consecutivas a Maratona de Nova York.

Além da paixão pela corrida, entre os três havia outro ponto em comum: mesmo com a pesada rotina de treinamento nenhum deles dispensava um bom gole. Enquanto Jim Fixx afirmava ter descoberto não existir nada melhor que uma cerveja gelada depois de uma corrida longa no calor, Frank Shorter chegou a confessar que tomava algumas latas no dia anterior a uma competição.

Coordenador do Centro de Medicina da Atividade Física e do Esporte da Universidade Federal de São Paulo (CEMAFE-UNIFESP), Turíbio Leite Barros Neto tem voz discordante: "Nem cerveja nem qualquer outra bebida alcoólica. Quando se trata de melhorar o desempenho, o álcool não é um aliado do atleta, não tendo seu consumo qualquer repercussão positiva no rendimento. Neste caso, considero o hábito de beber prejudicial e não o recomendo nem mesmo em pequenas doses".

Mestre e Doutor em Fisiologia do Exercício, membro da American College Of Sports Medicine, pesquisador em Ciências da Atividade Física e autor de vários livros – entre os quais "Exercício, Saúde e Desempenho Físico" -, Dr.Turíbio é enfático ao afirmar que os benefícios do álcool estão associados mais diretamente aos aspectos da longevidade: "Embora dependa do tipo de bebida e da quantidade e freqüência de consumo, com o propósito de aumentar a expectativa de vida o álcool tem, de fato, trazido bons resultados. No entanto, se olharmos de maneira mais crítica, veremos que não é exatamente ele quem faz isso, mas sim alguns componentes de determinadas bebidas alcoólicas". 

Controvérsias à parte, embora os tempos sejam outros e a medicina tenha avançado, o consumo de álcool por atletas sempre foi assunto muito discutido nos bastidores do esporte. Sabe-se hoje que diversos atletas, considerados de elite nas suas modalidades, ingerem álcool publica e freqüentemente, tanto em períodos de treinamento quanto em fase de competição. Alguns efeitos dessa ingestão são bastante conhecidos.

O álcool, a desidratação e o sono Quem corre sabe muito bem: corrida e desidratação não combinam. Neste sentido, por ser naturalmente higroscópico (ávido por água), o álcool no organismo se transforma num grande inimigo do corredor. Entre outros fatos, ele inibe a produção do ADH, hormônio antidiurético liberado para impedir a saída de água do sangue para a bexiga. Por isso, quando a pessoa bebe, a água continua sendo descartada mesmo que sua quantidade no sangue já seja baixa, o que acelera e agrava a desidratação.

"Responsável por processar a maior parte do álcool ingerido, o fígado só consegue metabolizar cerca de 10 g por hora. Significa que até que ele tenha tido tempo de tratar toda a quantidade ingerida, o álcool ficará circulando pelo corpo, inclusive no cérebro. Na prática, em se tratando de evitar a desidratação, para minimizar os efeitos deletérios do álcool, além de beber água, o recomendado é que o corredor mantenha a abstinência de bebidas alcoólicas durante as 48 horas que antecedem as provas, prazo ideal para o organismo se ver livre de todo o álcool", aconselha Neliana Buzi Figlie, 37, especialista em Dependência Química.

Mestre e doutora pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), diretora do Centro de Ensino da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) e há 17 anos lidando com o álcool, Neliana aponta outro risco. "O álcool é um potente agente ansiolítico. Sua ação no combate à ansiedade é, teoricamente, um efeito ‘recompensador'. No entanto, após o relaxamento inicial, ocorrerá uma espécie de excitação desconfortável do organismo e o usuário ficará ainda mais ansioso. Alguém que bebeu para dormir, por exemplo, terá um sono com qualidade inferior à que teria se não tivesse bebido, dormirá apenas enquanto o álcool estiver fazendo efeito e acordará mais facilmente. O álcool é um péssimo indutor do sono e só prejudica quem tem problemas para dormir. Não há sono satisfatório sob o efeito do álcool. No caso dos corredores, que além de treinados precisam estar bem descansados, prejuízo em dobro", alerta.

O álcool e a relação carboidratos X glicose. Outro problema que pode afetar o atleta que tomou uns goles a mais é a hipoglicemia, baixa taxa de glicose (açúcar) no sangue. Em situações normais, quando a glicose cai, o fígado entra em ação e trata logo de fazer a reposição: transforma o carboidrato estocado no organismo (glicogênio) em glicose, evitando que a hipoglicemia se instale. Com o álcool presente no organismo em concentrações elevadas esse mecanismo fica prejudicado. Ocupado em eliminar a bebida, o fígado não produzirá glicose até terminar de remover todo o álcool.

"Embora em doses leves o álcool não deva ser motivo de grande preocupação, já que tende a ser eliminado de forma rápida e sem prejuízos ao bom funcionamento do organismo, é preciso lembrar que seu uso acelera o esgotamento do glicogênio muscular, afetando a resistência aeróbia, principalmente nos exercícios de longa duração. Em outras palavras: se dois maratonistas de idêntico nível técnico forem postos a competir lado a lado, o que tomou álcool vai começar a perder rendimento antes", esclarece Rogério Lachtermacher, médico da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e da Federação de Atletismo do Rio de Janeiro (FARJ).

Que o consumo exagerado de álcool não favorece o desempenho dos atletas todos já sabiam, mas será que seu consumo leve, ou mesmo moderado, é de fato tão prejudicial quanto se supõe? Com a palavra Dr. Rogério: "Alguns estudos demonstraram que não. Na maioria das vezes a ingestão aguda de álcool não necessariamente influencia as funções metabólicas ou fisiológicas essenciais para as performances físicas, como o metabolismo energético, consumo máximo de oxigênio (VO2máx), batimentos cardíacos, rendimento cardíaco, fluxo sangüíneo muscular, diferença de oxigenação arteriovenosa ou respiração. Importante salientar que essa constatação não deve servir para estimular o consumo de álcool entre atletas, uma vez que o índice de lesões no esporte cresce proporcionalmente ao aumento da quantidade de álcool".

Mestre em Ciências Médicas e envolvido no esporte há 25 anos, Dr. Rogério traz a discussão para o campo prático: "Mais que preocupações com corredores que tomam uma ou duas doses na véspera da prova – esses de modo geral têm boa noção do que fazem, e uma tacinha de vinho no jantar de massas pré-maratona tem seu lado positivo -, vejo riscos maiores nos indivíduos que abusam da bebida e depois resolvem, em nome da ‘eliminação do álcool', fazer sauna e, ao meio-dia, saem para correr nos calçadões. Outro ponto importante são os rótulos: é preciso lê-los, principalmente quando se tratar de bebidas desconhecidas. Embora com aparência e até sabor de refrigerante – os ‘coolers', por exemplo -, muitas têm teor alcoólico elevado".

Álcool e doping. Lembra que no início desta matéria falou-se que o álcool confunde"? Pois bem. Depois de todos os aspectos que você acabou de conhecer, o doping é apenas mais um onde ele se envolve provocando dupla visão: em determinadas situações é considerado doping; em outras, não. 

Conceitualmente, doping é o uso de substâncias proibidas que aumentam artificialmente o rendimento esportivo do atleta. O álcool é considerado doping pelo Comitê Olímpico Internacional por uma única e exclusiva razão: como em pequenas doses ele possui comprovadas propriedades ansiolíticas (reduz a ansiedade), seu uso em eventos esportivos de precisão pode melhorar o desempenho, essencialmente por reduzir o tremor.

Por causa dessa característica o COI baniu e passou a punir a utilização do álcool em determinados esportes. Assim, em se tratando de eventos competitivos, nas provas de tiro, tiro com arco, boliche, pentatlo moderno e em algumas outras modalidades específicas o álcool é, sim, considerado doping.

Sejam elas curtas ou longas, de pista ou de rua, nas corridas o álcool não é doping. Se bom ou ruim só depende de você, do uso que faz da bebida. Torcemos para que não se deixe confundir na hora de tomar a decisão. Sirva-se a seu juízo.

Leia mais:
Mitos e Fatos sobre o Álcool

Veja também

Leave a comment