CORRER É UM MOMENTO PESSOAL e quando você está consigo mesmo os pensamentos fluem naturalmente. Ainda que alguns corredores procurem controlá-los a todo custo numa corrida ou treino, fazendo contas, seguindo estratégias previamente estabelecidas, prestando atenção nos movimentos, na respiração ou no ritmo, nos momentos de dificuldades eles surgem muitas vezes do nada, deixando a emoção à flor da pele e se enveredando por lugares em que menos se imagina, conforme se verá nesta reportagem.
ESTOU COM PROBLEMAS FÍSICOS OU É MINHA CABEÇA QUE ESTÁ ME BOICOTANDO?
Para a designer paulista Vivian Garcia, 33 anos, que corre há três e já fez duas maratonas e algumas meias, os pensamentos fluem naturalmente. Nos treinos, são mais ligados a eventos do cotidiano, como trabalho, família ou coisas simples do dia-a-dia. "Às vezes saio do trabalho sem uma solução definida para alguma coisa que comecei e não consegui terminar. Não faço por querer, mas fico mentalizando as possibilidades. Engraçado! Acho que, como correr me relaxa, consigo ver alternativas que não tinha enxergado antes", comenta Vivian, que diz nunca ter saído de uma corrida sem alguma solução para seu trabalho.
No entanto, apesar da cabeça no trabalho, a designer confessa que pensa em outras coisas também, como família, amigos e histórias engraçadas que já passaram juntos. No entanto, esse relaxamento natural nos treinos deixa de existir em provas, principalmente nas maratonas. "O desafio é maior. Os pensamentos são um pouco diferentes. Como estou mais focada, peço para pessoas queridas escreverem alguma mensagem para eu ler momentos antes da prova. Dessa forma, penso não só nelas, mas também nas palavras de carinho e incentivo para terminar."
Outra coisa que ajuda Vivian na maratona é rezar. "Rezo não só para pedir forças a Deus, mas ofereço meu esforço para essas mesmas pessoas queridas ou para alguém que está passando por dificuldade. Assim, fico ligada por pensamento com muita gente", explica a corredora. Apesar do foco voltado para coisas positivas, Vivian confessa que em momentos de dificuldades estes pensamentos podem mudar, principalmente quando "bate" o cansaço e a cabeça começa a jogar contra, pedindo para parar. Nessas horas, ela tenta colocar a mente no lugar e fazer a ela mesma as seguintes perguntas: "Estou com reais problemas físicos ou é só a minha cabeça que está me boicotando?" Com isso, a maratonista tenta não deixar se levar, pensando nos benefícios que a corrida lhe proporciona e também nos seus objetivos naquele momento.
O QUE É QUE ESTOU FAZENDO AQUI?
Como a maioria dos corredores, o advogado Herivelto Francisco Gomes, 46, paulista da cidade de Tupã, considera que correr é uma terapia. E os pensamentos ao longo de um treino ou de uma corrida o levam também a caminhos diferentes. Indagações a respeito de como está fisicamente, se tem pernas ou não para terminar são mais constantes em treinos. Nas provas, principalmente nas maratonas, Herivelto procura relaxar um pouco mais e curtir, observando a paisagem à sua volta, mas o pensamento "preciso terminar a prova" não sai da sua cabeça. "Nos momentos de dificuldade oro a Deus, pedindo que ele me ajude a completar a prova. Em algumas provas confesso que já me perguntei: ‘O que é que estou fazendo aqui?'. Mas, quando vem este pensamento, volto a me concentrar e sempre penso nas pessoas que estão me aguardando na linha de chegada, como esposa, filhos, amigos, treinador, companheiros de equipe. Isso ajuda muito", conta o advogado, que já correu seis maratonas.
Mesmo tentando focar os pensamentos na prova, contando e vibrando a cada quilômetro conquistado, Herivelto lembra de um fato curioso que aconteceu nos 10 km da Tribuna de Santos de 2008. A pressa de chegar ao final era tão grande que se confundiu em relação ao pórtico de chegada e deu um sprint antes do tempo. "Sou míope e tenho ressecamento de retina, por isso não posso usar lentes de contato. Na época, não corria com óculos ou GPS. Estava indo bem e, ao entrar na avenida (beira-mar) vi ao fundo um arco. Pensei ‘nossa", tô voando'. Usei todas as minhas forças para chegar. Ao me aproximar vi que não se tratava da chegada, mas sim de um arco cheio de bexigas de um dos patrocinadores da prova", lembra Herivelto, que teve que correr mais 1 km até o final, buscando forças de onde parecia não ter mais. "Após alguns segundos de frustração, cerrei os dentes e fui em frente, mas, ficou aquela frustração e aquela vergonha."
SÓ FALTAM 2 VOLTAS DE 10 KM…
A administradora de empresas paulista Elaine Serrano, 44, procura não deixar muito espaço para pensamentos que possam tirá-la do seu objetivo final. Com sete maratonas no currículo e um Ironman, nas provas ela prefere correr concentrada no ritmo e na marcação. "Penso que o resultado vai ser o planejado sempre. Visualizo o relógio na chegada com o tempo planejado. Faço contagem regressiva, como ‘só faltam 41 km, ou 2 voltas de 10 km… 2 voltas no lago do Ibirapuera", conta Elaine, que corre há 12 anos. Ainda que sua prova seja totalmente focada no resultado, em situações realmente difíceis, ela tenta sempre ser otimista, pensando em coisas boas. "Numa prova longa presenciamos várias pessoas desistindo, passando mal e aí que entra a confiança e a segurança em tudo que foi feito durante o treinamento."
E, na hora do desespero, ela confessa que já usou de artifícios da crença popular para tentar se livrar de uma situação não muito confortável numa prova. "Saí muito forte numa prova de 10 km e no sétimo quilômetro estava com uma dor forte no baço. Aí lembrei de uma simpatia para aliviar. Fui até o canteiro e arranquei umas folhas da árvore e coloquei na cintura. Ao meu lado veio um rapaz que queria saber o significado do matinho e colocou alguns também no short dele. Fui ultrapassada por muitas pessoas, devido à parada, mas a dor foi embora e ri muito da situação (NR: a chamada "dor do lado" acontece quando se corre mais forte do que estamos preparados, e uma paradinha para pegar o matinho é um bom descanso e, dessa forma, "funciona"…).
Elaine faz um comentário final: "O maior aprendizado que tive durante todos estes anos de corrida é que temos que correr com alegria, usar este tempo para relaxar e agradecer sempre pela saúde que nos proporciona a prática da atividade física."
OS TREINOS FORAM SUFICIENTES OU EU PODERIA TER FEITO ALGO MAIS?"
Para o administrador de empresas Sérgio Mitsuo Takakuwa, 42 anos, reinar o psicológico pode fazer a diferença numa prova. Corredor há sete anos, com 3 maratonas na bagagem, os treinos solitários de fim de semana acabam sendo fundamentais para o aspecto psicológico, onde ele consegue administrar suas dificuldades, como o cansaço, as dores, o desânimo.
E, se há aqueles que usam os treinos para pensar nos problemas pessoais, como vida familiar e trabalho, Sergio anda na contramão disso tudo, preferindo se desligar do mundo. "Penso em terminar aquele treino, em realizar a distância ou o tempo determinado pelo treinador. Quando treino com um objetivo específico, tento imaginar como se estivesse participando da prova. Já nas provas, passam pensamentos ligados ao treino: o que eu fiz certo, o que deixei de fazer, se os treinos foram suficientes ou se eu poderia ter feito algo mais", explica Sérgio, para quem pensamentos negativos parecem ser neutralizados pela adrenalina. "Sinto-me como se estivesse anestesiado."
Ainda que o fator adrenalina ajude nas provas, é claro que existem dias em que as coisas não ocorrem do jeito que queremos e o melhor remédio para isso, segundo ele, é se adaptar à situação. "Existem exceções: na última maratona, a de Buenos Aires, senti muitas dores nas pernas, não estava aguentando mais. O raciocínio começa a ficar lento; pensava comigo: faltam 5 ou 6 km e parece tão distante. Sabia que o tempo que havia planejado seria inalcançável. O cansaço era tanto que já não me importava com o tempo. O importante era concluir a maratona, o que naquele momento já seria uma vitória. Isso foi uma adaptação do pensamento diante de uma situação difícil. Caminhei por 2 ou 3 km e retomei o trote para cruzar a linha de chegada."
É HORA DE DESLIGAR A MÚSICA E CURTIR A FESTA DA CHEGADA.
Corredor há três anos, o carioca Ziel Machado, 50, que vive na capital paulista e é historiador e pastor da igreja Metodista, não começa uma maratona antes de agradecer a Deus pela oportunidade de poder desfrutar o privilégio da vida com saúde. Dada a largada, são as passagens de quilômetros que comandam seus pensamentos, como se fossem um alerta para verificar seu estado geral naquele momento e se suas condições estão de acordo com sua estratégia.
"Geralmente faço isso nos primeiros 5 km e volto a fazer essa verificação nas passagens dos 10 km, 20 km, 30 km e 35 km. Nos intervalos até o 25 km deixo meu pensamento ir conectando-se com as situações da prova, saudando um companheiro, agradecendo um apoio, encorajando alguém. Fico buscando as sombras e curtindo as árvores. Procuro me alimentar do visual do percurso e transformar cada expressão de apoio ao longo do percurso em energia e ânimo para seguir adiante", explica Ziel, que diz ser capaz de gargalhar sozinho lembrando das brincadeiras e papos do tempo de preparação. "Isso me anima muito."
No entanto, diz, "no quilômetro 30 da maratona, o que era diversão vai embora e o silêncio toma conta. No km 35 ligo meu MP3 e vou curtindo a seleção de músicas que meus filhos preparam para mim. Quando chega nos 40 km a emoção é enorme. Desligo a música e deixo o ruído da chegada me puxar, os aplausos, as memórias, os sorrisos. Ver o exemplo de guerreiros e guerreiras concluindo a prova, às vezes caminhando, me dão ânimo novo. Este momento final é singular", conta o maratonista, que confessa ainda que seus pensamentos numa corrida muitas vezes o levaram também a uma nova idéia para um texto que precisava escrever.
Em relação aos pensamentos negativos que surgem diante da dificuldade de uma corrida, Ziel procura não se abalar e prefere encará-los e descobrir o que eles podem trazer de bom naquele momento, esforçando-se para transformá-lo em algo a seu favor. "Não gasto energia em negá-lo ou fazer de conta que não existe; tento encontrar o lado positivo deste impulso negativo e foco nisso. Faço alguns ajustes e sigo em frente."
NÃO VAI DAR PARA COMPLETAR NAQUELE TEMPO, ENTÃO VAMOS PRA OUTRO.
Com quatro maratonas completadas e nove anos de corrida, o engenheiro elétrico campineiro Valter Hiroshi Ide, 42, não entra numa maratona sem ter três objetivos de performance em mente: um ótimo, um bom e um aceitável. E são estes três objetivos que levam seus pensamentos nos momentos de dificuldades de uma maratona.
"Se meu objetivo era terminar sub 4h, mas não vou conseguir, começo a administrar meu ritmo para um pouco acima. Se perceber que nem isso será possível, vou trabalhar para terminar independentemente do tempo", explica Valter, que prefere sempre pensar no lado positivo das coisas. "Assim os pensamentos negativos acabam saindo da minha frente."
Na primeira metade de uma maratona, por exemplo, Valter prefere não fazer contas. "Começo a pensar nos quilômetros que faltam após a metade e vou adminstrando meu ritmo, sempre olhando para o relógio, acompanhando cada trecho para ter uma noção do meu tempo final."
Mesmo parecendo ter o controle da situação, a famosa pergunta "o que estou fazendo aqui?" não deixa de estar presente nos momentos de dificuldade. No entanto, Valter garante que sabe muito bem como administrar isso, seguindo sempre seus três objetivos aceitáveis como resultado final.