Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (96)

Morte de brasileiro em NY serve de alerta

José Carlos tinha dois stents no coração, mas, até onde se sabe, estava liberado pelo seu médico para correr e mesmo para enfrentar o desafio da maratona. Ele participava de um projeto de promoção da saúde e bem-estar na empresa em que trabalhava (Sul América Seguros), que exige dos participantes exames médicos periódicos, além de treinar com supervisão de uma assessoria esportiva (Run&Fun, do treinador Mário Sérgio). O caso dele, no entanto, está longe de ser isolado, sendo, infelizmente, apenas mais um número numa estatística que assusta: anualmente dezenas de pessoas têm morte súbita em decorrência de atividade física e prática esportiva, seja em treinos ou competições, a grande maioria delas em função de doença cardíaca pré-existente, que, muitas vezes, o atleta desconhece – ou finge ignorar, ou, ainda pior, subestima. Em Nova York 2008, além de Gomes, houve outros três casos de ataque cardíaco, que resultaram em outras duas mortes: um americano, de 66 anos, que havia completado caminhando, em 9h16, a sua quarta Maratona de Nova York, faleceu horas depois de cruzar a linha de chegada. O terceiro óbito, de um homem de 44 anos, cuja nacionalidade não foi divulgada, aconteceu 11 dias depois da prova, em 13 de novembro. Ele sofrera um ataque cardíaco durante a prova, na altura do km 33, e desde então estava internado no hospital.

Outros corredores morreram este ano, e nos anos anteriores, em maratonas e corridas de distâncias menores, e também durante treinos, tanto no Brasil quanto em várias partes do mundo. Porém, estatísticas com maratonas nos Estados Unidos variam de um óbito para cada 75 mil concluintes a até 300 mil, o que mostra que as chances de se morrer num acidente de carro, por exemplo, são bem maiores do que ao se correr os 42 km. Na Meia-Maratona do Rio deste ano, informações não oficiais dão conta de que um corredor sentiu-se mal no km 16 e veio a falecer em seguida. Também no Rio, só este ano, houve dois casos de óbitos de alunos de academias de ginástica durante atividades físicas, e um outro em Brasília. Poderíamos enumerar casos e mais casos, citando também jogadores de futebol e praticantes de outros esportes. O que importa, no entanto, é responder à pergunta que todos se fazem quando estas notícias chegam à mídia: afinal, correr – ou praticar qualquer outro esporte – pode levar à morte? A resposta é sim, ainda que as chances sejam mínimas.

EXAMES PERIÓDICOS SÃO FUNDAMENTAIS. Porém, estatísticas à parte, é mais do que sabido que a prática de atividade física regular e com intensidade controlada, de preferência sob a supervisão de um professor de educação física, acompanhada de hábitos alimentares saudáveis e repouso, proporciona um enorme leque de benefícios à saúde do indivíduo. No entanto, é importante que essa prática se faça sempre acompanhar de exames periódicos, como laboratoriais (especialmente o de sangue), teste ergométrico e eletrocardiograma, obviamente supervisionados por um cardiologista. Só assim o atleta, profissional ou amador, com objetivos competitivos ou não, poderá descobrir eventuais problemas cardíacos. "Os riscos da corrida ou de qualquer exercício intenso aumentam muito quando há uma doença cardiovascular de base, chegando a 100 vezes em pacientes com doença coronariana. Nestes casos, o exercício acaba sendo um gatilho para o desencadeamento de arritmias nos pacientes com doenças cardiovasculares", alerta a Dra. Luciana Diniz Nagem Janot de Matos, responsável pelo ambulatório de Cardiologia do Esporte e Exercício do InCor, de São Paulo.

Especialista em cardiologia e medicina do esporte, além de presidente do Departamento de Cardiologia Esportiva da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o Dr. Nabil Ghorayeb, de São Paulo, é enfático: "Correr uma maratona não é como passear no shopping, é preciso treinamento sério e adequado e exames em dia, com avaliação médica competente", afirma. Mesmo assim, ele faz questão de ressaltar que os exames, em si, não são um seguro de vida ou salvo-conduto para o atleta fazer o que quiser. "É preciso repetir os exames, sempre, pois, além de eles terem validade, ainda há uma janela de erro de até 10%", completa o Dr. Nabil. Para quem acha que pode haver certo exagero nas palavras do especialista, ele lembra que, em 2007, o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, onde trabalha e que é uma referência em cardiologia no Brasil, realizou exames em cerca de 300 atletas brasileiros selecionados para disputar os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro. "Cerca de 25% deles tinham colesterol elevado e 2%, problemas cardíacos, sendo que uma jogadora de basquete foi impedida de participar dos jogos. Ela foi jogar na Espanha, onde teve uma síncope durante um jogo e acabou tendo o seu problema descoberto, o que resultou na sua expulsão da equipe", relembra.

Com cerca de 7 mil exames em atletas já realizados ao longo dos últimos 30 anos no Dante Pazzanese, sendo 3,8 mil em pessoas com menos de 35 anos, o Dr. Nabil revela que, neste subgrupo, 8,2% apresentaram cardiopatias, benignas ou malignas. Mesmo assim, muita gente insiste em continuar treinando ou mesmo competindo. "O atleta tem o direito do livre arbítrio; agora, cabe ao profissional médico entregar um laudo com seu parecer ao responsável, familiar ou profissional, no caso dele fazer parte de um clube, equipe, associação ou federação", destaca. Hoje, no Brasil, há pelo menos um caso notório de atleta profissional com problema cardíaco que continua competindo em alto nível: o atacante Washington, do Fluminense, que é diabético e, assim como o maratonista José Carlos Gomes, tem dois stents no coração. Aliás, ainda nos gramados, a morte do jogador Serginho, zagueiro do São Caetano, em outubro de 2004, durante uma partida do Campeonato Brasileiro, causou enorme comoção à época. Segundo o Dr. Nabil, ele já havia se sentido mal um mês antes do falecimento, durante uma outra partida na mesma competição.

ATENÇÃO AOS AVISOS DO CORPO. Essa observação é importante para destacar um outro aspecto dos casos de morte súbita no esporte: os avisos do corpo. "Esporte não mata, o que mata são as doenças pré-existentes não diagnosticadas ou não valorizadas pelo atleta, porque o corpo sempre dá avisos, como náuseas, azias, falta de ar ou palpitações", faz questão de enfatizar Dr. Nabil. Mesmo assim, tem gente que insiste em forçar a barra, muitas vezes com a conivência de colegas atletas ou mesmo de treinadores, menosprezando os sintomas. "Já abri mão de treinar um atleta cujos exames apontaram arritmia cardíaca; então, por recomendação médica, ele não poderia passar de 50% do seu VO2 máximo, ou seja, tinha que fazer atividade de baixa intensidade e voltada apenas para qualidade de vida", lembra Lauter Nogueira, no ramo há 25 anos e responsável, juntamente com outros dois profissionais, pelos treinos de 115 atletas no Rio de Janeiro. Felizmente, neste caso, o seu ex-atleta acabou se rendendo às evidências e desistiu de treinar forte, depois de levar alguns sustos – os tais avisos do corpo.

No caso específico da maratona, porém, estudos e pesquisas mostram que os danos pelo esforço excessivo vão além do normal, mas, por outro lado, são reversíveis. "Exames feitos em atletas depois de provas de longa distância, como a maratona, mostraram níveis enzimáticos compatíveis com os de uma isquemia, além de alterações estruturais cardíacas, mas que parecem reversíveis. Ainda não sabemos os efeitos destas alterações no longo prazo, porém o mais importante é destacar que as magnitudes destas alterações correlacionam-se com o preparo para a prova. Ou seja, quanto menos treinados eram os indivíduos, mais alterações eles apresentavam", observa Dra. Luciana.

Dr. Nabil, por sua vez, realizou um estudo com 70 atletas na Maratona de São Paulo, em 2006, todos com pelo menos três maratonas prévias no currículo e com tempos entre 3h e 4h para os 42 km. "Examinamos os atletas um minuto após cruzarem a linha de chegada e todos apresentaram alterações no sangue e no funcionamento do coração, com inflamações e elevados níveis das enzimas troponina e Pro-BNP, além de um enorme aumento dos glóbulos brancos", revela. "Isso mostra que aí existe algo, mas não sabemos ainda exatamente o que é", completa. Para o médico, maratona não é exatamente o que se poderia chamar de uma atividade saudável. "Submeter o corpo a um alto desgaste físico, como o de uma maratona, não é o caminho que seria recomendado por nenhum cardiologista para quem busca apenas saúde. Para isso, bastam apenas quatros sessões semanais, de meia hora cada, de atividade moderada, ou três sessões de uma hora cada", sugere. No entanto, para os que insistem em encarar o desafio de correr uma maratona, ele recomenda treinamento sério, ao que a Dra. Luciana acrescenta: "recomendamos que se corram, no máximo, duas maratonas por ano, além de uma corrida de até 10 km a cada seis a oito semanas". Com o fenômeno do estrondoso crescimento das corridas de rua, muita gente vem cometendo excessos, participando sem preparo adequado e numa freqüência bem maior do que a que seria recomendável.

Finalmente, para não fazer da sua corrida uma questão de vida ou, literalmente, morte, é preciso usar de bom senso acima de tudo, para aprender a escutar o próprio corpo, conhecer e respeitar seus limites, traçar objetivos razoáveis e treinar adequadamente para alcançá-los, fazer exames periódicos com um bom cardiologista e treinar com supervisão de um professor de educação física, além de alimentar-se, hidratar-se e descansar adequadamente. Desta forma, a corrida certamente vai lhe proporcionar muitos e saudáveis anos de vida.

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