Quando os pais distribuíam tarefas domésticas para as cinco filhas, cabia à de número quatro buscar as compras ou levar os recados na cidade de Joaquim Gomes (AL), distante 14 km do sítio onde viviam. "Morávamos na roça e lá não havia luz elétrica. Quando acabava o querosene para a lamparina ou qualquer outra coisa, não importava se era dia ou noite, alguém precisava comprar. Eu era a mais rápida de todas, ia e voltava correndo", conta Marily dos Santos, atleta brasileira que representará o Brasil na maratona feminina na Olimpíada de Pequim, em agosto. "Se fosse para lavar louça, levava o dia inteiro", diverte-se.
A família de lavradores mantinha seu sustento com as plantações de abacaxi, banana, feijão e milho. E às vezes era preciso até mesmo tirar as meninas da sala de aula para ajudar na lida. "Nós íamos para a escola, mas ficávamos na expectativa. Quando ouvíamos bater na porta, sabíamos que era o pai chamando. Acabávamos estudando duas horas e trabalhando três", lembra.
Aos 12 anos, Marily recebeu uma visita ilustre: o primo José Carlos Santana, atleta profissional, três vezes campeão da Maratona do Rio de Janeiro (88, 89, 91) e medalha de prata no Pan de Cuba (91). Ele estava de férias e foi descansar no sossegado sítio da família. Ao perceber o talento da prima para a corrida, sentenciou: "essa menina vai dar o que falar quando crescer". Disse que gostaria de levá-la para treinar em Maceió, mas ainda a achava muito nova. Os pais, sempre cuidadosos com as filhas, também consideraram que era cedo demais.
A PRIMEIRA DISPARADA. O tempo passou e aos 17 anos, finalmente, Marily pode acompanhar o primo em uma prova de 10 km na capital alagoana: a Corrida do Trabalhador. "Pensei que teria umas duas moças disputando comigo. Cheguei lá, vi tantas pessoas (havia cerca de 300). Foi uma emoção! E os homens também corriam junto. Pensei: ‘é ruim esse monte de gente chegar na minha frente'. E saí em disparada, querendo acompanhar o ritmo forte dos homens", conta. Ela fechou com o tempo de 38:30 e ficou em quarto lugar na classificação geral feminina.
Havia premiação para as três primeiras colocadas. Mas a estreante Marily impressionou tanto a organização, a ponto de sair de lá com pelo menos uma medalha. Com o prêmio exibido orgulhosamente no peito, voltou para casa e disse à família que queria continuar correndo. "Meu pai achava que era coisa só para homem. Além do mais, me via ainda como a menininha dele, ficava com medo de me deixar ir para uma cidade grande. Eu entendo o lado dele e agradeço a criação que tive", fala a atleta.
Ela voltou a trabalhar na roça, mas no ano seguinte pediu novamente a José Carlos Santana que a levasse para outra corrida. Como terceira colocada, faturou um prêmio de R$ 300. "Não sabia onde botava tanto dinheiro".
MUDANÇA DE RUMO. Com quase 20 anos, Marily dos Santos mudou-se para Juazeiro, na Bahia, onde morava o primo. Ali, passou a ser orientada pelo treinador Gilmário Mendes – que algum tempo depois viria a tornar-se seu marido também. No início, confessa, chegou a pensar se daria certo namorar o técnico e manteve discrição com o relacionamento. Atualmente, casada há oito anos, garante que não tem problema algum. "Não misturamos as coisas. Nos treinos, ele é meu técnico e sigo suas ordens. Em casa, ele é meu marido e, se precisar, eu mando nele", conta, rindo.
Em 10 anos como profissional, a atleta já conquistou 312 troféus e subiu ao pódio mais de 300 vezes, em cerca de 328 provas que participou. Em 192 delas foi campeã e em 36, vice-campeã. "A maioria das competições aconteceu na Bahia ou em outros estados do Nordeste. Também tiveram 22 provas internacionais, entre elas um mundial de meia-maratona em Portugal e uma etapa mundial da Avon Running Contra o Câncer de Mama, em Bangkok, na Tailândia, na qual Marily foi sexta colocada geral entre 116 mulheres de 34 países", contabiliza Gilmário Mendes.
O ÍNDICE A. Nos últimos meses, ela treinava ainda mais duro, visando obter o índice A, que é de 2h37, para a maratona feminina dos Jogos Olímpicos de Pequim. "Chegamos a alugar uma casa em Campos do Jordão durante a preparação. Meu treinador dizia que acreditava em mim e que ainda me colocaria em uma Olimpíada", revela a atleta. O resultado apareceu na Maratona de Santa Catarina – a quinta de sua vida -, debaixo de muita chuva, no mês de abril. Marily dos Santos completou a prova em 2:36:21.
"Conversei antes com minhas amigas, a Marizete (Moreira dos Santos) e a Conceição (Maria de Carvalho), e disse que, independente do índice, eu ia ganhar. No dia, chovia muito, eu não enxergava nem o meu relógio. No quilômetro 15 já queria puxar, mas meu treinador disse que era cedo. No 16, pensei: ‘ele pode até brigar comigo, mas eu vou é embora. Dei logo uma pancada. Passei a liderar a prova, com coragem, sabendo que ia fazer um tempo bom. No 23, eu disse: ‘mesmo que eu não faça o tempo, não vou deixar ninguém mais passar na minha frente'. Não tinha mais nada na minha cabeça, só o corpo me levando. Eu sei que eu queria era correr", revela. Na chegada, mais emoções: "Eu vi o tempo que o cronômetro do carro-madrinha estava marcando e fiquei abismada. Mas o locutor errou e disse que era índice B. Meus olhos se encheram de lágrimas. Logo depois, com a confirmação do índice A, foi só alegria, ao lado do meu treinador e dos amigos. Me senti muito vitoriosa".
Feliz com a conquista, Marily dos Santos agora foca nos treinos para a maratona olímpica, que beiram os 150 quilômetros semanais. "E é pouco para mim", diz a guerreira. O treinamento é dividido em dois horários, de manhã e à tarde, com rodagem, tiros de velocidade e musculação. Um médico e um fisioterapeuta também acompanham os trabalhos.
Quanto à possibilidade de trazer medalha para o Brasil, é cautelosa. "Vou ver isso no meio da prova. Meu objetivo principal é chegar entre as 10 primeiras. Sei que irei encontrar atletas muito mais experientes do que eu e tenho respeito por elas", admite. Como parte de sua preparação, ainda pretende conversar com a amiga Márcia Narloch. "Gosto muito dela e confio em sua experiência. Quero saber como é participar de uma Olimpíada".
Na vida pessoal, em um futuro ainda um pouco distante, Marily dos Santos planeja aumentar a família. "Pensar em ter filhos, eu penso. Mas quero me estruturar. Tenho mais a conquistar no atletismo. E uma criança não é um troféu que você exibe, merece atenção, dedicação, respeito".
A atleta brasileira diz que tudo o que conquistou deve ao esporte e é muito grata ao apoio que teve da família, dos amigos e dos patrocinadores. "Só tenho a agradecer a Deus. A corrida me tirou de um local que não tinha futuro. Olhe onde eu estava e onde estou hoje. Chego a me emocionar com tudo isso".