por Nelton Araújo
“Seu nome é Jesse, estou certo?”, se apresentava Charles Riley ao jovem James Cleveland Owens, interrompendo sua diversão durante o recreio. Treinador de atletismo da Fairmount Junior High School, na cidade americana de Cleveland, tinha faro aguçado para encontrar talentos e tal instinto o levou a se deparar com as pernas simetricamente perfeitas, feitas para correr e saltar do menino afro-estadunidense.
Do outro lado, aos treze anos e ainda se acostumando a ser abordado de forma gentil por um homem branco, James apenas acenou positivamente ao treinador. Mas deixou a desconfiança de lado, ao aceitar o convite do treinador para entrar na equipe de atletismo da escola, abrindo um largo sorriso que encantaria americanos brancos, negros, e até mesmo a Alemanha nazista.
Nascido em 12 de setembro de 1913 no Estado do Alabama, James Cleveland Owens sempre considerou sua infância essencialmente feliz, porquanto ele não tinha ideia de quão pobre ele era. Uma das suas poucas diversões era correr com os irmãos pelos campos de algodão onde toda família Owens trabalhava para ter algo no prato de jantar.
Nove anos depois, sua sorte começou a mudar, quando acompanhou seus pais em direção ao norte do país, mais especificamente para a cidade de Cleveland, no estado de Ohio. Eles acompanharam o movimento de migração de cerca de 1,5 milhão de afro-americanos que, do sul, dirigiram-se ao norte ou noroeste do país, em busca de melhores oportunidades e fugindo das “Leis Jim Crow”, adotadas nos estados sulistas, que institucionalizaram a segregação racial, afetando afro-americanos, asiáticos e outros grupos étnicos e que vigoraram até 1965, mas que tem reflexos visíveis na forma de enxergar a questão étnico-racial por alguns grupos sociais norte-americanos até hoje.
Agora, aos 15 anos, J.C, – como seus pais o chamavam, tinha largado os campos de algodão e vivia tranquilamente fazendo parte do time de atletismo da escola. Só cogitou a ideia de seguir carreira na modalidade depois que Charles Riley percebeu o quanto ele era diferenciado. Como um teste surpresa, organizou uma competição interna de 100 jardas (91,44 metros), chamando todos seus atletas. Owens venceu, completando a prova em 11 segundos.
O treinador duvidou ao olhar seu cronômetro, fez um rápido cálculo e viu que o rapaz, com menos de dois anos de treinos, já figurava entre os melhores do mundo: até aquele momento, somente oito velocistas tinham um tempo melhor do que o de Owens. Charles Riley reorganizou seus horários para passar a aperfeiçoar o treinamento do agora “Jesse” – seu apelido na escola.
Nos mais de seis anos juntos, o jovem velocista encontrou em Riley o afeto que não tinha de seu próprio pai. E a recíproca foi verdadeira: como seus filhos de sangue não seguiram a carreira esportiva, Charles tratou Jesse como um filho, não hesitando em convidar para fazer as refeições em sua casa ou mesmo comprar suas sapatilhas.
DESCONCENTRAÇÃO. Com apenas 18 anos, seu nome já rodava o país e era dado como certo para participar dos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles. Contudo, o velocista tinha suas fraquezas. Uma delas era sua largada, com o tempo de reação mais lento que seus concorrentes. Mas pior ainda era a sua concentração. Quando os dilemas externos à pista não eram abafados pela sua mente, Owens tornava-se um corredor mediano. Vendo-se em meio a uma discussão político-racial sobre a universidade que deveria escolher e, principalmente descobrindo que engravidara sua namorada, Jesse Owens se deixou abalar e não conseguiu a vaga nas qualificatórias.
Ao menos definiu seu futuro escolar, aceitando a bolsa de estudos da Universidade do Estado de Ohio. Assim, Jesse ficaria perto da família e de sua filha recém nascida. Porém, o bastão de seu treinamento passava para as mãos do americano Larry Snyder, técnico da equipe de atletismo da universidade em Ohio. Não tendo a pretensão de substituir Charles Riley no papel de “pai”, deu continuidade ao método do primeiro treinador de Owens.
Nem mesmo deixou o orgulho falar mais alto quando Jesse informou-lhe que iria passar um final de semana com Charles Riley para aperfeiçoar sua largada, o que conseguiu. A única inovação de Snyder era fazer com que Owens bloqueasse tudo que não fosse a pista: pensamentos, torcida, provocações, tudo agora era abstraído por um imperturbável Jesse Owens.
Larry Snyder se assemelhava a um irmão mais velho de Owens. E em maio de 1935, na cidade americana de Ann Arbor, Snyder pegaria seu “irmão mais novo” pelo braço, durante o campeonato que estava prestes a começar. Jesse Owens havia caído em um lance de escadas cinco dias antes e, agora, mal conseguia andar, com dores lancinantes nas costas. Depois de muita conversa, ao invés de hierarquicamente se impor, Snyder concedeu-lhe um voto de confiança: Jesse Owens disputaria a primeira final, e caso corresse pior do que o habitual, ele abandonaria as competições.
3 RECORDES MUNDIAIS. Liberado, Owens foi para o aquecimento da final dos 100 m, onde largou menos mal que do costume e atingindo um ritmo espetacular, ganhou a prova em 9.4 segundos, igualando o recorde mundial! Convenceu o técnico: poderia participar da competição. Mas, e as dores nas costas antes da primeira prova? Bem, aparentemente desapareceram durante os 45 minutos em que Owens conseguiu ser campeão nos 100 e 200 m, no salto em distância e nos 110 metros com barreira, batendo três recordes mundiais e igualando outro. Em 45 minutos!
Esse dia colocou Owens em outro patamar, onde pela primeira vez transcendia o esporte. De repente, ele era mais do que um velocista; ele era mais do que apenas uma celebridade; era, na linguagem de seu tempo, um crédito para sua raça.
No entanto, estar nesse patamar o colocaria no meio da maior polêmica da década nos esportes dos EUA: o boicote aos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. O presidente da AAU (União dos Atletas Amadores), principal entidade que regulamentava os esportes nos EUA, desde 1933 era contrário à ideia de levar a delegação americana a um país liderado por ideais que discriminavam minorias étnico-sociais, como judeus, negros e até ciganos, em prol do ideal de que seria perigoso ao futuro da “raça ariana” se misturar com essa gentalha.
Logo, todos os jornalistas queriam saber se Jesse Owen apoiava a ideia do boicote americano aos jogos. Este, por sua vez, não tinha interesse algum em se intrometer em assuntos políticos, especialmente a respeito de um que poderia lhe custar uma viagem aos Jogos Olímpicos. Ele já tinha recordes mundiais, porém era uma medalha olímpica que realmente o colocaria na História, pois uma medalha não pode ser tirada de você (a não ser que você seja Ben Johnson…). E, simplesmente, ele não respondia a nenhuma questão sobre o assunto.
IDEAIS NAZISTAS. A Olimpíada de 1936 foi escolhida para ser sediada em Berlim antes da ascensão do governo nazista e, a princípio, não recebeu muita atenção por parte de Adolf Hitler. Mas passou a ser vista como uma ótima oportunidade de propagar os ideais nazistas para o mundo, com o governo alemão aumentando o orçamento olímpico de 1,5 milhão para 28 milhões de marcos.
Quem mudou a cabeça de Hitler foi Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda e braço direito do Führer. Para eles, os alemães (leia-se, os arianos) teriam a possibilidade de se mostrar mais encantadores do que os parisienses, mais animados do que os romanos, mais cosmopolitas do que os londrinos e até mesmo mais eficientes do que os nova-iorquinos.
E para tais objetivos se concretizarem não era necessário somente o investimento de milhões de marcos, mas a participação das principais nações, entre elas, os Estados Unidos. Justamente o país onde, em 1933 a 1935, acontecia a fervorosa discussão sobre se não estariam legitimando os ideais antissemitas do governo alemão, caso fossem aos Jogos Olímpicos.
Então, o grupo de Hitler e Goebbels deixou de lado seus valores antissemitas e aceitou os judeus alemães de bom grado? Que nada! Eles só precisavam prometer aos delegados americanos, que estavam em Berlim, que nenhuma etnia seria discriminada. Mas não havia intenção alguma de cumprir com tal compromisso. E segregar, sobretudo, judeus, era feito de forma indireta, exigindo que os clubes locais não os aceitassem, o que os impedia de participar das qualificatórias.
HIPOCRISIA. Já os delegados norte-americanos voltaram satisfeitos da reunião em Berlim. Liderados pelo empreiteiro Avery Brundage, ex-presidente da AAU, aceitaram a retórica nazista, chegando ao ponto de inverter seu discurso, acusando que os judeus não podiam usar os Jogos como arma em seu boicote contra os nazistas. Avery Brundage veio também com um contrato secreto para construir a nova embaixada alemã nos EUA.
E até para os atletas, sobretudo os negros, o boicote era uma hipocrisia. Afinal, qual motivo de não ir à Alemanha quando havia condições semelhantes aos negros em seus domínios? O que justificava exigir o fim da segregação dos judeus em domínios germânicos, quando nos EUA vigoravam regras exigindo assentos diferenciados para negros e brancos em ônibus, lanchonetes, banheiros?
Até mesmo para os atletas americanos judeus ir a Berlim era uma boa oportunidade em constranger Hitler e repudiar suas pretensões de superioridade racial. “Nenhuma situação política deve alterar os planos para os próximos jogos em Berlim”, encerrava categoricamente a missiva onde os atletas afro-estadunidenses enviaram aos delegados da AAU, antes da reunião que decidiria o futuro americano quanto aos Jogos em Berlim, em dezembro de 1935. Foi assinada, entre outros, por Ralph Metcalfe, Eulace Peacock (que acabou não indo para os Jogos, contundido), e Jesse Owens, que enfim, rompeu o silêncio: não deixaria passar a chance de entrar para História, mais por ganhar o ouro olímpico do que em constranger o chefe do Terceiro Reich.
REVEZAMENTO DA TOCHA. Depois de nove dias viajando de navio rumo a Berlim, sem poder ao menos trotar, Owens e a delegação americana chegavam, enfim, à sede dos Jogos de 1936. Poupado de ir à cerimônia de abertura, acompanhou o evento da Vila Olímpica, através do sistema de transmissão de imagens da recente inventada televisão. Viu, assim, as mais de cem mil pessoas presentes no estádio de pé, com os braços direito esticados, saudando o homem que, para eles, tinha tirado o país da miséria e da humilhação do Tratado de Versalhes. Escutaram um nada empolgante “Eu anuncio abertos os Jogos Olímpicos de Berlim” disse Hitler e, momentos depois, o jovem corredor Fritz Schilgen apareceu no portão leste do estádio. Era um típico ariano: elegante, bem afeiçoado e platinadamente loiro. Na sua mão direita segurava a tocha olímpica. Ela teria passado pelas mãos de três mil pessoas na viagem desde Olímpia, a cidade de nascimento dos Jogos até Berlim. Sim, leitor, o revezamento olímpico foi uma invenção do Comitê Alemão para os Jogos de 1936.
A tal aversão de Hitler pelos Jogos se evaporou à medida que estes começaram. E logo no primeiro dia, ele e o estádio já poderiam assistir a Jesse Owens, que não somente vencia as primeiras qualificatórias dos 100 m, como já quebrava o recorde mundial – não homologado por conta do vento a favor. Se Jesse transpirava serenidade na pista, Larry Snyder dava sinais da sua desconfiança com o Comitê Olímpico Americano.
Não é tão paranoico assim, que os EUA não quisessem ser vistos como uma nação cuja força esportiva dependia dos atletas negros. A própria imprensa alemã já desprezava esse potencial, por conta de tal dependência aos atletas afro-americanos. E os treinadores selecionados para a equipe de atletismo, Dean Cromwell e Lawson Robertson, eram da Universidade do Sul da Califórnia, uma das mais tradicionais do país, tanto na criação de atletas olímpicos, quanto nas práticas racistas. Irrequieto, Larry Snyder usou das suas próprias economias para poder ir a Berlim, a fim de evitar que “forças ocultas” conseguissem o improvável: tirar a medalha do pescoço de seu pupilo.
COM SAPATILHA ALEMÃ. Para reforçar sua “paranoia”, ao chegar a Berlim, Snyder descobriu que a encomenda de sapatilhas feita pelo Comitê Olímpico não chegaria a tempo e Jesse Owens, acreditando que seria abastecido pela delegação, estava sem sapatilha para competir. Com que sobrou do dinheiro de viagem e hospedagem, Snyder bateu de loja em loja procurando uma sapatilha certa para seu atleta.
Ao mesmo tempo, os irmãos alemães Adolf e Rudolph Dassler procuravam entrar em contato com o velocista americano para convencê-lo a utilizar uma sapatilha que eles tinham preparado especialmente para a ocasião. Snyder e os irmãos Dassler acabaram encontrando-se e o americano ao ver a qualidade do calçado, não hesitou em aceitar a oferta. Jesse Owens foi, assim, o primeiro atleta a ser patrocinado pela empresa que daria origem a duas das maiores marcas no mundo esportivo atual: Adidas e Puma.
Realizada a tarefa do dia, Owens assistiu a cerimônia de medalhas do salto em altura, composta por Cornelius Johnson, Dave Albitron (seu colega de Universidade e atleta de Snyder) e Delos Thurber. Logo no primeiro dia, um pódio com três americanos, sendo os dois primeiros afro-estadunidenses. Hitler, que assistiu a todas as competições, inclusive a longa disputa pela medalha de prata entre Albittron e Thurber, foi orientado pela segurança a sair do estádio antes dos cem mil espectadores ali presentes. Não cumprimentou, assim, os atletas americanos, alimentando a já pré-concebida desconfiança de alguns de que o Führer esnobaria os americanos.
Na verdade, para Jesse, o primeiro desafio dos Jogos seria a final dos 100 m, no segundo dia de competições. Isso porque, se por algum motivo ele não conseguisse ganhar o salto em distância e mesmo os 200 metros, vencer os 100 metros já lhe asseguraria um lugar no panteão olímpico. Às 17 horas do dia 3 de agosto, competiu contra o barro vermelho da pista olímpica, pesada e lenta por conta da fina chuva que tinha caído durante o dia. E contra a única pessoa que poderia roubar o seu ouro olímpico: o também afro-estadunidense Ralph Metcalfe, medalhista de prata nos Jogos de Los Angeles.
PRIMEIRA MEDALHA. Ambos os obstáculos desapareceram quando Owens, enfim, reagiu prontamente ao tiro de largada e sem qualquer dificuldade venceu sua primeira final nos Jogos, com o tempo 10.3. Seria recorde mundial não fosse, novamente, o vento a favor acima dos limites permitidos. Mas isso agora era irrelevante: mais do que a medalha dourada, ele se deparou com milhares de espectadores, majoritariamente alemães, que naquele instante não estavam vaiando ou desprezando, mas ovacionando, de pé, Jesse Owens.
Perdido no olhar, foi entrevistado, onde balbuciou algumas palavras sem nexo, mas logo parou, olhou de novo para a multidão e finalmente conseguiu se expressar: “Este é o dia mais feliz da minha vida. Eu acho que é o mais feliz que eu já terei.” Não havia sorriso mais largo do que o dele enquanto a bandeira americana era hasteada ao som de “The Star-Spangled Banner” (o hino nacional dos EUA), na cerimônia de entrega da sua primeira medalha.
HITLER ESNOBOU OWENS? Agora é hora de saber: Hitler virou as costas para Owens? Ele foi embora assim que viu sua vitória? Ou como no filme “Race” – a cinebiografia de Owens lançada esse ano – mandou um funcionário inventar uma desculpa e evitou o confronto? Enfim, Hitler esnobou Owens?
O denominado “mito do esnobismo de Hitler” é a forma mais fácil de entender o que houve. Afinal, o conceito de “raça ariana”, incorporada à ideologia nazista, inferiorizava os negros. E o próprio Führer abriu um precedente, quando não recebeu os americanos Cornelius Johnson e Dave Albittron no dia anterior. E longe de afirmar que o Führer nutria enormes simpatias aos atletas negros, essa é apenas parte da história, não o todo.
Atentando às fontes, a narrativa passa a ter mais nuance. Praticamente todos os jornais norte-americanos que enviaram um correspondente à capital alemã, estamparam em seus periódicos manchetes tais como “Chanceler Hitler trocou acenos com Owens”, ou “A saudação de Hitler agradou Owens” e até mesmo “Hitler renuncia à lei de Jim Crow para saudar Owens”, publicado no tradicional Washington Post.
Partiu dos jornais voltados exclusivamente à comunidade afro-estadunidense a história do desprezo do Führer. Mas não foram todos, apenas os que não conseguiram enviar correspondentes, publicando suas interpretações das notícias divulgadas pelas agências de notícias internacionais.
O próprio Jesse Owens, entrevistado pelo correspondente do New York Times, afirmou categoricamente que não tinha sido esnobado. Palavras dele: “Depois de vencer eu me apressei a ir para a cabine de rádio e ele se levantou, acenou com a mão para mim em respeito e eu acenei para ele. Acho que os jornalistas mostram um mau gosto em criticar o homem da hora na Alemanha”.
Anos mais tarde, ele escolheria não mais se lembrar tanto do que realmente houve quanto de suas palavras. Hitler, sem que pese todos seus defeitos, pode não ter recebido Owens tal como recebeu os medalhistas alemães, mas daí a dizer que ele desprezou e esnobou o atleta, há uma boa distância. Houve, no mínimo, respeito por parte do comandante do governo alemão.
RECORDE MUNDIAL NOS 200 M. Se o segundo dia dos Jogos foi da controvérsia histórica, o terceiro seria o mais desgastante da Olimpíada para o velocista americano. Pela manhã, ele teria que passar na primeira rodada do salto em distância e dos 200 metros. Como é habitual, provas de pista e campo podem ser agendadas para o mesmo horário. A vantagem da juventude de seus 22 anos era que, quase imediatamente ao se qualificar para as semifinais do salto em distancia, já estava recuperado para vencer as preliminares dos 200.
Quatro horas depois, estava de volta às pistas, onde não somente venceu como estabeleceu o novo recorde mundial, com o tempo de 21.1 segundos, e sem ajuda do tempo. Desacelerando, pegou seu casaco e dirigiu-se prontamente para o local onde eram realizadas as semifinais no salto em distância. Lá encontraria pela primeira vez o alemão Carl Ludwig “Luz” Long.
Este era o atleta mais falado em toda a Europa, recordista europeu e usado como exemplo da raça ariana, o “macho-alfa” nos discursos de Adolf Hitler. Só que nem de longe ameaçaria Owens em condições normais de temperatura e pressão. Mas, inconscientemente e sem dizer uma única palavra, a presença do alemão mexeu com o equilíbrio emocional do americano.
A DISPUTA NO SALTO EM DISTÂNCIA. Para ir a final, a tarefa dos atletas era saltar acima de 7,15 metros, algo que Owens poderia a qualquer momento, mesmo de terno e gravata. Mas, ao contrário de Long, que no primeiro salto já se qualificou para a final e foi descansar, Owens acabaria se complicando na prova.
Para desespero de Larry Snyder na arquibancada, nem Dean Cromwell tampouco Lawson Robertson alertaram Jesse Owens que, fora dos EUA, uma vez que os juízes autorizam a tentativa do atleta, este não pode entrar na caixa de areia, depois do salto, como era ritual do americano. Ao fazer isso, o juiz levantou a bandeira vermelha: o que ele tinha feito já era considerado um salto inválido.
O até então imperturbável Owens agora dava lugar a um atleta inseguro, sem conseguir bloquear os pensamentos que giravam na sua mente e duvidando de si. Esse simulacro de Jesse Owens correu contando os passos e sem explosão, e saltou pela segunda vez. Não falhou, mas com apenas 7,087 metros, não iria para a final. Era uma situação, no mínimo, alarmante: ele não podia se dar ao luxo de errar pela terceira – e última – vez.
SOLIDARIEDADE ALEMÃ. “Olá, eu sou Luz Long. Acho que sei o que há de errado com você”, apresentou-se o alemão ao americano, enquanto este se preparava para o último salto. Conseguiu, com seu inglês precário, sugerir que seu rival riscasse uma linha de alguns centímetros antes da tábua para ajudá-lo a não queimar o salto. Se Carl Long demonstrou um nobre ato de solidariedade e espírito esportivo, Owens demonstrou humildade: foi até a tábua e fez exatamente o que alemão tinha sugerido. E Leni Riefenstahl, a cineasta oficial do governo alemão, capturou com suas câmeras um lindo salto de Owens de 7,62 metros.
Enfim o técnico Larry Snyder respirava aliviado: Jesse Owens estava qualificado para a final. Owens foi ao encontro de Long, apertou a mão e conseguiu, com seu alemão precário, agradecer o saltador alemão. Trinta minutos depois, após cinco saltos, deu o óbvio, com o americano superando Carl Long e garantindo a segunda medalha de ouro nos Jogos.
Ainda restava um último salto, opcional, que o bom senso mandaria ele evitar, poupando-se para a final dos 200 m no dia seguinte. Contudo, Jesse já tinha superado o campeão europeu, mas não a si mesmo. Precisava saltar. E fez com perfeição, alcançando a marca de 8,06 m, mais um recorde olímpico. Carl Long, por sua vez, parecia mais feliz do que o próprio Owens, abraçando o americano logo após o salto e, juntos, acenavam para um público em êxtase. Ficaram tanto tempo comemorando que Hitler, que pretendia encontrar Long e Owens, cansou-se e deixou o estádio – novamente. Os até então rivais tornaram-se grande amigos, resistindo às diferenças ideológicas e raciais. Só não resistiram ao ódio da guerra: Carl Long foi morto em combate em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial.
O medalhista de ouro no salto em distância, ainda saltaria ainda mais uma dezena de vezes naquele estádio dias depois, aceitando o pedido da cineasta alemã. Ela queria capturar de uma melhor forma a beleza anatômica do salto daquele afro-estadunidense para um filme que visava exaltar os valores nazistas. No mínimo, curioso…
TERCEIRA MEDALHA DE OURO. Tão curioso quanto era o fato que a prova dos 200 metros fosse, ao mesmo tempo, a melhor especialidade de Owens, e a que menos recebia atenção da imprensa. Desta forma, no quarto dia de competições, o velocista teria que virar o rosto para trás se quisesse ver os adversários na final, pulverizando mais um recorde mundial, com 20.7, apenas um décimo de segundo mais lento que o recorde dos 200 m em linha reta.
Era a terceira medalha de ouro de Owens, que se dirigiu aos técnicos da sua delegação com um pedido: correr o revezamento 4×100 m. Ele nunca tinha feito essa prova, nem mesmo demonstrado interesse. Os técnicos americanos indeferiram o pedido: era hora de dar aos outros jovens atletas a oportunidade de desfrutarem da “cerimônia de premiação”. Assim, ao final do dia 5 de agosto, Owens já havia terminado sua obra; a partir de então descansaria de todo o trabalho que havia realizado. Era o que todos pensavam, exceto o próprio Owens. Inconformado, passou o resto da semana fazendo lobby de si mesmo aos dirigentes e, sobretudo, para a imprensa.
NEGROS X JUDEUS. Há quem diga que o lobby funcionou. Na véspera da semifinal do revezamento, vazou na imprensa a informação de que Owens tinha sido nomeado para a equipe. Furo de notícia confirmado: Dean Cromwell e Lawson Robertson, treinadores da equipe de atletismo, tinham convocado para uma reunião o time oficial do revezamento, além de Owens e Ralph Metcalfe. Os treinadores afirmaram que tinham recebido informações confidenciais sobre a qualidade dos quartetos alemão e holandês. Por essa razão, precisavam colocar Owens e Metcalfe no lugar de Marty Glickman e Sam Stoller, que tinham ido exclusivamente para disputar essa prova. Seria uma coincidência que eles fossem os únicos judeus da equipe americana de atletismo?
Após a semifinal, Glickman e Stoller confirmaram a suspeita de que os argumentos apresentados na noite anterior eram apenas desculpas esfarrapadas. Não havia nada de extraordinário naqueles dois quartetos: eram os mesmos atletas de sempre, e nenhum excepcional. O fato é que, com tantos acordos e negócios com o governo alemão em jogo, era estrategicamente interessante ganhar mais uma medalha com atletas negros.
Vencer com um grupo que incluía judeus, o estrato social mais perseguido e odiado pelos nazistas, era impor uma segunda humilhação a Hitler – e, assim, perder um parceiro econômico em potencial. Não era necessário que Hitler ou Goebbels pedisse aos dirigentes americanos o corte dos atletas judeus no revezamento.
No dia seguinte, com o tempo 39.8, o novo quarteto conseguiu não apenas o ouro, mas também o recorde mundial. Usando de sua fama e teimosia, Jesse Owens talvez não tenha percebido que tinha colaborado nas práticas antissemitas dos pragmáticos dirigentes americanos.
DESPREZO DO PRESIDENTE. Ao chegar aos EUA, Jesse Owens era já famoso e elogiado tanto pela imprensa branca como pela negra, onde era admirado por refutar, na prática, as afirmações de Hitler sobre a superioridade ariana. Desfilou em carro aberto para mais de um milhão de pessoas em Nova York.
Mas o sorriso que estampava era uma máscara para esconder a mágoa de ter sido suspenso de correr por tempo indefinido, quando se recusou a prosseguir para a cidade de Estocolmo a fim de participar de uma competição criada às pressas pela AAU, querendo capitalizar em cima do velocista. Estava cansado e com saudades de sua filha e, por isso, foi julgado e tornou-se inelegível para as competições patrocinadas pela entidade.
No entanto, o maior ressentimento era com o presidente Franklin Delano Roosevelt, que, ao contrário do que tinha feito com todos os atletas brancos que conquistaram ouro em Berlim, não convidou Jesse Owens para ir à Casa Branca. Hitler, controvérsias à parte, tinha ao menos acenado para ele; Roosevelt, sequer uma carta de congratulações enviou ao tetracampeão olímpico.
Do outro lado do Atlântico, em uma sala de edição, a cineasta Leni Riefenstahl editava o que viria a ser o filme “Olympia”, percebendo, junto com seus funcionários, que o velocista tinha eclipsado o filme que deveria celebrar os valores propagados pelo Terceiro Reich alemão. Anos mais tarde, não hesitou em dizer que Owens não foi apenas um mero medalhista na “Olimpíada de Hitler”, mas sim que ele foi aquela Olimpíada.