Quem trouxe para o Brasil essa tecnologia foi o Marco Rodrigues Guedes, de São Paulo, médico traumatologista e ortopedista especializado em amputados, que é esportista por natureza e também um amputado. "Em 1986, fui para um congresso na Dinamarca e, num guichê de achados e perdidos, conheci os proprietários da FlexFoot, que eu conhecia de ouvir falar", lembra o médico, que voltou para o Brasil já com uma prótese nova no pé, de carbono e bem diferente da sua convencional, de madeira. "A sensação que eu tive ao andar pela primeira vez com a prótese foi a de ter meu pé de volta."
Foi a partir desse conceito de pé de resposta dinâmica que surgiram as próteses específicas para o atletismo. Segundo dr. Guedes, "esse pé acumula energia e depois a libera de forma simétrica, jogando o atleta para a frente e o auxiliando a melhorar sua performance".
No Centro Marian Weiss, uma das clínicas mais completas de reabilitação de amputados, dirigida pelo próprio dr. Guedes, há em torno de 10 atletas usando hoje essa tecnologia de ponta, que é o que de melhor e mais moderno existe no mundo. É claro que eles ainda dependem de recursos próprios ou de patrocínio para conseguir uma prótese dessas, já que os valores são altíssimos. No entanto, o Centro oferece todo suporte necessário, tanto técnico quanto médico, para que os atletas consigam ter o ajuste necessário de acordo com suas necessidades especiais.
Ainda que poucos ainda tenham acesso a essa tecnologia, há um caminho sendo trilhado e que está mostrando cada vez mais esses paraatletas como grandes heróis. "À medida que essas imagens heróicas começaram a se tornar importantes na mídia, surgiu com força o esporte paraolímpico, que começou a se diferenciar nos Jogos de Seul, em 1988. Foi a partir dali que o portador de deficiência começou a ser visto pela mídia como uma fênix e não com um coitado", diz o dr. Guedes, que acompanhou a delegação paraolímpica quatro anos depois, em 1992, em Barcelona, na Espanha.
O primeiro brasileiro a usar esses componentes foi o triatleta Rivaldo Martins, no início dos anos 90, que logo na sua estréia em Ironman bateu o recorde mundial na sua categoria. O mais novo beneficiado é o garoto bi-amputado Alan Fonteles, de 16 anos, que, mal colocou a prótese, e conseguiu o índice nos 200 metros para disputar Paraolimpíada em Pequim. Por trás de cada uma dessas lâminas de corrida, que são feitas basicamente de carbono e resina, existem milhares de histórias de superação. Reunimos aqui três dessas histórias, de pessoas que ainda jovens sofreram um duro golpe na vida, mas que conseguiram dar a volta por cima e encontraram no esporte um valor muito maior para a vida.
Paulo de Almeida. Desde os 13 anos de idade, o pernambucano Paulo de Almeida já fazia provas de 10 mil em pista e chegou a se arriscar em algumas corridas de rua. Aos 19 anos, deixou sua terra-natal, Recife, e desembarcou em São Paulo com dois objetivos em mente: arrumar um emprego e correr a São Silvestre. Como começou a trabalhar numa metalúrgica e não sobrava horário para os treinos, Paulo parou com o atletismo, deixando para trás o sonho de correr no dia 31 de dezembro a famosa prova da capital paulista.
Dez anos depois, e, por ironia do destino, no mesmo 31 de dezembro, Paulo sofreu um acidente de trabalho com uma empilhadeira que esmagou seu pé e mudou completamente sua vida. Três meses depois, foi apresentando ao dr. Marco Guedes, que, entre outras coisas, lhe mostrou uma visão diferenciada do amputado. Com histórias de atletas como Rivaldo Martins, Paulo encontrou o exemplo que precisa para dar a volta por cima, ainda que o lado psicológico precisasse de um tempo para se recuperar desse duro golpe.
"Eu tinha a informação sobre a corrida, mas na época achava que era mais uma utopia", diz Paulo, que, mesmo vivendo num mundo novo, repleto de incertezas, começou a correr com a prótese convencional, longe de todos, num lugar onde pudesse ficar sozinho. "Eu não tinha ainda aceitado a amputação. Eu viajava para o interior de São Paulo, Vargem Paulista, colocava uma calça de agasalho, porque eu não queria que as pessoas me vissem de prótese. Ali eu corria sozinho, numa estradinha." Assim, foi tomando novamente gosto pela corrida e, conversando com o dr. Guedes, soube que existiam próteses importadas, com tecnologia específica para a corrida. Quando soube do valor, viu que era algo que estava fora de seu alcance. Mesmo assim, ainda continuou com a corrida, participou de algumas provas de distâncias menores e , em 1999, resolveu tentar a São Silvestre. Não conseguiu chegar ao final porque o tipo de prótese que utilizava machucava muito.
Como corredor de 100 e 200 metros, chegou a ser convocado para a Paraolimpíada de Sidney em 2000, mas em seguida foi vetado pelo comitê por não ter nenhuma participação em provas internacionais. Ele voltou então às provas de resistência e, no mesmo ano, resolveu tentar a sorte na Maratona de São Paulo. "Machucou muito, mas acabei fazendo na raça, em quase 6 horas, sem treino específico. Tirei a meia e era só sangue. Mas, como fui o primeiro amputado a correr essa prova, a partir daquele momento tudo mudou. Minha participação chamou atenção da mídia. Era novidade." Foi nessa época que apareceu a oportunidade de correr ainda em 2000 a Maratona de Nova York, pela Achilles Track Club, entidade fundada em Nova York em 1983 com o objetivo de incentivar os deficientes a correr provas de longa distância, cujo representante no Brasil é o treinador Mário Mello.
Paulo começou a treinar com o técnico paulista Vanderlei Severiano, o Branca, direcionado para seu principal objetivo. A prótese específica para corrida veio um pouco antes da maratona. "Fui um dos primeiros atletas a usar. A adaptação foi rápida e logo senti que ela ajudava muito na performance, na desenvoltura das passadas", conta o atleta, que conseguiu um feito inédito logo na estréia em Nova York, finalizando a maratona como campeão da categoria em 3h28.
De lá para cá, muitas outras maratonas e títulos vieram. Em 2004, Paulo bateu o recorde pessoal nos 42 km em Nova York, com 3h12. Nesse meio-tempo, outros interesses surgiram, como provas de ultramaratona e de triatlo. Paulo treinou duro para fazer sua primeira Comrades, prova de 89 km na África do Sul. Um problema com a prótese obrigou-o a parar no km 86. "Levo desvantagem em prova muito longa porque tenho que parar para secar as meias, que ficam encharcadas de suor e acabam machucando ainda mais. São 10 ou 15 vezes. Isso mexe muito com o psicológico. Enquanto você está sentado se arrumando, estão todos passando e indo embora", conta Paulo, que levou três anos para tentar novamente o feito. Inscreveu-se pela Achilles em 2004, em que o paraatleta não tem tempo determinado para terminar a prova, e conseguiu chegar ao final, mas fora do tempo-limite para uma medalha. Correu novamente em 2007, dessa vez inscrito da forma convencional, e finalmente conseguiu a medalha que tanto buscava, cruzando a linha de chegada em 10h56, segurando a prótese na mão e pulando numa só perna. "Faço essas provas pelo desafio e principalmente para poder passar uma imagem legal do deficiente. Se eu posso correr 90 km, por que um deficiente não pode trabalhar numa empresa normalmente por 8 horas? Ele pode muito bem desempenhar seu papel. Para me preparar para uma Comrades, por exemplo, chego a fazer treinos de até 8 horas; eu comparo isso a um trabalho, até porque sou um atleta", comenta o pernambucano, que é casado há três anos e, normalmente, segue uma rotina de treino em que a corrida, a natação, o pedal indoor, a musculação e as aulas de alongamento tomam cerca de 3 horas do seu dia.
Fã do triatlo, com algumas participações na distância olímpica e uma em meio Ironman, Paulo deseja muito poder terminar um Ironman. "Quem sabe o do Brasil em 2010?", diz ele, que tem 42 anos, é perfeccionista e gosta de fazer as coisas bem-feitas, treinando muito, para sofrer o mínimo possível na prova. Os próximos objetivos também já estão marcados. Em outubro, ele participa de um meio Ironman na Califórnia. Em novembro, faz sua décima participação em maratonas na cidade de Nova York. Para seu grande sonho, Paulo ainda não marcou data. Movido a desafios, ele quer um dia poder participar de um Ultraman, prova realizada em três dias de competição, que totaliza as distâncias de 10 km de natação, 421 km de ciclismo e 84 km de corrida.
Edson Dantas de Oliveira. Ele tinha 26 anos quando sofreu o acidente que lhe tirou parte da perna direita. Vítima da violência urbana da cidade grande, Dantas, que é natural de Itamaraju, Bahia, e adotou São Paulo para morar, foi puxado pela mochila e jogado no trilho do trem após um arrastão. "Saí do serviço por volta das 16 horas e pela primeira vez resolvi pegar o trem", lembra Dantas, que também teve fratura exposta no braço direito.
Foram seis meses de recuperação até conseguir sua primeira prótese. Foi colocar a perna para Dantas logo já querer dar os primeiros golpes de capoeira e sair para jogar bola, atividades que praticava com freqüência, principalmente na época da adolescência, quando ainda vivia na cidade-natal. "Lembro-me que o técnico que me atendeu ressaltou o quanto era bom eu já ter feito algum esporte e que por isso a reabilitação seria bem mais fácil." A partir desse momento, Dantas deu continuidade à sua vida e voltou a trabalhar como cobrador de ônibus, atividade profissional que mantém até hoje.
Foi somente em 2000, aos 34 anos, que a corrida entrou na sua vida. Ele conheceu um professor de Educação Física que o convidou para treinar no Centro Olímpico. Ali Dantas teve contato com Paulo de Almeida, que o incentivou a fazer provas de rua. "Meus primeiros 10 km foram na Maratona Pão de Açúcar de Revezamento. Aquilo foi uma loucura", diz Dantas, que, a partir dali, passou a levar os treinos adiante, também sob a orientação do professor Branca. Ele se apaixonou de vez pela corrida. Tanto é que um ano depois resolveu estrear nos 42 km, na Maratona dos Bandeirantes. "A corrida era recente para mim, mas resolvi encarar logo a distância da maratona. Parece que eu gostava de sofrer. Nem prótese de corrida eu tinha", lembra ele, que na época corria com uma prótese convencional. "Eu passava os ‘bons de perna' e as pessoas me incentivavam e aplaudiam. Era tudo o que eu queria. Nos últimos quilômetros, o Branca foi me puxar e daí a emoção tomou conta de mim. Eu só chorava. Ao final, meu coto estava todo esfolado. Terminei em 4h01."
A prótese específica para corrida veio em 2005. A partir de então, Dantas se tornou um atleta competitivo, treinando com objetivos e metas principalmente para provas de pista nas distâncias de 5 e 10 mil. Algumas provas de rua e também a participação em maratonas continuam no calendário do paraatleta, que este ano tem duas provas internacionais como objetivo principal: a Maratona de Nova York, em novembro, e o Campeonato Nacional de Amputados, que acontece em dezembro, em San Diego, na Califórnia.
Hoje, aos 42 anos, casado e pai de três filhos, Dantas encontra na família forças e motivação para continuar a correr. O baiano, que tem como ídolos no esporte o ciclista Lance Armstrong e o maratonista e medalhista olímpico Vanderlei Cordeiro de Lima, carrega com ele o sonho de cursar uma faculdade de Educação Física e também o de um dia poder fazer um Ironman. "As pessoas têm que ter fé e perseverança. Tudo é possível. Basta acreditar, ter garra e determinação."
Antonio Rodrigues Maciel. Em 2000, há oito anos, o carioca Antonio Rodrigues Maciel perdeu as duas pernas num acidente de carro na Via Dutra. Depois do traumático acidente, que o deixou 35 dias hospitalizado, os médicos até tentaram um implante, mas o procedimento não teve sucesso. Maciel ainda ficou um tempo andando de joelhos até colocar uma prótese que lhe possibilitasse voltar a andar. Ele foi encaminhado ao dr. Marco Rodrigues Guedes, que o orientou a praticar uma atividade física. "Ele me ensinou a ver a vida com outros olhos, mostrando as várias atividades, inclusive esportivas, que poderiam ser realizadas por amputados", diz Maciel, que, até então, jamais havia tido qualquer contato com uma modalidade esportiva.
Já com uma prótese apropriada para andar e fazer normalmente as coisas do dia-a-dia, em 2001 o bi-amputado deu seus primeiros trotes na Praia do Atalaia Nova, em Aracaju, Sergipe, onde se reabilitava na companhia de dois amigos do trabalho. A primeira corrida veio um ano depois, em 2002, na Maratona BR de Revezamento, realizada no Aterro do Flamengo. Maciel participou de uma equipe de 8 atletas e, como único atleta deficiente do grupo, ficou com a missão de fechar a prova. "Os outros atletas correram em minha direção para cruzar a linha de chegada junto comigo. Cheguei com meus cotos muito doloridos, mas anestesiado pela euforia", diz ele, que na época ainda não tinha as lâminas de fibra de carbono que usa hoje para correr. Desde então,, Maciel, que foi apelidado pelos amigos corredores de "Perna Elétrica", tomou gosto pelas competições.
A estréia em maratona aconteceu seis meses depois, em Nova York, onde tinha em mente finalizar os 42 km por volta de 9 horas. Cruzou a linha de chegada em 6h46 e foi o primeiro brasileiro bi-amputado a completar a prova. Depois disso, outros tipos de desafios começaram a fazer sua cabeça. Em 2004, terminou o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, em 27 dias, demonstrando grande força de vontade e determinação. "Minha maior dificuldade era no dia seguinte, quando meus cotos inchavam e não entravam no encaixe das pernas."
O gosto de Maciel pelo esporte fez com que descobrisse outras modalidades além da corrida. Hoje, aos 43 anos e pai de um filho, Maciel faz musculação, nada, pedala em bike comum e também em handcycle, além de ministrar palestras motivacionais e fazer parte da 3 IN, uma Ong que tem como finalidade a inclusão social de deficientes. "É legal servir de estímulo para outras pessoas numa coisa boa. Eu só ando de bermuda, que é para que as pessoas vejam que existe resultado para quem teve a perna amputada. Graças à tecnologia, consigo andar normalmente e fazer coisas que não tentaria se tivesse minhas pernas normais, como correr 42 km", diz Maciel.
Quando alguém lhe pergunta sobre onde arranjou forças para seguir em frente após o acidente, é enfático em dizer: "Eu nem sabia que essa força existia. Estava dentro de mim e aflorou quando precisei". Em relação ao futuro, o paraatleta carrega com ele um sonho muito especial. Ele quer se especializar na área de fabricação de prótese para poder contribuir com conhecimento técnico e científico e poder passar toda a experiência que aprendeu ao longo destes seis anos para pessoas que estão começando agora a viver uma nova vida, com novos pés.
ADD Achilles de Corrida e Triathlon
Site: www.add.org.br
Comitê Paraolímpico Brasileiro
Site: www.cpb.org.br
e-mail: contato@cpb.org.br
Centro Marian Weiss
Site: www.centromarianweiss.com.br
e-mail: cmw@centromarianweiss.com.br