Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (289)

Fernanda Keller: 25 anos de carreira e correndo pra valer

Contra-Relógio: Você está prestes a completar 45 anos e, no ano em que completa 25 dedicados ao triatlo, conseguiu vencer mais um Ironman. O que significa isso para você?

Fernanda Keller: Significa uma superação muito grande de conseguir manter o foco, manter os treinamentos e também mostrar algo novo, porque faço parte de uma geração que está mudando esse conceito de idade. Sou a única atleta do mundo com 44 anos a vencer um Ironman. E fico muito feliz de servir de incentivo para outras pessoas.

Você é uma atleta que conseguiu resultados expressivos em toda a sua carreira. Ao que você atribui essa regularidade ao longo de tantos anos?

Não há nada de misterioso. O que acontece é que sempre tive um cuidado muito grande, principalmente com a parte médica. São coisas simples, que as pessoas às vezes não dão importância, mas que fazem diferença. Sempre treinei com bastante cautela, sabendo ouvir as respostas do meu corpo, mudando e adequando o treino quando era preciso. Muitas vezes o atleta fica inseguro e com medo. Há muito tempo que deixei de ter isso. No início, é normal ter um pouco de insegurança. Você acha que, se não correr tantos quilômetros numa semana, não vai dar certo. Isso você aprende com o tempo e tem que ter sensibilidade para descobrir. Tive também muita sorte, porque, quando comecei a treinar, estava fazendo faculdade de Educação Física, o que me deu uma boa base. Foi nessa época que tive contato com o fisiologista Paulo Figueiredo, que foi meu professor e é meu grande consultor até hoje.

Você pertence a uma geração de desbravadores de uma modalidade até então que ninguém sabia no que iria dar.  E hoje você é a única que permanece disputando no profissional e em condições. Quando você olha para trás, o que lhe vem à cabeça?

Primeiro de tudo, minha família, que sempre me fez acreditar o tempo inteiro. Como atleta, é importante ter toda a infra-estrutura e apoio para saber lidar não só com o ganhar, mas também com o perder. Isso tudo está muito bem definido na minha cabeça. Fizesse chuva ou sol, minha família sempre esteve do meu lado. O resultado nunca foi o mais importante. A preocupação maior era com a segurança. O importante era eu chegar em casa sã e salva das minhas aventuras, até porque fazer um Ironman no Brasil quando comecei, onde o percurso era completamente aberto ao tráfego, era uma verdadeira aventura.

Quando começou no esporte, tinha alguma idéia de que isso poderia de alguma forma virar no futuro sua profissão?

Teve um momento muito marcante nisso tudo. Eu tinha passado num concurso para ser professora. Como eu viajava muito para competir, meu pai me levou a um lugar para que eu tentasse um horário especial, porque eu era atleta e estava representando o Brasil. Quando cheguei a esse lugar, percebi que não poderia seguir essa profissão 100%. E não era justo deixar várias crianças sem professor porque eu queria ser atleta. Queria poder me dedicar porque eu sabia que tinha como conseguir resultado. Na época, as pessoas ficaram apavoradas. Quando alguém poderia imaginar que nadar, pedalar e correr um dia daria certo como profissão? Por isso mesmo sempre cito minha família. Com o tempo, os patrocinadores começaram a me procurar. Aí comecei a ter apoio, estrutura e fui embora.

Falando um pouco da sua infância e do seu primeiro contato com o esporte em geral. Como aconteceu? E em quais modalidades?

Sempre gostei de tudo. Na escola jogava handebol, fazia ginástica rítmica, dança. Tentei até ginástica olímpica. Mas, quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, meu pai acordava cedo e às vezes me levava para correr com ele. Minha identificação com a corrida aconteceu logo de cara, até porque na década de 80 estava "bombando" no Rio. Tinha muito evento de corrida bom e era moda correr na época. Todo mundo queria ser maratonista. O que se via na época na Maratona do Rio ainda não acontece hoje nas provas brasileiras. Lotava de gente no percurso. E as pessoas não entravam para fazer 5 km, 10 km ou meia-maratona. O sonho era completar os 42 km, mesmo porque era só essa opção. Como na faculdade muita gente participava dessas corridas, entrei mesmo sem treino. Terminei a maratona e realizei meu sonho. Nem ligava para o tempo final, tanto é que nem sei quanto fiz. Eu queria era chegar. Essa foi minha primeira experiência numa prova de longa distância. Logo em seguida descobri o triatlo e a maratona passou a ser a última parte do meu esporte, o Ironman.

O triatlo começou a fazer parte da sua vida quando você cursava Educação Física, no início da década de 80. Como começou a disputar provas internacionais e como chegou ao Havaí pela primeira vez, em 1987?

Em 1986, venci uma competição no Brasil, válida como Campeonato Brasileiro. Nessa época, o triatlo no Rio estava no auge, como a corrida. Foram quase 600 pessoas inscritas nessa prova. Havia muita mídia, queima de fogos e o percurso era lotado. O Rio parava para ver a prova. Meu patrocinador me garantiu que, se eu vencesse, eu estaria com meu passaporte carimbado para o Havaí. Ainda não havia seletiva, como acontece hoje. Venci a prova, mas era muito em cima do Havaí e não dava tempo para fazer a inscrição. Fui então fazer uma prova em Nice, na França, que tinha uma distância um pouco menor do que a do Ironman. Minha estréia no Havaí aconteceu no ano seguinte.

E como foi sua estréia no Havaí? O que passava na sua cabeça
na época?

As pessoas mal começavam a correr e já queriam ir para o Havaí. Eu assistia a vídeos e via os atletas andando nos postos de hidratação da maratona. Meu objetivo era não andar na maratona e terminar. O Carlos Dolabella, amigo e pioneiro do triatlo no Brasil, comentava muito sobre a prova. Uma das coisas que comentou não levei muito a sério na hora. Ele dizia que quem conseguisse terminar abaixo das 11 horas poderia ser considerado muito bom. Quando estava prestes a finalizar a prova, feliz por não ter andado na maratona, olhei para o relógio e vi 10h50 e alguma coisa. Pensei: "Além de eu não andar, fiz abaixo das 11 horas. Eu devo ser boa nisso". Fui para a festa de premiação com alguns amigos. Quando eu já estava indo embora, um deles resolveu dar uma olhada nos resultados e disse que eu subiria no pódio da categoria. Achei que era brincadeira. Mas não era. Logo na minha estréia, fui a 4ª na faixa 18-24 anos. Os 15 melhores eram premiados como profissionais. Os outros acabavam caindo na premiação por categoria. Voltei no ano seguinte, em 1988, e fui a 3ª. A surpresa maior veio em 1989, quando fui a 4ª no geral e consegui meu primeiro pódio como profissional no Havaí.

Depois de tantos pódios no Havaí (14 vezes entre as 10 melhores), se tivesse hoje que eleger uma prova inesquecível, qual seria?

Todas as provas no Havaí são muito importantes, mas nesse momento eu elegeria a última vitória no Ironman Brasil, em Florianópolis. Isso por tudo o que vivi e passei. Foi uma superação física, uma superação mental, principalmente pelo meu pai, que estava hospitalizado. Eu queria muito ganhar para dedicar essa prova a ele. Essa vitória ficou muito marcada. E também pelo fato de poder comemorar os 25 anos de carreira ganhando.

Qual seu volume e rotina de treino hoje e o que mudou de anos atrás para agora?

Dependendo da época, faço por semana de 20 a 25 km de natação, uns 400 km de ciclismo e de 80 a 90 km de corrida. São de 4 a 8 horas por dia, no mínimo 3. Não tem jeito. Eu faço Ironman e o volume faz parte do meu treinamento. O que acontece hoje é que foco mais na qualidade e presto muito atenção na recuperação. Antigamente, eu pedalava quase todo dia. Hoje não faço mais isso. Esse é o maior desafio que tenho como treinamento. Pedalar demanda muito tempo, além de precisar de uma infra-estrutura absurda, como segurança, carro de apoio e outros. Não é simples como a corrida e a natação. Procuro, portanto, fazer no mínino três treinos de qualidade de ciclismo na estrada. Mas posso alterar minha rotina a qualquer momento que sentir necessidade.

Qual é hoje sua relação com a corrida? E como são seus treinos?

Minha relação com a corrida é meio visceral. É como tomar água. Quando eu corro, tudo fica bom. Dá uma sensação de liberdade, de alcançar o inatingível. Não corro todos os dias porque tenho meu treino focado para o triatlo. Mas corro diariamente quando estou de férias. Onde eu moro há muito lugar bom para treinar. E é muito fácil sair e correr por horas. Dá para variar bastante durante a semana, como praia, estrada, floresta ou bosque. A escolha do lugar depende do tipo de treino que preciso fazer e às vezes também de onde eu tiver vontade de correr. Os longos, que levam cerca de 3 horas, costumo fazer na praia ou na Floresta da Tijuca, onde há também um local marcado em que adoro fazer meus treinos de velocidade. Não tem quase ninguém. Aliás, gosto muito de treinar em lugar deserto ou com pouca gente. Hoje em dia, só não corro sozinha porque tenho medo.

Você correu recentemente a maratona no Ironman para 3h15. Se fizermos um retrospecto de seus tempos ao longo dos anos, é um tempo bem dentro da sua média. Qual sua melhor marca na maratona?

Fiz por duas vezes a maratona do Ironman para 3h06. Uma vez em Floripa e outra no Canadá. A corrida na verdade tem que sido o ponto forte da minha prova. E tomara que eu consiga continuar assim. Enquanto eu conseguir manter meu nível de corrida, vou estar sempre bem classificada.

Quando você não está treinando, está fazendo o quê?

Quando não estou treinando estou descansando. Sou muito de ficar com a minha família. Gosto também de visitar o Instituto (Fernanda Keller), que nem sempre eu posso dedicar o tempo que gostaria. De esporte, gosto muito do surfe. Atualmente, estou praticando o stand-up, que é uma modalidade que está bem no início aqui no Brasil, mas lá fora está todo mundo fazendo. É comum ver as pessoas balizando as provas de Ironman em pé nessas pranchonas. Ganhei uma prancha e estou tentando aprender.

Falando de Instituto Fernanda Keller, como está esse projeto?

O Instituto está completando 10 anos. Já temos várias crianças que participaram e que já estão na universidade. É bacana ter esse retorno, ver como o esporte faz bem para essas crianças de 7 a 17 anos. Não só temos aulas de natação, ciclismo e corrida, mas também procuramos passar noções de cidadania. É contagiante ver a alegria que elas chegam aos eventos. Várias foram campeãs estaduais no ano passado. Mas não há cobrança para que se tornem campeãs. Eu estou mais preocupada que elas tenham informações, estudem e que possam usar a ferramenta do esporte para ajudá-las a voar mais alto. Eu quero na verdade que cada uma delas seja campeã mundial na vida.

Quando você olha para o futuro, você se vê fazendo o quê?

Se estiver nadando, pedalando e correndo, estarei feliz. Seja em que nível for. Espero conseguir disputar todas as categorias. Por acaso, algo que gosto muito de fazer tornou-se minha profissão. Essa é com certeza a minha essência. Adoro o que eu faço e sempre vou procurar conciliar minha vida com o esporte.

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