20 de setembro de 2024

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Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (114)

Em busca do pássaro azul

PRIMEIRO DESAFIO

O pensamento foi a primeira grande prova para o garoto Hideaki. Após o 98º lugar em um exame com 102 alunos do primeiro ginasial, resolveu aceitar o desafio do conhecimento. Mais que o 8º lugar no ano seguinte, esta decisão apresentou-lhe uma certeza que o acompanharia pela vida: "concluí que a chave de tudo residia na força de vontade, na persistência".

Aos 20 anos, o filho do barbeiro pobre do interior obteve o diploma de cabeleireiro e seguiu para Tóquio. No início, a cidade cobrou-lhe duramente o que aprendera na infância, mas o sentimento do pequeno Hideaki continuava lá, intacto – e venceu. Aos 29, após muitos anos de trabalho com sacrifício da vida familiar, estava bem sucedido na carreira. Conquistara a Capital e uma renda mensal de 10 mil dólares, mas sentia que perdera algo. E quando o filho, de 4 anos, lhe pediu: "tio, vem brincar comigo de novo, tá!…", soube que teria de enfrentar mais um desafio da vida.

LONGA DISTÂNCIA, LONGA DURAÇÃO

Hideaki Iijima não tem o hábito de correr pelas ruas, mas aceita desafios. Em 2006, caminhando em uma prova livre de 100 km no Japão, completou o percurso em 26 horas. Dois amigos corredores pararam, nos km 75 e 80; e outro, de mais idade, andando em ritmo constante fechou no mesmo tempo que ele. Ou ainda desafiando através do golfe, ao completar 126 buracos em um único dia, percorrendo uma distância de mais de 84 mil passos.

Outro desafio teve início em 1º de setembro de 1996 e continua até hoje. Durante mil dias ele se propôs a varrer, independentemente das condições do tempo, algumas ruas da cidade. Atingida a meta, passou a varrer apenas de segunda a sexta-feira. Em uma ocasião, conversando com garçons de um restaurante sugeriu que eles procurassem não deixar o lixo espalhado pela calçada e mesmo na rua, e ouviu a resposta: "que nada!… tem um gari aí que limpa tudo de madrugada…" Porém, observou que passaram a juntar um pouco a sujeira. Naquelas ruas, a coleta de 4 sacos de lixo de 100 litros foi reduzida, em pouco mais de uma década, para 2 por dia.

SOHO

Mas em 1979 ele ainda não varria ruas. Havia abandonado uma confortável situação profissional e financeira e percorrido, em função da família, meio mundo para recomeçar do zero. Dificuldades mais uma vez apareceram, aumentadas pelas diferenças culturais com o novo país. Mas um dia uma astróloga predisse uma mudança radical em sua vida aos 32 anos de idade. Com base em seus conhecimentos e também nos astros, criou o seu primeiro salão em 1982. O nome é uma referência ao bairro Soho, de Nova York, e também significa, em japonês, "pássaro azul", símbolo da sorte e da felicidade.

Em 25 anos de vida – a se completar em setembro próximo – o Soho Hair International escreveu uma história singular e se tornou um símbolo. Conta atualmente com 950 profissionais, 27 salões, 3 academias e um dojô. Novos salões são abertos em parceria com os melhores cabeleireiros, que começam a carreira como auxiliares dos veteranos. Estabelece-se assim uma relação de mestre e aprendiz, que garante a preservação e continuidade da arte do ofício. As academias são escolas de formação de cabeleireiros; e o dojô, um espaço destinado ao aperfeiçoamento integral dos funcionários. "O Soho não forma cabeleireiros, forma pessoas", sintetiza Iijima.

DISCIPLINA

Em 1990, com o sexto salão aberto e devido ao bloqueio geral de recursos (pelo governo federal), trabalhou até a exaustão e chegou a ficar cego por três dias. Durante a escuridão muitas vezes pensou em desistir de tudo, mas por fim teve a compreensão de que é na adversidade que a luz mais brilha e revela novos caminhos possíveis. Recuperou parcialmente a visão com o tempo, mas deixou de cortar cabelos e, em 1993, abriu a primeira academia. O dojô surgiu, antes de local físico, como manifestação de uma consciência em expansão. 

Em 1995, criou a Zeladoria do Planeta do Brasil, filial do Movimento Mundial que prega o respeito à natureza através da limpeza do mundo e, com esta ação, também da alma. Há doze anos promove uma grande limpeza anual de áreas públicas como o Parque do Ibirapuera, Centro e Avenida Paulista. "Varrer ruas e limpar banheiros é um gesto de humildade e de consciência da nossa responsabilidade com o planeta. Construir um mundo melhor é papel de cada um", sentencia Iijima.

A disciplina é uma forma de exercer a responsabilidade perante a vida. Após varrer as ruas dedica-se a uma hora de ginástica, incluindo corridas em esteira; ao chegar para o trabalho, sobe pela escada os 20 andares até sua sala; durante o dia, participa de palestras e treinamentos nas academias, no dojô e faz visitas a salões; à noite, tem reuniões até as dez horas; e ao chegar em casa, faz mais uma sessão de ginástica.

O suor representa a limpeza que ocorre no corpo que se move. A lida com a vassoura permite, além da limpeza do mundo, a obtenção e manutenção da saúde física, mental e social. Mas a grande transformação acontece quando – em decorrência da ação disciplinada – o sentimento clareia e se abre para o espírito. "A minha vida é uma maratona, e tenho procurado viver cada passo independentemente do ritmo de momento", conclui Iijima, junto ao balcão de uma padaria, diante de um copo de água, um pão com manteiga na chapa e um café puro.

PREPARANDO-SE PARA NOVA YORK

Física, mental, emocional e espiritualmente Iijima está pronto para tornar-se um corredor, ainda que seja por uma única prova. Pretende correr a Maratona de Nova York em seu ano 58. No ano 57, fará os 25 anos do Soho e partirá para uma peregrinação de 1.200 km, por 88 templos, na ilha de Shikoku, no Japão; o Caminho de Santiago ainda não tem data prevista. Também em seu ano 57, irá estudar inglês em Cambridge. E em 15 de setembro de 2010 completará 60 anos; no dia seguinte, partirá para uma caminhada de um ano percorrendo o Japão.

Após aquela distante primeira data predita pela astróloga, Iijima tornou-se profeta de sua própria vida. Acredita que cada um recebe uma missão e tem procurado a sua desde criança, mas sabe que ainda não a encontrou. Cada vez que acreditava estar próximo, descobria que o horizonte se ampliava e novos rumos surgiam. Mas sente que a dedicação de toda uma vida – família, trabalho, relações, conhecimento, dinheiro – faz parte também dessa busca. Afinal – ele se pergunta – quem é, e que missão tem, Hideaki Iijima?

Novas etapas do caminho o aguardam, e para seguir adiante prepara a segunda geração para assumir o comando do Soho. E também prepara a si mesmo para uma nova vida que iniciará aos 60 anos, em companhia do olhar maravilhado do pequeno Hideaki. Mais uma vez, incansáveis, eles partirão em busca de seu sempre mutante pássaro azul.

Mas o tempo sempre faz a sua hora própria. Neste momento, a lua já se inclina para oeste e no leste há o prenúncio de mais uma manhã em São Paulo. A varrição chega ao fim, os carros expulsam os corredores, o barulho cresce e os transeuntes se multiplicam, mas as ruas ainda permanecerão limpas por um tempo: alguns minutos ou, quem sabe, umas poucas horas mais. A maioria nem perceberá, alguns verão com os olhos e apenas uma ou outra pessoa sentirá com a alma a purificação ocorrida. E o sol iluminará um mundo um pouco mais belo, mas só deverá chegar dentro de instantes – como que em uma deferência especial à incessante busca de Hideaki Iijima.

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