20 de setembro de 2024

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Especial admin 3 de fevereiro de 2012 (0) (161)

Eles dão alma às provas

O atleta chega sozinho à prova, troca de roupa e começa o aquecimento. Ao seu lado, casais se aproximam, amigos se reúnem, um grupo de meninas inicia um trote, outros alongam. Todos estes personagens da arena da corrida estão sendo observados atentamente. Lá em cima, no palco, está o locutor da prova, que não perde um detalhe do que acontece na pista. A missão dele é abrangente: vai desde indicar onde ficam os banheiros e o guarda-volume, alertar para o tempo que falta para a largada, dados sobre a prova – como percurso, hidratação e premiação, até narrar o ponto alto da corrida, que é a disputa dos atletas de elite e a chegada. 

E para garantir o sucesso desse trabalho não basta ter voz bonita. Em Brasília, dois locutores se orgulham de manter o alto astral das provas, auxiliar a organização no contato com os corredores e levar emoção à chegada, seja de um atleta de elite ou um anônimo.  Aliás, anônimo é o que ninguém se torna numa corrida de rua narrada por Dudu Domingues ou Adahiuton Belloti, que se tornaram referência para os corredores, e suas funções vão muito além da locução. Fora das provas, são cerimonialistas requisitados na administração pública da capital federal. 

 

INTERAÇÃO COM OS ATLETAS. Foi em 2003 que o brasiliense Belloti recebeu o primeiro convite para narrar uma corrida de rua. Há dez anos trabalhando com apresentação de cerimônias e formaturas, o funcionário do Conselho Federal de Engenharia tinha contato estreito com o esporte. No atletismo desde os 12 anos, foi no Exército que ele quase virou elite. Terceiro colocado nos 10 mil metros das Olimpíadas do Exército em 1985 (atual Jogos Militares) e campeão nacional na prova de revezamento de 5,8 mil metros, Belloti deixou o Exército e se dedicou aos estudos e à profissão de radialista. Amador na corrida (fez uma única maratona, mas um sem número delas no Centro-Oeste), levou sua experiência para as provas e hoje não vive sem narrar uma competição aos domingos. Se não está correndo, está no palco.    

"Era a Corrida Nacional contra as Drogas. O organizador me deu alguns toques, perguntei se podia improvisar em cima do roteiro e recebi o sinal verde. De cara fui contratado para narrar as provas seguintes do Cordf (Corredores de Rua do Distrito Federal) e hoje tenho mais de 100 no currículo", conta Belloti. O diferencial de Belloti está na sua interação com o atleta. "Eu chego e já vou animando a galera. Vou dando instruções e procurando personagens para destacar na prova. Chego a procurar o número do atleta no cadastro da organização para saber quem ele é e interagir", sublinha.

E com essa tática ele coleciona casos curiosos: "Numa prova vi um grupo que fazia torcida para o Fabão na largada. Ao final, todos cruzavam a linha de chegada e nada do Fabão. E eu ía narrando ‘Cadê o Fábio que não chega? Já chegou o pai com a criança no carrinho, a senhora com o cachorrinho e nada do Fabão!'. Já no final da prova, quase em último, ele chegou. Daí entrevistei o Fábio, que contou ter tido uma contusão no tornozelo e se arrastou do meio pro fim da prova". Em outra competição, o corredor Maciel pediu o microfone e sugeriu que a organização fizesse camisas GG. Belloti retrucou: "Mas você é quem tem que entrar na camisa G!". Um ano depois, Maciel o procurou no palco para mostrar a camisa G que vestia. "Narrei o caso dele e pedi uma salva de palmas pro Maciel", relembra.

Belloti gosta de elogiar as corredoras e os casais, mas diz que sempre de forma elegante, para não ferir suscetibilidades. "Não pode ter conotação de cantada", diz. Tanta proximidade com os atletas rende algumas situações inusitadas. "As pessoas perdem chaves, carteira de identidade e o narrador é quem tem que resolver. Muitos acham que a gente é guarda-volumes", diz. Mas um caso teve desfecho infeliz. Uma corredora perdeu a máquina fotográfica com todas as fotos de um casamento registrado na noite anterior. Ela era fotógrafa. "Não conseguiram encontrar a máquina. Ela resolveu dar uma recompensa de R$ 500 para quem entregasse as fotos e era eu quem anunciava", recorda.

 

LOCUTOR E DJ. Ao contrário de Belloti, que tem na narrativa de corridas de rua seu hobby preferido, Dudu Domingues vive da locução. Mineiro de João Monlevade, ele chegou a Brasília acompanhando a esposa, funcionária da Caixa Econômica Federal. Foi em Belo Horizonte que ele iniciou a carreira de radialista, na Rádio Itatiaia, e orgulha-se de ter narrado competições de triatlo e atletismo nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, além de jogos de vôlei, futebol e basquete, principalmente.

Locutor oficial das corridas da Caixa e da Yescom em Brasília, Dudu inaugurou sua carreira de locutor de corridas de rua no Circuito Ecológico de Parques, em 2001. Desde então, são mais de 400 provas em que ele usa a música para criar o seu diferencial. "Acho as músicas das corridas muito feias. Vou para o estúdio e faço a mixagem de músicas para o alongamento, a largada, a chegada. Levo meu pen-drive e sugiro para o organizador", revela.

A melhor lembrança foi quando narrou uma chegada de Hudson de Souza (bicampeão nos 1.500 m nos Jogos Pan-Americanos de 2007) e Valdenor dos Santos (10 vezes campeão do Troféu Brasil de Atletismo e recordista sul-americano por 15 anos dos 15 km). "Os dois disputavam a dianteira. Hudson caiu e foi ajudado por Valdenor. Ao se aproximarem da linha de chegada, comecei a gritar o meu bordão ‘Daqui, daqui só sai campeão!', e ía falar o nome do primeiro colocado quando Hudson reduziu o passo e deu a mão para o Valdenor. Os dois chegaram juntos. Foram dois primeiros lugares", recorda emocionado.

Belloti e Dudu têm um sonho comum: narrar uma São Silvestre. "Mas o Chicão (locutor oficial da São Silvestre) é considerado um dos melhores do Brasil", conforma-se Dudu, que tem planos de se tornar produtor de eventos esportivos com a chegada da Copa do Mundo e da Olimpíada, além de ajudar atletas carentes. Ele já faz algumas locuções de graça, como as provas do Instituto Joaquim Cruz, que treina crianças carentes em vários bairros no entorno de Brasília.

 

SAIA JUSTA E ORGANIZAÇÃO. O locutor tem um papel fundamental na organização da prova. É ele quem passa as informações provenientes do staff, como sinalização, postos de hidratação, percurso, posição dos corredores e tantas outras. A comunicação com o carro-madrinha ou batedores que vão acompanhando os corredores da elite é crucial. Por rádio, Belloti pede prévias da competição e vai narrando e orientando a organização para a chegada. Mas ele se queixa das falhas: "A maior dificuldade é quando o staff no percurso não informa direito ou não providenciam batedores para acompanhar os atletas. Aí a gente não sabe quem está na frente, não tem a informação alguma".

Ambos relatam que enfrentaram a mesma saia justa em corridas: errar o nome de um vencedor. Belloti lembra quando narrou a chegada do atleta errado: "Não enxerguei o número e a organização não informou o nome correto. Depois, o próprio atleta veio me dizer o nome dele".

Dudu relembra emocionado o seu pior momento, quando a mãe de um corredor tomou-lhe o microfone e reclamou que ele havia lido errado o nome do filho, que estava no pódio. Desde então, estuda antes os principais participantes da prova. "Conheço todos os atletas de elite. Mas antes da competição, pesquiso na internet as fotos de cada um deles para não me confundir", conta. Belloti faz coro. "Os organizadores precisam cuidar mais do narrador. Tem que ter sistema de rádio eficiente, passando a posição dos atletas a cada quilômetro", reivindica. Para ele, que só não narrou ainda uma maratona, as piores provas são as de 5 e 10 km. "Os públicos se confundem, você fica perdido. Os atletas vão chegando ao mesmo tempo e você precisa ter muita atenção a qual distância ele pertence", afirma. 

 

COLEÇÃO DE AMIGOS.  Narrar a emoção de um corredor na chegada, quando ele perde, quando quebra e quando sobe ao pódio é realmente um dom. O contato próximo com os participantes de um esporte tão popular, onde todos se misturam – brancos, negros, categoria especial, homens e mulheres -, fascina os dois locutores, que são unânimes em dizer que o maior ganho da profissão é colecionar amigos. "Quem está na corrida, no mundo do atletismo, é pessoa do bem", garante Belloti.

Dudu se orgulha de ser hoje amigo dos grandes nomes do atletismo brasileiro, como Joaquim Cruz, Carmem de Oliveira, Hudson de Souza, Valdenor dos Santos e tantos outros. "Antes eles eram meus ídolos, agora são amigos. Só o esporte faz isso", diz.

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