Quando os seres humanos competem um contra o outro, seja na guerra, nos negócios ou, em especial, nos esportes, os concorrentes procuram alcançar uma vantagem sobre seu oponente. Isso é um fato observado ao longo do tempo e que justifica os desenvolvimentos táticos, técnicos, físicos e psicológicos do atleta, bem como a melhoria da tecnologia de equipamentos, suplementação e modelos de treinamento.
Contudo, infelizmente, a vontade de subir no pódio ou superar recordes, ganhando mais premiações em dinheiro e status perante a sociedade, fez e faz com que muitos extrapolem o desejo da vantagem, e adentrem no submundo das substâncias ilícitas, o doping.
A definição desse termo, segundo a Agência Mundial de Anti-Doping (WADA), é a utilização de drogas e métodos ilícitos no sentido de um atleta auferir vantagens em relação a seu adversário. A palavra em si é nova, data dos anos 30 do século passado, a partir do trabalho do médico Otto Rieser, intitulado Doping e substâncias dopantes.
No entanto, é bom entendermos que há duas dimensões acerca da relação do uso de drogas no esporte. Uma é a utilização de componentes para a melhora da performance e tomada de vantagem, o que pode ser visto desde os gregos da Antiguidade. Só que estas substâncias não eram consideradas ilícitas.
A partir da criação de uma regulação, que listou quais elementos químicos teriam seu uso liberado no esporte, entramos na segunda dimensão, que é do doping como entendemos hoje. Essa diferenciação é importante, para que não cometamos o erro de olhar outras épocas históricas com nossos preceitos atuais.
DESDE SEMPRE. Assim, o uso de drogas para melhorar o desempenho físico tem sido uma característica da competição humana desde o início da história registrada. Julgando com os olhos de hoje, algumas das formas encontradas pelos atletas de aumentar a força ou superar a fadiga poderiam ser classificadas como anabolizantes ou estimulantes.
Tanto atletas olímpicos na Grécia Antiga como gladiadores no Coliseu de Roma tomavam coquetéis à base de vinho e conhaque e comiam cogumelos alucinógenos para melhorar seu desempenho. Cavaleiros medievais usavam alucinógenos de origem vegetal para aumentar a sua força no combate em até doze vezes.
Saindo do perímetro europeu, antigos africanos ocidentais sabiam da eficácia de algumas plantas, como a Catha Edulis, cujos efeitos são bem próximos das anfetaminas atuais, como o aumento da força e o retardo da fadiga. Os índios do Peru têm o hábito milenar de mastigar folha de coca ou beber o chá feito com base nessa erva para aumentar a resistência pulmonar. Até a famosa tribo dos Tarahumara, no norte do México, conhecida por seus supercorredores, tem o velho costume de ingerir um pequeno cacto chamado peyote, que possui efeitos similares à da estricnina, muito usada para a redução da sensação de cansaço.
O final do século 19 e o começo do 20 marcaram o início da medicina moderna e dos laboratórios químicos, que proporcionaram um crescimento significativo no uso de drogas e outras substâncias ergogênicas e na criação de esteroides anabolizantes. Nesse mesmo período, a utilização de estimulantes entre atletas era comum e, além disso, não houve nenhuma tentativa de esconder esse consumo.
NAS MARATONAS. Ultramaratonas no final do século 19 eram famosas na Inglaterra e nos Estados Unidos, com provas que duravam mais de seis dias. Os competidores chegavam a completar mais de 500 milhas (805 km) e, em 1884, o inglês George Haezel foi o primeiro homem a cobrir 600 milhas (966 km) em seis dias. Nessa época, ele foi servido de toda sorte de estimulantes, desde champanhe e vinho, até beladona, estricnina e morfina em gotas.
Durante a maratona olímpica de 1904, em St. Louis, o vencedor da competição, o americano Thomas Hicks, foi "suplementado" com um composto de estricnina e conhaque várias vezes. E, aparentemente, não era o único. O médico que acompanhava Hicks, Dr. Charles Lucas, tinha comentado que as drogas eram, de um ponto de vista médico, muito benéficas para os maratonistas. Na maratona Olímpica de Londres, em 1908, Dorando Pietri também tinha sido suplementado com estricnina, o que não deve ter sido suficiente para evitar seu colapso no final da prova e, por ter sido ajudado a completar por outras pessoas, foi desclassificado.
A GOTA D'ÁGUA. Todo esse uso descontrolado e os casos de morte no ciclismo das Olimpíadas de 1960 levaram a uma pressão sobre o Comitê Olímpico Internacional para regulamentar o uso de drogas. Médicos, algumas décadas antes, já publicavam estudos apontando os perigos dos esteroides.
A morte do inglês Tom Simpson no Tour de France de 1967, a primeira por dopagem televisionada, foi a gota d'água para COI estabelecer programas de controle de doping, o que fizeram no final de 1968. A partir daí começaram a surgir as primeiras listas de substâncias que se fossem encontradas no atleta o desclassificariam: surgia o conceito moderno de "doping".
Até então, essa prática no atletismo não era tão descontrolada como em outros esportes – como no ciclismo, por exemplo – e tinha o objetivo principal de subir no maior degrau do pódio. Por conta das regras amadoras, os corredores de elite não podiam receber premiações em dinheiro de forma oficial, embora isso se desse de forma escondida: dinheiro por participações, presentes e formas inventivas de contornar as regras amadoras.
Mas as corridas começavam a atrair um enorme interesse no mundo ocidental, tornando os corredores de elite da época uma referência para a população que praticava o jogging e o running, portanto, um negócio altamente atrativo estava surgindo. Ligações mais diretas entre esportistas, patrocinadores e promotores de eventos fizeram as somas de dinheiro crescer ao longo dos anos de 1980 e 1990, além do maior interesse da mídia nessas competições.
Assim, a possibilidade de ascensão financeira e de status social se aliou ao desejo de subir ao pódio como justificativa do crescimento de atletas que passavam a se dopar, a partir de meados dos anos 70. Era parte do jogo fazer acordos verbais secretos entre organizadores e corredores que usavam drogas, de que houvesse totais garantias de que o atleta não seria pego no exame de antidoping.
PELO SANGUE. Além dos famosos estimulantes e do uso de esteroides, os dois principais tipos de doping utilizados entre os corredores de elite (até hoje) eram o sanguíneo e o uso da Eritopretina, o famoso EPO. O Comitê Olímpico Internacional só veio a banir a dopagem sanguínea em 1985, num período em que já era utilizada em larga escala. A falta de instrumentos para detectar esse tipo de conduta fez com que o banimento ficasse apenas no papel, ainda mais se tratando de um doping altamente eficaz.
Trata-se, em resumo, de retirar entre 10% a 15% do sangue do atleta e congelá-lo. O sangue é então centrifugado, para retirar o plasma e concentrar as células vermelhas, e estocado congelado durante cerca de um mês. Quando os níveis de sangue retornam à normalidade, o que ficou guardado é reinjetado, aumentando as contagens de hemácia em 10%, com um aumento similar na absorção de oxigênio e consequentemente melhora no desempenho.
Um corredor amador, por exemplo, consegue reduzir seu tempo em até um minuto nos 10 km, treinando com essa ajuda. Embora carente de provas, é bem forte a certeza na comunidade esportiva de que o finlandês Lasse Virén, que venceu os 5.000 e os 10.000 metros tanto na Olimpíada de 1972 quanto na de 1976, usava esse método. Seu compatriota Kaarlo Maanika, que foi prata e bronze nos 10.000 e 5.000 metros das Olimpíadas de Moscou em 1980, admitiu o uso do doping sanguíneo. Não é uma questão de acusação pessoal, mas sim a constatação de um traço na cultura esportiva dos países do Leste Europeu na época: fazia parte do jogo e era parte do sistema de construção de atletas.
Já a eritropoietina, a EPO, tem como efeito o aumento de produção de glóbulos vermelhos nos esportistas, elevando a capacidade de absorção de oxigênio e, assim como no doping pelo sangue, acarreta melhora de tempos em disputas de média e longa distância, a partir de treinos com esse estímulo. É a versão mais utilizada atualmente entre os atletas, de Lance Armstrong a Simone Alves.
A "ESCOLA" ALEMÃ. O Leste Europeu foi, sem dúvida, o campo que usou o favorecimento atlético por componentes proibidos de forma mais estruturada, incrustando em sua cultura esportiva. Mas foi na então Alemanha Oriental, do final dos anos de 1980, que se encontra uma das mais eficientes engenharias do doping organizado pelo estado.
O país era, desde 1960, um colosso desportivo, e isso se dava graças a um minucioso sistema espartano, que escolhia crianças e jovens com pré-disposição e os enviava para escolas esportivas. Depois, os melhores eram selecionados e colocados nos programas avançados de esporte dirigidos pelo estado. Nesse período, o ato de dopar-se pelo sangue, bem como a utilização de EPO e de outros esteroides eram comuns. Havia pesquisas muito precisas por trás dos programas alemães orientais de doping, e os estudos eram liderados por alguns dos principais médicos do país.
E com o fim do mundo soviético, muitos desses técnicos do leste europeu foram procurar emprego em outros lugares e acharam espaço na China, em plena ascensão econômica. As atletas chinesas passaram de uma posição de relativa obscuridade para o domínio do mundo, especialmente na natação, atletismo e levantamento de peso. Quase imediatamente vieram as acusações de doping e as comparações com o sistema da Alemanha Oriental.
Desse sistema é que saíram os míticos corredores alemães, como Renata Stecher, vencedora dos 100m e 200m na Olimpíada de Munique em 1976, e Marita Koch, que no mundial de atletismo de 1985 correu os 400m em 47.60, tempo até hoje longe de ser batido. A desconfiança aos atletas do Leste Europeu não é sem total razão: em um esporte que tem a superação como foco, e, consequentemente, recordes habitualmente sendo batidos, é no mínimo estranho ver algumas marcas com mais de 25 anos longe de ser alcançadas, como as provas femininas dos 100, 200, 400 e 800 metros, 100m com barreiras, o revezamento 4x400m, 4x800m, isso para falar apenas das provas de pistas. O que há em comum? Todas as detentoras dos recordes são do Leste Europeu.
NOS EUA TAMBÉM. Bem, quase todas. A recordista dos 100m (10.49) e dos 200m (21.34) é a americana Florence Griffith Joyner, em 1988. Para se ter uma noção, das cinco marcas mais rápidas nos 100m de todos os tempos, Florence é detentora das três melhores. Contudo, sua abrupta aposentadoria logo depois dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, e sua prematura morte em 1998, levam a suspeita concreta de uso de doping por parte dela.
Mas Florence é apenas a ponta do iceberg: nos anos 1980, os países do Leste Europeu eram massacrados com o rótulo de "dopados", enquanto os americanos jogavam o blefe de que eram "limpos". Se não dá para medir quem usava mais esteroides, o fato é que as organizações estatais dos dois lados tanto incentivavam a dopagem, quanto abafavam resultados positivos entre seus competidores.
Nos mesmos Jogos Olímpicos de Seul de 1988, ocorreu um dos mais famosos casos de doping de que o imaginário popular se lembra. No dia 24 de setembro de 1988, na mais suja das finais olímpicas, o canadense Ben Johnson foi o primeiro homem do mundo a correr em 9.80 os 100m rasos. A glória do "Benfastic" durou apenas 48 horas. Seu exame de urina acusou o esteroide estanozolol no organismo. Seu técnico admitiu que ele se dopava desde 1981. Suspenso por dois anos, foi pego novamente num teste antidoping em 1992 em Montreal, e banido do esporte.
A alcunha de a "mais suja das finais" deve-se ao fato de que em Seul, dos oito que largaram do bloco, cinco tiveram problemas pela utilização de elementos dopantes, incluindo o maior rival de Ben Johnson, Carl Lewis, o que leva muitos analistas a considerarem que o canadense foi usado como "bode expiatório" do COI para o início de uma nova era do controle ao doping.
MAIS RIGOR. O Comitê Olímpico Internacional iniciou medidas mais rigorosas no combate à dopagem, como exames-surpresa mais frequentes e desenvolvimento na tecnologia do antidoping. Tecnologia essa que permitiu flagrar a maratonista russa Lilyia Shobukhova, em abril deste ano, e a suspendê-la por dois anos, tendo todos os resultados desde 2009, incluindo o tricampeonato na Maratona de Chicago em 2009, 2010 e 2011, e o primeiro lugar em Londres (2010), anulados.
E em 1998 foi criada a Agência Mundial de Anti-Doping (WADA). Apesar de o doping estar sempre um passo à frente do antidoping, e haver formas das mais variadas de se esconder, cada vez está se controlando mais o uso de substâncias ilegais. O atletismo, até pouco tempo atrás considerado esporte ao qual o doping tinha fácil acesso, hoje é dos mais combatidos institucionalmente, se compararmos com outros de alto rendimento, como o basquete e o tênis.
O interesse em aumentar artificialmente o desempenho esportivo, em nível profissional, vem em curva descendente, porém, infelizmente, essa erva-daninha encontrou mais outro fértil terreno para se desenvolver: o esporte amador. E vemos, aqui e acolá, inúmeros corredores que, em busca da satisfação de sua vaidade, do orgulho de ter um tempo ou uma colocação irreal para exibir para seus pares, tomam o caminho mais fácil do doping, não sabendo que nem sempre é o mais longínquo para as suas vidas.