Foi com um imenso sorriso e muita generosidade que o corredor Augusto Trindade, 84 anos, recebeu a equipe da Contra-Relógio em sua casa, em São Paulo. "Como diz a música, bem-vindos à minha humilde residência", disse, referindo-se ao sucesso de Michel Teló e já demonstrando seu bom humor. Em um canto da sala, estavam separados alguns recortes de revista com registros de suas participações em corridas, a edição comemorativa de um ano da CR (hoje estamos com 19 anos), um troféu e algumas medalhas. "Lá dentro tem muito mais", anunciou.
Acomodei-me em um pequeno sofá e perguntei onde ele gostaria de sentar para a entrevista. "Olha, não sou de sentar, não. Nem sei qual foi a última vez que sentei nesse sofá. Só sento ali, naquela cadeira, na hora de fazer minhas refeições." E foi assim, de pé, gesticulando o tempo todo, entre risadas e emoções, que o irrequieto seu Augusto abriu o coração e falou de sua vida e de sua paixão pelas corridas.
"Hoje existe muita badalação, muito blá-blá-blá nas corridas. Não sou desse tempo, mas sim da época em que a gente chegava e corria", iniciou, criticando de leve o atual panorama do esporte.
O PRIMEIRO PÓDIO. E pensar que ele começou a correr de "farra". "Foi um acontecimento. Era 1986 e eu estava em Limeira, minha cidade, para passar as festas de final de ano com a família. Meu irmão disse que iria ter uma corrida na praça. Sem pensar, falei que iria correr – eu nunca tinha corrido na vida, não tinha tênis, nem nada."
O filho fez a inscrição e os familiares ficaram na torcida. "Eram quatro ou cinco quilômetros, largando e chegando na praça principal. Quando atingi a metade do percurso, recebi uma fita, que eu nem sabia para que servia, e ouvi uma mocinha da organização dizer: ‘agora é fácil, tio, é só descida'. Mas eu estava em último lugar. Para completar, como a prova era noturna, errei o caminho. Aí vi um caminhão que estava recolhendo quem desistia e peguei carona. Desci pouco antes da linha de chegada. Sem entender nada de corrida naquela época e já querendo encontrar meu irmão, peguei meu número e a fita que tinha recebido na metade do percurso e joguei em cima da mesa apuradora".
Qual não foi a surpresa de seu Augusto ao ter seu nome anunciado como quarto colocado em sua categoria, com direito a pódio. Os organizadores da prova imaginaram que ele percorrera todo o trajeto normalmente e, tendo sua ficha de inscrição em mãos, o chamaram para a premiação. "Eu não queria ir, fiquei envergonhado. Queria dizer que tinha sido um engano, mas meu irmão me empurrou lá para receber a medalha. Fui, mas prometi me preparar para, no próximo ano, fazer tudo certinho."
Dito e feito. De volta a São Paulo, começou a treinar. No ano seguinte, com muita força de vontade e mudança de estilo de vida, seu Augusto já era um corredor. E claro que voltou a Limeira para completar a prova. "Desta vez não tive problemas. Fui o primeiro colocado na categoria e ganhei um belo troféu."
HISTÓRIAS DE BLUMENAU. Naquela época não havia treinadores para amadores nem publicações especializadas em corrida. "Era tudo muito rústico, a gente corria o que dava vontade. Só mais tarde (em outubro de 1993) é que surgiu a revista Contra-Relógio." Seu Augusto, aliás, é um dos nossos assinantes mais antigos.
Em 1988 ele se arriscou pela primeira vez em uma maratona. "Foi em São Paulo, em um domingo muito frio. Mas não gostei do percurso". Foi então que um amigo sugeriu a Maratona de Blumenau, da qual participaria desde 1989 e por 10 edições seguidas.
Em Blumenau, inclusive, viveu episódios marcantes em sua trajetória de maratonista. Um deles aconteceu em 1994, ele então com 66 anos de idade. "Estava no km 10, correndo no ritmo de cinco minutos por quilômetro e me preparando para comer uma rapadura que trazia na mão. Estava concentrado nisso. Ouvi o ronco de uma moto perto de mim e achei que era da organização. Resolvi mudar do lado direito da pista para o esquerdo. Quando fiz isso, a moto, que trazia um cinegrafista, também foi e me atropelou. Caí e cortei a cabeça. Formou uma poça de sangue no chão e o pessoal em volta se apavorou."
Rapidamente ele foi atendido por uma ambulância e conduzido ao hospital, onde levou cinco pontos. "O médico recomendou que eu voltasse para meu alojamento. Mas retruquei: ‘vou para a pista'." Deixado no exato local do acidente, seu Augusto retomou a corrida, completando a maratona em 4h34, garantindo ainda o terceiro lugar em sua categoria. No ano seguinte, na mesma prova, sua 13ª maratona – número de sorte, segundo ele -, marcou seu recorde pessoal na distância: 3h39. "Fiquei em segundo lugar no Ranking Brasileiro de Maratonistas, da CR, na categoria 65 a 69 anos."
A MARATONA DO CORAÇÃO. Sua preferida, porém, é a de Curitiba. "Considero a melhor maratona do Brasil. Fiz 12 vezes!" A capital paranaense, inclusive, foi a escolhida para seu Augusto fazer sua despedida dos 42 km, em 2008. "Poderia estar correndo maratona até hoje. Mas agora teria de competir na categoria ‘70 anos ou mais'. Ou seja, eu, com 84 anos, disputaria com corredores de 70. Essa diferença de idade é grande. Ficaria difícil pegar premiação", protesta. E se tem uma coisa que ele gosta é subir ao pódio! "Perdi a conta de quantos troféus tenho", diz, exibindo prateleiras repletas de prêmios.
Para quem acha que é pouco correr 55 maratonas, seu Augusto pode exibir ainda a conclusão da Super Maratona – 50 km, no Rio Grande, em 1988, com o tempo de 5h07. "Primeiro lugar na categoria", diz, feliz da vida.
AS MAIORES RIQUEZAS. Em sua casinha simples, um quadro cheio de cartões postais de vários locais do mundo também chama a atenção. "Meu filho já esteve em todos esses lugares", explica. A cidade de Veneza, na Itália, não está entre as paisagens enquadradas. Mas seria esse o destino que seu Augusto escolheria para correr uma maratona internacional. "Deve ser diferente e bonito", argumenta.
Trabalhador da indústria de calçados a vida inteira e hoje aposentado, ele deu duro para criar os filhos. "Tenho dois: Nilton, que é um brilhante advogado, e Luiz Valério, engenheiro mecânico e professor de inglês", orgulha-se. Toda a família sempre o apoiou no esporte. "Uma única vez minha mulher reclamou das corridas. Aí falei: ‘então vou parar de correr e ir para o boteco'. Ela mudou de ideia na hora", diverte-se.
Mais do que prêmios, medalhas e troféus, seu Augusto diz que ganhou amigos no esporte. "A corrida aproxima as pessoas. Correndo, conheci gente que dificilmente encontraria. As amizades que fiz são minhas maiores riquezas."
Segredo de tanta disposição e alto astral? "Tem que ter disciplina e hábitos saudáveis. Eu continuo treinando, de segunda a sexta, cerca de uma hora, no Parque do Carmo. Também cuido da alimentação, inclusive cultivo minha própria horta. Mas, acima de tudo, a gente tem que ser feliz. E eu sou um homem feliz."
Felicidade possível de ver em seus olhos, sobretudo quando ele fala das longas distâncias. "Me sinto mais forte depois que corro. Quando você termina uma maratona, parece que está em outro mundo."
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Isso sim é um exemplo de corredor, que se dedica e busca grandes resultados em suas competições. Parabéns pelo esforço é muito emocionante para quem é novo ver tamanha disposição.