Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (119)

A bela que é fera!

 

As conquistas mais recentes da professora de biologia molecular Ana Beatriz Gorini da Veiga, 33 anos, foram o primeiro lugar entre amadoras (com o tempo de 1h28, atrás somente das profissionais) na Meia Maratona Corpore Cidade de São Paulo, em abril, prova da qual participou porque estava de passagem pela cidade na época, em reunião na Universidade de São Paulo; e primeiro lugar na categoria octeto feminino na Volta à Ilha 2010. Mas ela é íntima dos pódios faz tempo, praticamente desde que começou a participar de competições, primeiramente as rústicas (10 km), em 1995, aos 18 anos, em Porto Alegre. "Sempre subia ao pódio quando havia premiação por faixa etária e, em algumas corridas, na geral feminina também. Claro que vencer dá um gostinho especial, mas no início eu pensava apenas em terminar. Saía devagar, lá atrás, e aos poucos ia ultrapassando. Nessa época pouquíssima gente corria na cidade, então era fácil ganhar", minimiza.

Disciplinada, ela foi colecionando conquistas também em maiores distâncias. Ficou em primeiro lugar na categoria em sua primeira maratona, em 1999, em Porto Alegre, com o tempo de 3h26. No ano seguinte, na mesma prova, faturou o segundo lugar, com 3h23. "Em 2002 participei da Maratona de Paris, concluindo em 3h09. Na chegada estranhei ao ser abordada por fotógrafos e jornalistas: havia sido a primeira sul-americana a terminar a prova!", conta. Em 2004, outro grande feito internacional: morando nos Estados Unidos, onde fazia seu doutorado no National Institutes of Health (NIH), meca da ciência na área médica no mundo, Ana correu a Marathon in the Parks, em Maryland, ficando em terceiro lugar geral feminino. Quer mais? "No NIH, todos os anos é realizada a Relay Race, uma corrida de revezamento dentro do campus principal. Em 2004 e 2005 me convidaram para fazer parte de uma equipe e ganhamos! Detalhe: os nomes dos vencedores vão para uma placa que fica em uma parede, ao lado da dos prêmios Nobel", lembra orgulhosa.

 

CAIU A FICHA. Ao retornar ao Brasil, em 2006, a corrida tinha virado febre por aqui. E para participar de provas, considerou que deveria investir em treinos mais disciplinados e orientados. "Comecei a treinar com o professor Tarso Nunes Dellinghausen em outubro de 2008. Desde então faço períodos de três ou quatro meses de treino em pista, com dois meses de férias e só rodagem, para quebrar a rotina e não ficar monótono. Gosto mesmo é de calçar o tênis, sair na rua, olhar para um lado e para outro e decidir para onde ir", revela.

Mais resultados: no ano passado correu os 50 km da Supermaratona do Rio Grande, ficando em sexto lugar no geral feminino (com 4h01), e a Maratona de Porto Alegre, faturando a segunda colocação na categoria (com 3h09). "Caiu a ficha: descobri que tenho perfil para corridas longas. Desisti das provas de 10 km – faço no máximo duas ou três por ano – e quero investir nas distâncias maiores".

Também foi em 2009 que Ana enfrentou o Desafio dos 600K da Nike, corrida de revezamento entre São Paulo e Rio, onde foi um dos destaques da única equipe formada só por mulheres. "Participar da prova foi o lugar mais alto de pódio que eu já subi. Não foi fácil para ninguém, muito menos para a nossa equipe, pois chegávamos ao hotel muito depois das outras e sobrava pouco tempo para descansar", lembra. A chuva, o calor, os percursos insanos, aliados ao estresse do corpo, chegaram a fazer a moça se questionar: "o que é que estou fazendo aqui?" No terceiro dia da competição, até desidratação ela teve, durante o quentíssimo trecho de Santa Cruz, no Rio. Recuperou-se em seguida para continuar na luta. "Sempre que estou em uma corrida difícil, seja treino ou prova, lembro daquele momento e penso: se consegui lá, isso aqui é moleza!" E acredite: no quarto e último dia, na prova dos 10 km finais, ela chegou em quarto lugar. "Foi bom perceber a capacidade física que o ser humano tem".

 

MEDALHAS NA PROFISSÃO. Vinculada à disciplina de biologia molecular na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Ana Beatriz leciona para alunos de graduação dos cursos de medicina, biomedicina, enfermagem e farmácia, e para os alunos de mestrado e doutorado dos programas de pós-graduação (ciências da saúde, patologia e hepatologia). "Como professora universitária, tenho uma carga horária de 40 horas semanais e estou envolvida em atividades de ensino, pesquisa e extensão, dando aulas, orientando alunos, desenvolvendo projetos e organizando eventos diversos – inclusive simpósios, mini-cursos e até mesa-redonda com atletas de elite", conta.

Em 2005, assim que terminou seu doutorado, a bióloga foi agraciada com o Prêmio Jovem Cientista, entregue pessoalmente pelo presidente Lula. "É outro momento que nunca vou esquecer. Meu trabalho concorria com mais de mil, do Brasil e da América Latina. Como nas corridas, eu tinha o intuito de participar e divulgar minha tese – achava que minhas chances eram mínimas, mas o trabalho estava escrito e decidi mandar. Ter sido reconhecida profissionalmente foi muito gratificante", diz.

Com incansável dedicação à ciência, agora ela pensa em fazer um pós-doutorado. "Tem muita coisa que gostaria de pesquisar na área na qual fiz doutorado, mas cheguei à conclusão que a corrida faz mais do que parte da minha vida, é condição sine qua non para que eu tenha boa saúde física e mental, para que eu acorde feliz, para que eu esteja bem-humorada, para que eu tenha disciplina em tudo. Então, penso em desenvolver algum tipo de trabalho que integre a minha área – pesquisa básica em áreas como biologia celular e molecular, bioquímica, genética – com a prática da corrida", revela.

Como dá conta de tanta coisa? "Outro dia ouvi alguém dizendo que, se o dia do Bill Gates tem 24 horas e ele é o Bill Gates, por que eu não poderia fazer minhas coisas em 24 horas? Sempre acordei cedo e, apesar de preferir correr pela manhã, meu treinador está na pista às terças e quintas à noite, então tenho que adaptar meus horários". Para se ter idéia do jeitinho que a bióloga sempre encontra para correr, no ano passado, duas semanas antes da Supermaratona do Rio Grande, ela estava em pleno Deserto do Sahara, no meio do nada, e tinha que realizar um treino de duas horas: "Corri ao redor de um lago que havia no oásis, cercada daquela areia toda. Os nômades não entenderam nada", diverte-se.

Em época de preparação para maratona, a rotina se intensifica, com os treinos mais longos nos domingos e outras corridas mais leves, duas vezes por semana. "Para todo o bônus existe um ônus, então a gente acaba tendo que abrir mão de algumas coisas. Outro dia estava louca para ir surfar, mas tinha que terminar de escrever um projeto e treinar. Claro que acho importante o convívio com minha família e gostaria de estar em um relacionamento estável. Mas, enquanto não aparece meu príncipe encantado, eu trabalho e… corro!", finaliza.

 

E PENSAR QUE TUDO COMEÇOU POR CAUSA DE 20 QUILOS A MAIS…

Desde pequena, Ana Beatriz esteve envolvida com atividade física: balé clássico, natação, vôlei e bodyboard (modalidade que começou a competir aos 10 anos, quando morava e pegava onda nas praias de Santa Catarina). Mas aos 15, estudante de um programa de intercâmbio em Utah, Estados Unidos, acabou engordando 20 quilos!  E foi para exterminá-los que deu seus primeiros passos. "Sem poder praticar bodyboard, e devido ao frio, a alimentação e a distância da família, ganhei esse peso todo. Uma amiga alemã, que nadava e sabia que eu queria emagrecer, nos inscreveu na equipe de atletismo da escola. Fui forçada a correr. No primeiro dia de treino, em março de 1993, tivemos que tirar neve da pista com pás. Lembro que correr era um martírio. Imagine só, os americanos são sempre preparados para o profissionalismo em tudo, então minhas colegas voavam nas pistas e nas trilhas da cidade, enquanto eu me arrastava com 72 quilos, em um ritmo de 6 min/km. Mas aos poucos fui emagrecendo e a atividade passou a ficar menos torturante".

De volta ao Brasil, já era uma apaixonada pelo esporte. "Sempre corria sozinha e passei a ter muita disciplina. Lembro da cara de espanto de algumas pessoas que me viam e deviam se perguntar quem era aquela louca correndo de short curto em pleno inverno e em dias de chuva torrencial".

 

FAMA DE ALGOZ

No terceiro dia do Desafio dos 600K, a equipe Imprensa chegou a "encostar" na equipe das mulheres. E no posto de troca número 66, os jornalistas estiveram à frente das garotas. No trecho seguinte, no entanto, com Harry Thomas Jr (publisher do site Webrun e autor do Blog do Harry) na pista, sob um sol de 38 graus, a posição foi recuperada por ninguém menos do que Ana Beatriz da Veiga. Ele lembra: "Desci a lenha e pela primeira vez fiz algo que jamais faço em competição: olhei para trás. E lá vinha ela a uns 15 metros. Aumentei o ritmo para tentar barrá-la. Corremos cerca de dois quilômetros e eu ainda era o líder. Mas senti que ia quebrar. Ana se aproximou e nesta hora vi que não merecia estar à sua frente. Gesticulei com a mão esquerda, como um cavalheiro que dá passagem para uma dama em um baile de gala, e disse: ‘vai, para mim não dá mais'. Bati palmas e a vi abrindo 5, 10, 15 metros num piscar de olhos". Pelo ocorrido, Harry apelidou a bióloga de Algoz e lhe dedicou vários posts em seu blog.

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