O consumo de tabaco é um hábito fortemente arraigado ao cotidiano de mais de um terço dos habitantes do planeta. Originário das Américas e introduzido na Europa após os grandes descobrimentos luso-espanhóis, foi cultuado durante os séculos 18 e 19 e reprimido de forma mais intensa e sistemática a partir da segunda metade do século 20. A causa da perseguição? Fumar abrevia a vida. Fumar mata.
O tabagismo é reconhecido como a principal causa de morte evitável em todo o mundo. No Brasil, enquanto pesquisas recentes dão conta que 25% da população acima de 18 anos fuma (o número vem caindo ultimamente), as estatísticas mostram que metade desse contingente morrerá por doença relacionada ao hábito adquirido.
Exceto pela parcela da população que vive nos cafundós da civilização, todo fumante tem noção bastante precisa do risco que corre quando resolve dar suas baforadas. Abandonar o vício, ao contrário do que se costuma pensar, não é apenas questão de força de vontade. O hábito de fumar é mantido por fatores físicos, comportamentais, cognitivos, emocionais e até mesmo motivacionais. Romper as amarras é tarefa dura. Mas as corridas podem ajudar. E muito.
MUDANÇA DE HÁBITO. O cigarro possui milhares de substâncias catalogadas como nocivas ao organismo humano. Responsável por criar o vício, a nicotina é apenas uma delas. Absorvida nos pulmões vai para o coração e, via sangue arterial, espalha-se velozmente pelo corpo. Entre seis e dez segundos alcança o cérebro, passando a atuar nos receptores ligados às sensações de prazer. Ao provocar dependência química, transforma-se no maior obstáculo para quem deseja interromper o vício.
Acostumado a funcionar sob estímulo da droga, quando o fornecimento de nicotina é interrompido o cérebro se vê obrigado a adaptar-se à nova realidade. Nesse processo de adaptação o indivíduo sofre os efeitos da chamada crise de abstinência. Dores de cabeça, alterações no sono, no apetite e no humor, náuseas, irritabilidade, tonteira, sudorese fria e depressão poderão fazê-lo desistir rapidamente da idéia. "A boa notícia é que esses sintomas costumam durar apenas algumas semanas e podem ser aliviados com intervenções medicamentosas ou, de forma alternativa, através da prática de exercícios físicos, especialmente os de intensidade moderada ou alta, como as corridas", diz a psicóloga Aline Sardinha.
Formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando na área da Terapia Cognitivo-Comportamental e Neuropsicologia e tendo diversos trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais, Aline, que também é corredora, considera mais tranqüilo e com maiores chances de sucesso os processos de parada que incluam alguma atividade física. Segundo ela, além dos conhecidos efeitos sobre o sistema ósteo-muscular, respiratório e cardiovascular, os exercícios físicos também atuam no sistema nervoso, especialmente no cérebro, produzindo mudança nos níveis de neurotransmissores como a serotonina e a dopamina.
"No caso, correr ajuda o cérebro a restabelecer o nível dos neurotransmissores que foram ‘desorganizados' pela retirada da nicotina, aliviando tanto a intensidade como a duração dos sintomas sentidos durante a crise de abstinência, o que reduz as chances de recaídas nesse período, reconhecidamente a fase mais crítica de todo o processo. A corrida faz isso ao mesmo tempo em que atua nos centros cerebrais responsáveis pela regularização do apetite e do sono, o que acaba trazendo vantagens extras para quem deseja largar o cigarro", esclarece Aline.
ASPECTOS COMPORTAMENTAIS. Embora diversos estudos científicos comprovem os efeitos ansiolíticos da corrida – alguns trabalhos chegam a encontrar níveis mais baixos de ansiedade e maior sensação subjetiva de bem-estar em corredores que participam de grupos de corrida -, não é apenas no campo fisiológico que as corridas podem ajudar a parar de fumar. "Na medida em que a pessoa começa a se relacionar com indivíduos que têm hábitos mais saudáveis, passa automaticamente a freqüentar locais onde sente que o fumo ‘não combina' e tem assim a oportunidade de quebrar com maior facilidade algumas associações comportamentais responsáveis pela manutenção do tabagismo", diz Aline.
Perceber-se ativo e menos limitado também são fatores motivacionais importantes. Como os efeitos da retirada do fumo sobre a condição física aparecem rapidamente, ser capaz de correr irá representar um ganho significativo em relação ao que o indivíduo conseguia fazer anteriormente. Ver-se correndo mais e sentir-se melhor a cada dia representam uma motivação adicional para que a pessoa se mantenha afastada do cigarro. Sem contar que a corrida, ao aumentar o gasto calórico e favorecer o controle adequado de peso, ajuda a evitar uma das maiores causas de recaídas: voltar a fumar para emagrecer o tanto que se julga ter engordado ao parar.
Médico pneumologista e atual diretor do Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, Alberto José de Araújo levanta outro aspecto favorável às corridas: "Por mais dependente que seja, quando alguém corre não fuma. Isso ajuda a pessoa a permanecer durante o tempo da corrida em abstinência, eliminando mais depressa o monóxido de carbono e aumentando simultaneamente os níveis de oxigênio em circulação no organismo. O crescimento progressivo e natural da produção de endorfinas e dopaminas irá restaurar o equilíbrio orgânico, dando forças ao indivíduo para ultrapassar a crise de abstinência."
Para aqueles que não correm e pretendem utilizar os benefícios da corrida como parte do tratamento contra o tabagismo, Dr. Alberto dá uma dica: começar a correr pelo menos duas semanas antes de entrar em abstinência garante maior chance de sucesso à empreitada. "Na véspera do dia marcado para a cessação – sim, é importante estabelecer uma data! -, uma boa corrida irá aumentar a confiança e a auto-estima de quem deseja se livrar do fardo e, então, paulatinamente, readquirir o domínio da própria vida. Tudo isso sem jamais esquecer que o tempo estará passando", diz ele.
QUANDO POUCO JÁ É DEMAIS, E TARDE MELHOR QUE NUNCA. Tempo. Não há palavra que provoque mais um corredor que essa. Se ele faz tanta diferença, o que dizer a favor daqueles que começaram a fumar ontem ou fumam apenas alguns poucos cigarros quando comparados aos que fumam muito ou há bastante tempo? Em termos de monóxido de carbono, outro subproduto nocivo gerado pela queima do cigarro, quase nada, garante Dr. Alberto: "Algumas míseras tragadas de um único cigarro podem manter o nível de CO elevado por até três dias. A ligação do CO com a hemoglobina resulta na formação da carboxi-hemoglobina, composto irreversível que captura boa parte das hemácias e acaba impedindo que elas cumpram seu papel como transportadoras de oxigênio e eliminadoras de gás carbônico. Se o corredor deixar de fumar, os ganhos em seu desempenho serão fantásticos, podendo ao longo do tempo equipara-lo ao de não-fumantes".
Tempo. Ele de novo. Sempre ele. Alguns especialistas admitem a prática esportiva como uma espécie de "fator compensatório". De acordo com essa teoria, a prática esportiva teria o mágico poder de apagar os malefícios que certos vícios causam ao organismo. A verdade verdadeira não é bem essa. "Remover as marcas deixadas pelo fumo depende do quanto já foi lesado o aparelho respiratório e do tempo no qual o indivíduo consegue recuperar as funções de suas glândulas mucosas e do sistema de transporte muco-ciliar. Ao deixar de fumar a recuperação dá a largada, avançando lenta e progressivamente. Porém uma coisa é certa: o tanto que já foi destruído ficará para trás, não se recuperando nunca mais", alerta Dr. Alberto.
Nas corridas e no tabagismo, largar na frente pode não ser decisivo. Mas nunca deixará de ser importante. Em ambas as situações, quando se trata de formar bons e abandonar maus hábitos, não podendo ser cedo, tarde será sempre melhor que ainda mais tarde. Boa largada! Nos dois sentidos.
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preciso parar de fumar e quero ajuda!