POR DR. VALDIR BRAGA
Se você treina corrida há pelo menos quatro anos, já deve ter percebido que estamos vivendo um novo “boom” na corrida de rua. Nunca se viu tanta gente correndo como agora. Isso pode ser facilmente constatado nas ruas e parques Brasil afora. Parte do motivo desse “boom” foi o confinamento imposto pelos meses de isolamento durante a pandemia de Covid-19 nos anos 2020 e 2021. Quando finalmente foram “liberadas” do confinamento, as pessoas buscaram se exercitar, inicialmente em busca de saúde, e a corrida ganhou inúmeros adeptos.
Esse crescimento exponencial dos praticantes de corrida de rua não acontece só no Brasil, mas trata-se de um fenômeno mundial. Prova disso são as Majors, as principais maratonas do mundo: Nova York, Chicago, Boston, Londres, Berlim, Tóquio e a mais nova integrante Sydney. Todas, sem exceção, cresceram muito em número de participantes e concluintes. Para se ter uma ideia, as maratonas de Londres, Berlim, Chicago e Nova York tiveram cerca de 50 mil concluintes ou mais em 2024.
Com a massiva popularização da corrida de rua, todo um ecossistema desenvolveu-se ao redor do esporte. O fato é que a corrida virou um grande business que fatura bilhões de reais anualmente no Brasil. É impressionante a quantidade de novos modelos de tênis de corrida lançados a cada ano. Alguns dos modelos mais novos esgotam em minutos nos sites das principais marcas. Também salta aos olhos que, há alguns anos, contávamos com poucas opções de géis de carboidratos em meio aos suplementos “maromba” e hoje temos uma gama de suplementos para corredores no mercado, com destaque para várias marcas nacionais que que surgiram no há menos de 3 anos. Além disso, há uma variedade gigante de roupas e acessórios desenvolvidos especificamente para corredores de todos os níveis e bolsos.
Destaca-se também a explosão do número de provas de corrida nas grandes cidades e fora delas. Enquanto algumas empresas tradicionais como a Iguana Sports (de corridas de rua) e a Montain Do (de corridas de trilhas) constituem exemplos de excelência na organização de eventos esportivos nas mais variadas distâncias e terrenos, várias empresas têm deixado a desejar e têm sido objeto de muitas críticas pela falta de know-how na organização dos eventos esportivos relacionados à corrida.
Apesar do crescimento pujante nos mais diferentes setores envolvidos com a corrida no Brasil, nada se aproxima do movimento que existe hoje nas redes sociais. Na verdade, é motivo de debate se o “boom” da corrida estimulou o grande número de influenciadores que surgiram para divulgar o esporte ou foram os influenciadores que catalisaram o aumento no número de praticantes, dando origem a esse “boom” que estamos vivendo. Independentemente de quem veio primeiro, estamos passando por um momento onde todo mundo conhece alguém na internet que fala sobre corrida, agregando algum conhecimento útil ou não.
É nesse meio especificamente – a internet – que tem sido motivo de grande preocupação entre profissionais da saúde, treinadores e corredores mais experientes. Quando começamos a correr, nosso primeiro desafio é vencer a distância dos 5 km. Após atingir essa marca, o próximo alvo são os 10 km. Há atletas, profissionais e amadores que passam a vida toda nessas distâncias. Alguns arriscam-se na meia maratona (21.097 m) e, somente após desenvolver um “lastro” na corrida, com vários anos correndo meias maratonas, se sentem preparados para enfrentar os 42.195 m da maratona. Esse é o caminho natural e saudável. Entretanto, muitos estão pulando etapas e isso não é saudável. Definitivamente não!
Cada vez mais, influenciadores mostram “paces rápidos” e “provas perfeitas”. Não estou dizendo que o nosso meio é ruim, digo nosso meio, pois me considero um produtor de conteúdo sobre corrida também. O que preocupa são pessoas que nunca correram 5 km na vida e estão se propondo a correr uma maratona para se desafiar e mostrar para seus fãs/seguidores que é possível, e o pior: que eles também devem correr uma maratona. A maratona então virou um distintivo de bravura, uma roleta russa para brincar com os limites do corpo e, para muitos, uma chancela que, para ser corredor, tem que correr uma maratona. Quanto equívoco e ignorância nesta frase que vou repetir: “para ser corredor, tem que correr uma maratona“.
A maratona é uma distância que exige muito do organismo, tanto do ponto de vista físico quanto mental. Para se ter uma ideia, ao final de uma maratona, o sistema imunológico do atleta está tão deprimido que se assemelha ao de uma paciente com imunodeficiência viral, ou seja, AIDS. Os tendões e ligamentos ficam com uma capacidade muito reduzida de absorver impactos por um bom tempo e a musculatura apresenta microlesões que necessitarão de semanas para serem cicatrizadas. Além disso, após a enxurrada de dopamina à qual o cérebro foi exposto ao completar a prova (a famosa runner’s high), o cérebro passa por um estado de redução de suas atividades neurais que, em alguns casos, pode levar a perda de memória recente, raciocínio lento e até depressão transitória. Felizmente, em poucos dias ou algumas semanas, dependendo da individualidade biológica de cada atleta, esses sintomas desaparecem. Isso se aplica a quem está muito bem preparado e passou por todo o processo de construção de lastro na corrida, de “amadurecimento” muscular e articular, de um sistema cardiovascular e respiratório totalmente adaptado e de um metabolismo muito bem treinado para encarar o desafio, cujo tempo para atingir essa maturidade pode levar vários anos.
Agora imagine o que pode acontecer com um praticante de corrida que não passou pelo processo de “lastro” ou “amadurecimento” citado acima? As consequências podem ser terríveis, variando desde lesões graves nas articulações, fraturas por estresse, lesão muscular, trombose, infarto, acidente vascular cerebral e até, em casos extremos, culminando com a morte do atleta.
Meu papel aqui não é assustar ninguém, mas sim, como formador de opinião e fisiologista por formação, informar sobre os riscos e sugerir que não pulem etapas. Abraçar o processo de construção do lastro de corredor pode ser uma experiência muito bacana e, quando chegar o seu momento de correr uma maratona, que essa prova seja uma experiência incrível que transformará a sua vida e não algo que pode ameaçar sua integridade física. Não vamos romantizar a maratona!
Sobre o autor: Prof. Valdir Braga é Doutor em Fisiologia, apresentador do Canal Corrida & Performance no Youtube, autor dos livros “O Cérebro do Maratonista” e “Os Pilares da Performance Humana”. Como maratonista, concluiu o circuito da Majors e já correu 13 maratonas, sendo 12 sub 3 horas.