Especial admin 4 de outubro de 2010 (1) (350)

Quenianos no Brasil: um sonho de liberdade

Quenianos correrem a São Silvestre – e disputarem o favoritismo com os brasileiros – já se tornou uma tradição. Mas eles também passaram a aparecer em muitas outras provas pelo país, sempre que há boa e até apenas razoável premiação em dinheiro. Quem são, afinal, esses corredores? Como vivem e treinam no Brasil?

Conhecidos como os melhores fundistas do mundo, os quenianos são valorizados em qualquer corrida pelo fato de elevar o nível da competição. O que muita gente não sabe é que eles são nossos fregueses antigos – mais especificadamente "fregueses" do pioneiro Moacir Marconi, o Coquinho, treinador, professor de educação física, administrador esportivo e também atleta com mais de 25 anos de experiência e que ainda figura entre os 20 melhores resultados brasileiros, com a marca de 2h13 na Maratona de Roma, em 1979. "Essa parceria com os esportistas do Quênia começou há mais de 15 anos, quando eu morava e corria na Itália. Fiz amizades, trocávamos informações. Ajudava-os porque falava italiano e eles não. Na época, observava também a importância dos agentes na vida dos atletas. Alguns anos atrás, conversando com Federico Rosa (treinador italiano do queniano campeão Paul Tergat), decidi intensificar o intercâmbio e o trabalho ganhou uma nova dimensão. Montamos a Casa do Quênia, na cidade de Nova Santa Bárbara, no Paraná, para receber e treinar esses atletas", conta Marconi.

O QUÊNIA NO PARANÁ. Segundo Coquinho, a pequena cidade paranaense, de apenas 4 mil habitantes, distante 350 km de Curitiba, é geograficamente parecida com o Quênia. Lá, em uma residência especialmente preparada para os esportistas, há toda a infra-estrutura necessária, inclusive com televisão a cabo e acesso à Internet para facilitar a comunicação e o recebimento de notícias das famílias do outro lado do Atlântico. "Trabalhamos com cerca de 40 atletas – não só quenianos, mas também paraguaios e tanzanianos – em esquema de revezamento. Eles não são exatamente os ‘tops'. Porém têm potencial, podem ser grandes campeões e já estão conseguindo bons resultados. É nisso que apostamos e investimos. Oferecemos treinamento físico, cuidados com a saúde e apoio emocional. São meus filhos", revela o treinador, que garante ser o único a poder representar legalmente os quenianos por aqui, com autorização oficial da Federação de Atletismo do Quênia. A validade desse tipo de intercâmbio é de seis meses. "Mas geralmente eles ficam de dois a três meses e voltam, pois são muito ligados ao seu país".

Os atletas não pagam nada pela estadia no Brasil. Sobre os prêmios que faturam, porém, como é praxe, destinam uma porcentagem ao agente. Ele, aliás, é que se encarrega de estudar e indicar as melhores competições de acordo com o perfil do corredor. E corrida com premiação é o que não falta por aqui. "O calendário brasileiro de provas é muito atrativo", comenta Coquinho.

A FORÇA DO INTERIOR. No Pontal do Paranapanema, próximo a Presidente Prudente e distante 600 km da capital paulista, a cidade de Tarabaí concentra o grupo apelidado de Quênia 2 – oficialmente a equipe tem o nome de Movoeste. E não foi difícil localizarmos os responsáveis pelos treinamentos dos quenianos nesse município de pouco mais de 5 mil habitantes e que tem como a principal atividade econômica o cultivo de cana-de-açúcar. Ao ligarmos na prefeitura, logo nos foram passados os telefones do coordenador Edvaldo Carvalho Filho e do técnico Rildo Alves dos Santos (que trabalhava com Coquinho).

"Sempre estive ligado ao atletismo, organizando provas em minha região, e sou amigo do Rildo há tempos. Temos muitos contatos no esporte, como a Maria Zeferina, o Franck Caldeira, o Vanderlei Cordeiro, entre outros", conta Edvaldo. A oportunidade de trabalhar com corredores estrangeiros surgiu no ano passado, devido a relações estabelecidas anteriormente com os quenianos.

Os africanos desembarcam em Tarabaí trazendo sua própria planilha, que é supervisionada e adaptada pelos profissionais brasileiros. O esquema para a permanência legal no país é igual para todos os grupos. "Possuem visto de até seis meses, mas ficam por volta de três. E sem autorização da Federação de Atletismo do Quênia os atletas não podem competir", diz o coordenador da Movoeste.

Atualmente eles estão com um grupo de quatro quenianos e outros quatro estão chegando neste mês de março, atraídos principalmente pela variedade do calendário esportivo brasileiro. "Temos provas, com boas premiações, todos os finais de semana. E existe queniano para tudo quanto é distância. Nosso grupo, porém, está mais focado em disputas de 10 km".

BONS VENTOS EM CAMPOS DO JORDÃO. O terceiro núcleo de quenianos no Brasil, o Quênia 3, está sediado na cidade de Campos do Jordão (SP), na Serra da Mantiqueira, distante 167 km da capital paulista. A equipe Athletic Sports-Luasa é comandada pelos técnicos Jorge Luís da Silva, o Jorginho (graduado em nível 4 pela IAAF e que trabalhava com o treinador Henrique Viana, de Franck Caldeira) e Luiz Antônio do Santos, ex-maratonista de elite, bicampeão da Maratona de Chicago (1993/94) entre outros títulos.

O relacionamento com os africanos começou quando Luiz Antônio estava treinando em Paipa, na Colômbia. Lá conheceu cinco irmãos quenianos, que, segundo ele, estavam perdidos em termos de treinamento e assessoramento. De volta ao Brasil, convidou o amigo Jorginho para ajudar no trabalho com os estrangeiros. "São atletas jovens, de 18 a 29 anos, com histórico de corrida e grande potencial a ser desenvolvido. Vamos ficar só com eles", revela Jorginho. "O Luiz Antônio e o Jorge Luís me passam muitas coisas, como experiência e trabalhos, que nunca havia feito anteriormente como atleta", confirma Kiprono Mutai, cujos melhores resultados obtidos recentemente foram as vitórias da 8ª Corrida da Paz, em Volta Redonda (RJ), e da 41ª Prova Henoch Reis Filho, na cidade de Aparecida (SP), ambas de 10 km, e o terceiro lugar na Volta da Pampulha 2007.

A permanência legal dos irmãos no Brasil, de acordo com os agentes, se dá por meio de uma carta de autorização, do Ministério do Trabalho e da Embaixada Queniana, além de relatórios constantemente enviados pelos responsáveis pela equipe para a Federação Queniana de Atletismo.

Junto ao patrocinador, Luiz Antônio e Jorginho estão trabalhando para a obtenção de um visto específico para estender o período dos corredores no Brasil, visando a temporada 2008/2009. Atualmente os Mutai estão no Quênia, onde, apesar dos conflitos, já retomaram os treinos. E estão prestes a voltar a nosso país.

Jorge Luís conta que a escolha da cidade de Campos do Jordão se deu por uma questão logística – proximidade principalmente a São Paulo e Rio de Janeiro. Os quenianos que treinam por lá, no entanto, vêem semelhanças com sua região de origem. "A cidade, com muito verde, lembra a minha, no Quênia. E as montanhas com ar puro contribuem para nosso treinamento", avalia Kiprono.

CONVIVÊNCIA GLOBALIZADA. A comunicação dos quenianos com seus treinadores, nos três grupos, é feita em inglês. Na equipe Athletic Sports-Luasa, no entanto, uma vez por semana, eles têm aulas de português. "Falamos dos costumes e da história de nosso país. Em contrapartida eles nos ensinam também o dialeto suahili", diz Jorginho. "Contamos o que acontece no Brasil e alguns demonstram interesse em saber mais, porém não há um ensino formal. O aprendizado depende de cada um", diz Coquinho.

Independente das oportunidades na corrida, os atletas do Quênia adoram o Brasil, pela receptividade das pessoas, pelo clima e especialmente pela paz que aqui encontram. Mas não pensam em se fixar de vez. "Eles são muito devotados ao Quênia e às famílias que ficaram por lá", analisa Jorge Luís.

Coquinho, Jorginho e Luiz Antônio, Rildo e Edvaldo têm estilos próprios de trabalho e experiências diversas com essa etnia de corredores. Em comum todos têm a admiração pela força e determinação queniana. "Nasceram para correr. O biotipo e a geografia em que treinam, essa somatória entre a genética e o ambiente, levam ao talento", acredita Edvaldo Carvalho Filho. Para Jorginho, além do poderio muscular, outros fatores são determinantes na diferenciação dos quenianos: "Eles têm muita fé e uma capacidade mental incrível, capaz de suportar a dor ao extremo – seja ela física ou emocional. Digo que os atletas do Quênia são fortes principalmente de alma. Você olha nos olhos do atleta e vê que aquela prova será dele. Eu e o Luiz temos muita experiência no atletismo, mas aprendemos um pouco mais a cada dia com os quenianos. Eles nos passam uma lição de vida: são humanos, humildes e muito gratos por tudo o que conquistam."

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One Comment on “Quenianos no Brasil: um sonho de liberdade

  1. Por favor, sou queniano e gostariua de viajar para Coquinho conhecer meu collegas.

    Muito obrigado,

    Kennith, rio de janeiro(21)(81444599)

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