Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (121)

A magia do Repouso

Anos atrás, a revista norte-americana Runner's World publicou uma matéria focalizando o assunto, correlacionando a necessidade de repouso à idade do corredor. Não se pode negar que, de um modo geral, um indivíduo de 25 anos recupera-se mais rapidamente de uma carga maior de trabalho (treino forte ou competição) do que um indivíduo de 50 anos, que tenha feito um esforço similar. Entretanto, o assunto não deve ser tratado de uma maneira tão simples, tão matemática, pois a individualidade do corredor pesa consideravelmente, comprometendo, definitivamente, qualquer regra rígida que estabeleça que um corredor de "x" anos deve descansar "y" dias.

No contexto desse polêmico assunto, um ponto é indiscutível: independentemente do nível, do sexo e da idade do corredor, a recuperação, o repouso e o sono são fatores importantíssimos para os que querem progredir. O conceituado treinador e escritor Carlos Gomes Ventura, o "Carlão", costumava afirmar que o atleta obtém mais ganhos quando está repousando do que quando está treinando. Logicamente, trata-se de força de expressão, mas tal afirmativa diz bem da importância que ele dá ao repouso na preparação do atleta.

Experiência pessoal. Correndo competitivamente há mais de 30 anos, na condição de corredor veterano, não me impunha uma regra fixa para repouso. Como, no início, tinha disposição para correr todos os dias, correr passou a fazer parte de minha rotina diária, de tal modo que costumava ficar sem um dia de folga, por períodos de vários meses. O único cuidado que tinha era alternar dias de trabalhos fortes (em volume ou em qualidade), com dias de trabalhos leves (trotes regenerativos). Mais tarde, ao sentir melhor o meu corpo e pesquisar mais cuidadosamente o assunto, passei a me impor uma disciplina pessoal que me assegurava um mínimo de três folgas por mês, o que vale dizer um dia sem corrida a cada dez dias. Quando o corpo apresentava qualquer sinal de desgaste, reduzia o intervalo para uma semana, o que corresponde a uma carga regular de seis dias por semana, condição que mantenho até os dias atuais.

É compreensível que corredores competitivos (não me refiro a atletas de elite) tenham uma tendência natural de treinar muito, na busca da melhoria contínua de suas marcas pessoais, além de procurar sempre vencer seus competidores diretos. Até aí, tudo bem. Mas será que, ao treinar maiores volumes em ritmos cada vez mais fortes, eles não estarão se arriscando a contrair lesões, ou ainda saturar-se física e/ou psicologicamente com a prática da corrida? Encontrar a dose certa, compatível com o estilo de vida de cada um, dividindo bem o tempo disponível para treinar, descansar, além de horas reservadas para sua vida profissional, pessoal e familiar, tudo isso compõe um tema para muita reflexão e discussão que, certamente, extrapolará rígidas bases científicas ou ensaios laboratoriais.

Repito que cada caso é um caso. Sinto que, se treinar muito pouco, terei dificuldade de construir uma base sólida que me dê confiança de bons resultados. Se, por um lado, isto é verdade, por outro tenho que reconhecer que obtive algumas marcas pessoais expressivas em provas para as quais, por diferentes motivos, não tive condições de treinar regularmente. Em outras palavras, entrei na prova com baixo treinamento e me dei bem. Prevaleceu, portanto, uma carga de trabalho menor e um repouso mais acentuado.

Marca isolada não vale como regra. É comum analisar-se apressadamente um desempenho desportivo, com base num fato isolado. Corre-se bem, por exemplo, a Maratona de Porto Alegre e conclui-se que o bom resultado foi decorrente de se ter seguido certo plano de treino, de ter usado este ou aquele modelo de tênis, ou ainda, por ter utilizado uma estratégia de competição infalível. A experiência demonstra, no entanto, que um bom ou um mal resultado não é explicado por um único ponto, mas por uma série de fatores intervenientes.

Tomei, propositadamente, como exemplo a maratona gaúcha, pois tive oportunidade de acompanhar o desempenho de um corredor amador que fez essa prova, em maio de 96, quatro semanas depois de ter corrido, com discreto resultado, a Maratona do Rio. Sua explicação foi um tanto simplista: "Treinei pouco para Porto Alegre, muito menos do que treinara para a Maratona do Rio e me saí muito melhor". Na ocasião, comentei com ele que muitos outros fatores deveriam ter contribuído para a melhoria de seu desempenho. Primeiro, a Maratona do Rio foi, na verdade, um excelente treino para a de Porto Alegre, o que vale dizer que seu corpo já estava recuperado para a segunda prova. Além disso, as condições ambientais estiveram excelentes na capital gaúcha. Por fim, como correra no Rio quatro semanas antes, ele entrou em Porto Alegre com maior dose de confiança e menos compromisso, fatores que, psicologicamente, conduziram-no a um melhor resultado.

Particularmente, entre atletas de elite, é comum ter-se notícias de que tal corredor, após algum tempo fora de atividade para se curar de uma lesão (ou, no caso de uma corredora, para dar à luz a uma criança), voltou às pistas ou às ruas com melhoria de suas marcas pessoais. A explicação é simples: após várias semanas ou meses sem correr, ele (ou ela) voltou às provas com muita garra, muita força, com músculos e articulações renovados, sem apresentar o desgaste natural que acontece nos treinos pré-competições. Portanto, não há como negar o fato de que mesmo os corredores experientes sofrem a tensão emocional que precede as grandes competições, o que muitas vezes lhes confere fracos desempenhos. Assim, um repouso forçado por algum tempo pode contribuir para uma recuperação física e emocional mais completa, trazendo, como conseqüência, uma melhoria de marcas. Trata-se, sem a menor dúvida, da magia do repouso.

O que dizem os especialistas. O experiente e saudoso médico, corredor e escritor norte-americano George Sheehan, em seu excelente livro Dr. Sheehan on Running, dedica um longo capítulo ao tema "estresse e recuperação", comentando que, de um modo geral, todo corredor competitivo apresenta uma tendência natural ao supertreino. Deve, portanto, ser policiado pelo seu treinador e autopoliciar-se para não se cansar demasiadamente em treinos e/ou em competições sucessivas. Não é possível qualquer mortal se manter num topo de condicionamento durante toda a temporada. A fórmula correta é, portanto, uma prévia escolha das mais importantes competições que pretende fazer e elaborar um macrociclo de treinamento criterioso, respeitando dias ou mesmo períodos de atividades menos intensas ou sem atividades de corrida.

Outro ponto defendido por Sheehan é que todo corredor deve respeitar certo intervalo entre as competições. Ele cita vários exemplos em que corredores de elite disputaram provas sucessivas e até obtiveram bons resultados, mas isto lhes custou lesões ou ainda queda drástica de rendimento nos meses subseqüentes.

Outro importante atleta, escritor e treinador norte-americano, Joe Henderson, no seu livro Running Your Best Race, dedica também um capítulo ao tema "provas e descanso", citando exemplos de vários outros experientes treinadores que aconselham seus atletas a não exagerarem para que possam alcançar bons resultados. Dentre outros, cita Jeff Galloway e Tom Osler, também americanos. Este último é, sem dúvida, outro gênio no conhecimento e na divulgação das técnicas de corrida de longa distância e autor do livro Serious Runners Handbook.

Um dos conselhos de Osler para a melhoria do desempenho nos treinos é intercalar corridas com pequenos trechos de caminhadas. Parece incrível, mas é isto mesmo: correr 25 e caminhar cinco minutos, por exemplo, é uma boa regra para fazer um bom treino longo, podendo-se ampliar, dessa forma, a extensão do treino. Também em trabalhos intervalados, Osler aconselha caminhar entre os tiros, em lugar do clássico trote. Ele defende ainda o princípio de que, caminhando, o corredor recupera-se melhor quanto aos batimentos cardíacos e tem mais garra para correr forte o tiro seguinte. Conclui, afirmando ser um equívoco, entre corredores de elite ou amadores, julgarem que a caminhada no treino é um retrocesso, que pode comprometer o resultado nas competições.

Repouso sistemático para uma longa carreira. Pelo que foi exposto, acredito que uma verdade absoluta se impõe em torno do assunto: repousar é preciso para uma carreira desportiva duradoura e plena de bons resultados. Entretanto, a dosagem exata de descanso continuará sendo uma incógnita e varia de corredor para corredor. Na dúvida, é melhor errar para menos do que para mais na dosagem do treinamento; primeiro, porque, se treinarmos menos, correremos a prova menos desgastados, o que é um fator decisivo para um bom resultado; em segundo lugar, um treinamento não exageradamente insuficiente pode ser compensado por uma força mental muito intensa, o que coloca o corredor, no dia da prova, em igualdade de condições com outros corredores bem mais treinados. O supertreino é o contrário: o corredor compete desgastado ou saturado do treinamento, com grandes riscos de se lesionar antes ou durante a competição.

Concluindo, sugiro que cada um procure sentir seu corpo, não se julgando um superatleta e avalie criteriosamente os períodos de treino e de recuperação que correspondam à melhor resposta do seu organismo e se enquadrem melhor no seu estilo de vida. Lembrem-se ainda de que a idade do corredor é um fator importante, mas não é o único, pelo que desaconselho seguir qualquer teoria que correlacione unicamente a folga com a idade do corredor. Fatores genéticos, além de peso, altura, número de provas e nível de competitividade que cada corredor apresenta nos treinos e em provas, além do estilo de vida que cada um leva, tudo isso deve ser considerado para a desejada otimização entre a corrida e o descanso.

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