Especial admin 10 de março de 2015 (0) (115)

A TRANSFORMAÇÃO DO CORREDOR

Mudaram as roupas, os tênis, as formas de treinar, as provas, as tecnologias… Com o próprio corredor não seria diferente. De forma geral, o praticante de corrida de 1993 (ou antes) é diferente do de 2013. "Há 20 anos, quando você terminava uma prova, imediatamente a pergunta era: ‘que tempo você fez?' Correr para se divertir era praticamente um pecado. Hoje a maior parte corre para se socializar, para combater o estresse e em busca de saúde", constata Nelson Evêncio, presidente da Associação de Treinadores de Corrida (ATC), de São Paulo.
"Eram menos corredores e o nível técnico era bem melhor. Agora vemos um aumento significativo de participantes, mas com um nível técnico mais baixo. Antes se corria por um bom desempenho e hoje mais pelo social e pela qualidade de vida", concorda Paulo Silva, diretor técnico de importantes provas, como a Maratona de Porto Alegre.
Claudio Castilho, técnico de atletismo do Esporte Clube Pinheiros e diretor da Saúde & Performance Assessoria Esportiva, vai um pouco mais longe em sua análise. "Se pensarmos nos anos de 1980, os amadores eram muito mais comprometidos com performance e resultado e a proximidade desses corredores com a elite era maior. Na década de 90 surgiu um público novo, que começou a encontrar prazer na corrida, mas ainda tinha o desejo de fazer 10 km rápido e um tempo rápido em maratona – um bom resultado conferia status. De 2000 para cá, as pessoas começaram a procurar a corrida por questão de saúde e por influência de diversas correntes, como amigos e mídia."

A QUEDA NO DESEMPENHO – Em sua tese de doutorado "Corrida de rua: um fenômeno sociocultural contemporâneo", apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 2009, a treinadora Martha Dallari, vice-presidente da ATC, já reunia dados que mostravam as mudanças ao longo dos anos. "Merece destaque o fato que as várias reduções no melhor tempo de maratona nos últimos anos têm sido acompanhadas por um aumento no número de corredores, com resultados pouco expressivos em relação às melhores marcas. Os dados da Maratona de Berlim apontam esta tendência", escreveu, apresentando o tempo de conclusão da prova em 1987, 1999 e 2007.

Em seu trabalho, Martha observou que também nas provas mais curtas a tendência era a presença de um número crescente de corredores, com resultados cada vez mais distantes daqueles dos primeiros colocados. Como exemplo, usou os 10 km da tradicional prova São Paulo Classic, realizada pela Corpore. "Em 2003, 68% dos participantes concluíram o percurso em menos de 1 hora. Na edição de 2007, este percentual reduziu-se para 56%."

Provas clássicas em São Paulo, como a Volta da Penha e a Volta da USP, também revelam estatisticamente a transformação do público. "Há duas décadas, para se classificar entre os 10% primeiros dessas provas, você tinha de correr 10 km abaixo de 35 minutos. Hoje, se o amador fizer um tempo parecido com esse, ele é considerado ‘rei'. Em meu grupo, 15 anos atrás alguns amadores faziam a distância para 34 ou 35 minutos e se enquadravam nessa fina fatia de concluintes. O tempo passou, eles ‘envelheceram', e hoje correm para 37 ou 38 minutos. Porém continuam entre os 10%", explica Castilho.

OS NOVOS CORREDORES – "Hoje, quando as pessoas optam pela corrida, as motivações são as mais variadas: saúde, bem-estar, fazer amigos… A atividade física virou uma plataforma de relacionamento", diz Charles Groisman, diretor de marca e conteúdo da Corpore.
Evêncio, que trabalha com corrida há 19 anos, confessa que teve que se adaptar às novas características dos corredores. "Os primeiros alunos queriam correr mais rápido e mais longe. Os de agora querem se divertir e até correr mais longe e mais rápido – mas este mais longe e mais rápido já não tem tanta importância. Hoje, além de treinadores, somos um pouco também conselheiros e amigos. Aliviamos mais nas cargas e nas cobranças por resultado. Queremos que a pessoa corra sempre e feliz."
Ter mais pessoas no esporte – seja por saúde, socialização ou qualquer outro motivo – não é um fato ruim, claro. Afinal, todo esse movimento é um passo no sentido de combater o sedentarismo e doenças relacionadas a ele – estudos mostram que metade dos brasileiros não pratica atividade física.
O problema seria o aumento de corredores "descompromissados" que, até entender que corrida e saúde devem andar juntas, pulam etapas e ficam expostos a lesões e a outras encrencas. "Até absorver esse conceito, as pessoas acabam tendo complicações", acredita Castilho. E isso pode levar ao afastamento definitivo do esporte.
"Por um lado é bom correr sem pensar em tempo, em competição. Afinal, a própria vida está cada dia mais competitiva. Correr não deve ser mais um problema e, sim, um momento de tranquilidade que auxilia no combate a todo o estresse. Mas há também a parte ruim de haver muita gente treinando sem comprometimento e, principalmente, sem planejamento – e se machucando. Por não existir tanto compromisso, muita gente também falta aos treinos, não segue orientações…", argumenta Evêncio.

MAIOR PODER AQUISITIVO – Uma pessoa não tem necessidade de despender muito dinheiro em equipamentos para a prática da corrida. "Em sua maior parte, os treinos se desenvolvem em áreas públicas e ruas. A vestimenta necessária não se alterou ao longo do tempo: um short, uma camiseta e um par de tênis bastam. Isto significa que o nível econômico não é impedimento à prática de corrida", escreveu Martha Dallari em sua tese.
Mas se há 20 anos correr era uma atividade descomplicada e o corredor era uma figura simples – que não se importava com a marca do tênis e muito menos com o kit da prova -, hoje a coisa é diferente. A corrida virou um mercado promissor, com ofertas de produtos variados, que fazem brilhar os olhos das classes média e alta. "Sim, de alguns anos para cá tivemos grande adesão das classes média e alta. Porém, acredito que a cada dia as pessoas se conscientizam mais dos muitos benefícios físicos, mentais e principalmente sociais do esporte. As revistas, os sites, as emissoras de rádio e televisão, os organizadores de provas, as marcas esportivas e os treinadores têm grande participação nesta massificação. É evidente que muita gente corre por moda, mas os números crescentes e constantes testificam que a corrida é uma tendência. Toda moda tem sua ascensão, sua estabilização e sua queda. No caso da corrida, a crescente vem de longos anos e ainda atingirá números bem maiores", analisa Evêncio.
O treinador do Clube Pinheiros também concorda que o perfil mudou e que atualmente há mais pessoas com grande poder aquisitivo – o que pode ser notado pelo consumo de produtos como tênis, roupas e viagens internacionais. "Mas o que não mudou foi a admiração por gente que realmente corre. Dentro do meu grupo tenho alguns bolsistas, pessoas que não têm condições de pagar uma assessoria. Eles não são elite, mas são dedicados. E, por isso, são paparicados por todos ali."

 

AS MULHERES PEDEM PASSAGEM
A participação feminina nas corridas é fenômeno mais recente. "No início do século 20, acreditava-se que mulheres não eram fisicamente adaptadas para a excitação e o esforço proporcionados pelas competições", diz Martha Dallari. Em se tratando de longas distâncias, apenas em 1972 a Amateur Athletics Union (AAU), órgão regulamentador do atletismo nos Estados Unidos, autorizou a participação feminina em maratonas. No mesmo ano mulheres foram admitidas oficialmente na Maratona de Boston. Nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, foi disputada pela primeira vez a maratona feminina.
Hoje as mulheres estão em todas as corridas – de 5 km a ultramaratonas. "Até pouco tempo, a participação feminina ficava em torno de 10% em praticamente todas as distâncias. Agora este número aumenta a cada prova, o que faz a corrida ficar mais bonita e mais delicada", diz Paulo Silva, de Porto Alegre.
Para Claudio Castilho, o grupo feminino cresceu em participação e melhorou a condição técnica. "A mulher é mais focada, mais dedicada. Quando ela abraça a causa, tem rendimento muito melhor do que o homem. Em um acompanhamento interno da minha assessoria, pude verificar que antes de 2010 o percentual masculino era maior: 65% dos alunos eram homens. Hoje é meio a meio, os números estão equilibrados. Mas em termos de resultados, elas evoluíram muito, estão dando banho nos homens", conta.
Com esse público crescente, algumas provas têm sido criadas exclusivamente para elas, com cuidados especiais e mimos. Mas ainda há muito que se conquistar. "A estrutura das provas em geral ainda deixa muito a desejar. O banheiro químico, por exemplo, é qualquer banheiro", critica Castilho.
Para Nelson Evêncio é fantástico que cada vez mais mulheres estejam correndo e descobrindo os benefícios da corrida. "Elas impulsionam o mercado: são agregadoras e grandes formadoras de opinião". Citando números, ele diz que em São Paulo, de 2011 para 2012, a participação feminina em provas cresceu 23%, contra 12% da masculina. "Foram 171 mil concluintes em provas. Esta tendência tem se confirmado a cada ano. Em breve, poderemos ter maioria de mulheres nas provas, como acontece nos Estados Unidos. Lá, elas dominam o cenário desde 2005 – e no ano passado atingiram 60% do total de concluintes."
Marcas, organizadores, mídia e treinadores estão atentos a essa fatia de mercado, entendendo que as mulheres gostam e merecem ser bem tratadas. Uma prova disso é que antigamente as camisetas de prova eram iguais para ambos os sexos. De algum tempo para cá, sabiamente começaram a oferecer cores, tamanhos e cortes diferenciados para elas. "Os organizadores de provas que não oferecem banheiros mais cuidados e em área separada, por exemplo, estão perdendo. As mulheres são bem mais detalhistas e exigentes do que os homens", finaliza Evêncio.

 

A EVOLUÇÃO DOS BANHEIROS
Quando a Contra-Relógio surgiu, em outubro de 1993, pouquíssimas provas ofereciam banheiros na largada, a não ser que contassem com alguma estrutura já existente (clubes, banheiros públicos etc.). As cenas eram degradantes na área de concentração e não por acaso praticamente não corriam mulheres.
Então a revista passou a criticar rigorosamente essa falha dos eventos e os organizadores, aos poucos, foram disponibilizando banheiros químicos, que minimizaram os inconvenientes, mas, como se sabe, são ainda bastante precários.
Em uma terceira fase, chegou-se, há poucos anos, a uma solução bem mais civilizada, que é a realização de corridas ao lado de shoppings e similares, usando-se, então, os banheiros dessas instalações, o que levou as provas a um novo patamar e atraiu igualmente um novo público, de maior renda e com participação expressiva das mulheres.
A CR fica feliz por ter provocado e ajudado nessa evolução. (Tomaz Lourenço)

 

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