Especial admin 3 de setembro de 2012 (0) (258)

A corrida no sangue, de pais para filhos

Rio de Janeiro, um verão qualquer no início dos anos 1970. Por volta das 4h30 da manhã, quando o sol começa a iluminar as areias da Praia do Leme, a primeira sombra que projeta é de um homem moreno e esguio. Corre, solitário, na areia, à beira-mar. Fotógrafo por profissão e atleta amador compulsivo, esse defensor contumaz do ‘mens sana in corpore sano' não demoraria a levar suas passadas para o calçadão da orla carioca e botar o Rio de Janeiro, literalmente, para correr. Esse legado já chega à quarta geração de sua linhagem de sangue.

Essas gerações vêm sendo formadas cada vez mais cedo, sem a necessidade de ascendência ou influência. Simples assim, passa de pai para filho o exemplo medular de controlar a respiração, suar a camisa e ritmar as passadas em busca do bem-estar físico e mental. O prazer quase egoísta de um esporte individual, pulverizado pelo orgulho inenarrável de acompanhar aquela pessoinha de movimentos ainda incertos a completar um "percurso" de 50 metros, antes mesmo de chegar ao seu segundo ano de vida, numa das tantas pistas de corridas disponíveis na cidade de São Paulo, em 2010.

   E assim começou também, em Marília, no interior paulista, em algum momento de 1987, a saga de outra família de corredores. Os primeiros passinhos sem ajuda, com as pernas afastadas e os braços levantados, procurando equilíbrio, foram na sua direção. Pai e filha nascidos um para o outro, numa sucessão de afinidades rumo ao infinito – o mesmo clube do coração no futebol, a mesma profissão, o mesmo amor pela corrida, o mesmo ‘sangue nos olhos' na pista. Vinte e seis anos depois, os mesmos braços levantados, o rosto banhado em lágrimas da mais pura felicidade por uma conquista que seria dos dois, a marca do sub 40 nos 10 km.

Cumplicidade é o combustível de outra dupla. Os dois dividem a paixão pela Educação Física com o mesmo entusiasmo que compartilham cada quilômetro de chão do Aterro do Flamengo, "palco" principal das provas de corrida de rua no Rio de Janeiro. Trocam o tradicional almoço de domingo em família, desde 2008, por uma medalha e um café da manhã daqueles bem saudáveis, dividido com os companheiros de equipe, abrigados, da chuva ou do sol, pela tenda vermelha que ajuda a colorir, em meio a tantas outras, o grande parque urbano arborizado pelo renomado paisagista Roberto Burle Marx.

Quatro tempos, quatro histórias, quatro famílias, um só amor. Vidas que se cruzam, mesmo que não se conheçam, por causa da corrida. Esporte que o fotógrafo e jornalista Yllen Kerr ajudou a fincar raízes por aqui. Desportista nato, o amor pelo "cooper", como a corrida de rua era chamada na época, surgiu quando o técnico Claudio Coutinho levou o método para a Seleção Brasileira, na Copa de 1970. Não demorou para Kerr adaptá-lo ao que já fazia regularmente no Rio: correr ao longo das praias, onde tinha, entre outros, a companhia do humorista Millôr Fernandes e do "trio colírio" de Ipanema – o jogador de futebol Narciso Horácio Doval, argentino radicado no Rio de Janeiro, e os cantores e compositores Paulo Sérgio e Marcos Valle.  

 

PIONEIRO. A preocupação com relógio, quilometragem, tênis especiais e precauções médicas começou com a criação de um grupo, em Copacabana, o Corja (Corredores de Rua do Rio de Janeiro), embrião dos centenas de grupos de corrida hoje espalhados pelo país, fundada por Yllen Kerr e os amigos Fernando Azeredo e José Inácio Werneck. Praia e sol era a melhor combinação para a prática da corrida, e a cidade do Rio de Janeiro ditava o ritmo do esporte. Na época, até o Governo Federal aderiu à causa, com uma campanha contra o sedentarismo estrelada pelo ator Nuno Leal Maia, cujo slogan era "Mexa-se!" tendo como trilha sonora a música "Estrelar" – "tem que correr, tem que suar, tem que malhar (vamos lá!)" -, de autoria dos irmãos Valle.

"Meu avô foi um visionário desse esporte democrático cuja tendência é crescer cada vez mais. Embora fosse apaixonado pelo esporte, meu pai conta que ele era mais um entusiasta, um organizador, do que propriamente um atleta competitivo. O negócio dele era correr na praia e reunir as pessoas em grandes eventos. Com certeza, ele deixou uma semente forte de amor pela corrida", disse Fábio Junqueira Kerr, 38 anos, neto de Yllen e professor de Educação Física que empresta seu nome a uma equipe de corrida.

Foi esse empreendedorismo de Yllen que abriu caminho para três gerações de corredores na família – filho, neto e bisneto. Foi da vontade de Yllen que saíram as primeiras grandes provas de corrida de rua para amadores. Tudo muito rápido e intenso como deve ser uma linda história de paixão. Os 12 km do Hotel Nacional ao Forte do Leme foram um desafio criado pelo jornalista corredor, em 1977. As inscrições eram feitas em um carrinho de sorvetes, nas areias da praia, onde se escrevia nome e idade em um caderno de espiral. Em 1978, foi a vez da Corrida de Copacabana, e em 1979 lançou o livro "Corra para viver" e criou a empresa Printer, de onde saiu, em 1981, a primeira edição da Corrida da Ponte.

Esse último projeto grandioso, Yllen Ker não chegou a ver realizado – foi encontrado morto em seu apartamento dois dias antes da prova. O filho, Fabio Kerr, surfista, corredor e artista plástico, ficou com a incumbência de coroar os vencedores do evento inédito e, de quebra, perpetuar a espécie. "Quando fui avisado que a corrida seria reeditada, no ano passado, ao receber o telefonema com o convite para entregar as premiações, logo pedi para correr a prova. De alguma forma, meu pai estava ali também comigo, a cada quilômetro percorrido", disse Fábio, de 60 anos, vendo o sonho de seu pai se concretizar fortemente na figura do filho, envolvido pessoal e profissionalmente com as corridas de rua, e se perpetuar nos pequenos pés de Kalel Kerr, de 7 anos, bisneto de Yllen.

"Meu pai nunca deixou de correr. Desde muito novo, eu e meu irmão íamos correr na areia junto com ele, ajudávamos a cronometrar seus tempos. Viramos professores de Educação Física. Hoje, faço o mesmo com o Kalel, que também corre comigo na areia, fica de olho no cronômetro e já participou de algumas corridas infantis, mais por diversão. Dá gosto vê-lo correr, por causa da história da minha família, mas eu tento não forçar a barra, e sempre o incentivo a fazer outros esportes, como natação, capoeira e futebol. De várias formas, ele já está começando sua coleção de medalhas", disse Fábio Junqueira Kerr.

 

COMPETITIVO. O cirurgião-dentista Paulo Réa travava uma luta contra a balança, há sete anos. Deixou para trás, junto com muitos quilômetros, 24 kg, e não se imagina longe da rotina de treinos e provas. Disciplinado e competitivo, já completou mais de 200 corridas oficiais, dos 5 aos 42 km. Mas sua maior alegria foi ter conseguido transmitir essa paixão para sua filha, Nathalia Réa. A jovem, então com 22 anos, sofria de depressão e anorexia. Passou a acompanhar o pai nos treinos e nas corridas, para se distrair. Achou o ambiente ótimo, prestou atenção nas meninas corredoras, com os corpinhos em dia e pensou: "Nossa, quero ser igual a elas".

"A corrida hoje é meu estilo de vida. Tirei muitos dos ensinamentos de treinos e provas e passei a aplicá-los à minha rotina. O esporte transformou a minha vida. Aprendi a cuidar do meu corpo, a me alimentar e descansar melhor, ser responsável e ter disciplina. Com certeza meu pai teve uma influência muito grande. Tenho imensa gratidão por ele ter me apresentado ao esporte. Meu pai foi meu grande incentivador e torcedor. Sempre acreditou no meu potencial, e me instigava a buscar pela vitória", disse Nathalia, também cirurgiã-dentista.

Hoje, criatura superou criador, para orgulho do paizão coruja. Em quatro anos nas pistas, a moça tem um currículo impecável, com destaques para a participação na Corrida SP-Rio no ano passado, uma maratona em 3h38, 5 km em 18:45, participação na equipe vencedora da Volta à Ilha, em Florianópolis, este ano, e a conquista recente dos 39:41 para o Desafio Caixa Contra-Relógio sub 40 nos 10 km na corrida Track&Field Villa Lobos, em junho (veja matéria sobre o Desafio, nesta edição).

Moradores de Marília, no interior de São Paulo, a família Réa tem uma vida que gira em torno das corridas. Além de Paulo e Nathalia, a mãe, Vilma, também é adepta do esporte, e Dario Garcia, o noivo, estudante de Medicina, também corre. Uma turma cujo lema poderia, facilmente, ser "sebo nas canelas".

"Em um dos meus muitos dias de treinos para a Maratona de Porto Alegre, que eu e minha filha completamos de mãos dadas, vi um rapaz de uns 23 ou 24 anos já correndo às 5 da manhã, disciplinado e veloz, e pensei ‘tão jovem e correndo de madrugada, isso é raro!' Na terceira vez em que o vi, puxei papo, passamos a conversar e gostei de sua humildade. Comentei em casa, e deu no que deu (risos). Gosto muito dele, tem bons princípios e, até agora, está aprovado", diverte-se Paulo Réa. 

INCENTIVADOR. Levado para as pistas pelos amigos do trabalho em uma prova de revezamento, o paulista Antonio Colucci tomou gosto pelo esporte rapidamente. Nenhum parente próximo corria; seu estímulo foi o desafio pessoal: cada quilômetro a mais no percurso era uma realização, e quanto mais rápido corria, mais feliz ele ficava. Daqueles primeiros 5 km de 2004 para os famosos 15 km da virada de ano na São Silvestre, o tempo passou rápido. Enquanto o pai segue em busca de uma maratona com "mais folga" – na Maratona do Rio 2012 teve cãibras, mas conseguiu entrar no ranking da CR na sua faixa etária -, o filho começa a colecionar as próprias medalhas. 

"Quando o Diego nasceu, há quatro anos, meus treinos eram nas provas, para manter um ritmo e o prazer de correr. Quando ele começou a andar, já queria correr com o pai e, um mês antes de completar 2 anos, estreou na categoria fraldinha. Correu os 50 metros lindamente", disse o pai do corredor prodígio, com oito corridas infantis no "currículo". Na mais recente, da Corpore, Colucci chegou bem cedo e Diego pôde ficar correndo durante uma hora, enquanto esperava os portões de acesso à pista serem abertos para ir para a largada. A prova, propriamente dita, durou poucos segundos.

Nessa idade, as crianças vão para a pista acompanhadas. A cada corrida, escolhem com quem dividirão o pequeno percurso na pista – se é com o pai, a mãe ou, no caso do Diego, o padrinho, que é educador físico, corredor e grande incentivador.

"Ele convida todos os amiguinhos da escola para também participar das corridas e já levou alguns, que também adoraram. Só não costumo levá-lo às minhas provas porque não tenho coragem de tirá-lo da cama domingo de madrugada, e as poucas corridas noturnas geralmente são na época de frio. Melhor não traumatizar a criança com a parte ruim da corrida, que é acordar cedo", diverte-se papai Colucci.

 

PARCEIRO. A rotina dominical de Diego Pena sempre foi dedicada aos esportes. Desde pequeno, incentivado pelo pai, educador físico, fez de tudo um pouco – de futebol até atletismo. O pai, Antonio Pena, foi seu professor na escola, do maternal até a antiga oitava série. A mãe, Josilene, tem o mesmo ofício. Foi ela quem levou Diego, quando tinha 14 anos, para fazer sua primeira corrida de rua. O pai já era completamente "viciado" nas passadas no asfalto, na época. Hoje em dia, Antonio Pena faz uma média de 60 corridas por ano. "Apesar de ser ligada ao meu ofício, a corrida é o meu hobby. Mas eu só corro até 21 km, porque acho a maratona um cansaço mental muito grande. Corrida, para mim, é um lazer", disse o patriarca, exemplo da família Pena.

O caminho trilhado na vida profissional de Diego, diante disso tudo, pode ser considerado um processo muito natural. Cursou faculdade de Educação Física e, naquela altura já completamente envolvido pelos eventos de corrida que crescem a cada ano, no Rio de Janeiro, fez a monografia sobre o assunto, se especializou em biomecânica do esporte e, hoje, além da Equipe Pena, também faz pesquisas na área, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Cresci no meio, não me via fazendo outra coisa. Além de estar trabalhando, a corrida proporciona uma proximidade maior para a nossa família. Temos um cotidiano puxado, durante a semana pouco tempo passamos juntos. Aí chega o domingo e a corrida nos dá isso, essa festa, esse bem-estar, esse estar junto, correndo e  trabalhando", disse o técnico da Equipe Pena.

Diego e Antonio elegem como o melhor momento em família a Meia-Maratona da Disney, que completaram em janeiro deste ano. Pai, mãe e filhos – o irmão de Diego também é educador físico e corredor de rua – realizaram dois sonhos juntos, numa só vez. Viajaram, correram juntos, conheceram a "casa do Mickey" e trouxeram para casa, de lembrança, medalhas e momentos eternizados em centenas de fotografias: "Foi a corrida mais ‘relax' da minha vida. Corríamos, parávamos, fazíamos fotos com os personagens dos desenhos, de nós mesmos e, mesmo tendo curtido muito o trajeto de 21 km, conseguimos completar a prova e cruzar a linha de chegada todos juntos, pela primeira vez nessa nossa longa relação com a corrida de rua. Realmente, um momento inesquecível", descreveu Antonio Pena.

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