Todos os corredores já devem ter passado por essa situação: sai de casa para treinar já cansado, tenta começar o treino, não rende e a planilha prevê para aquele dia 20 km de ritmo ou seis tiros de 1.000 m… Em outro momento, quando está previsto 50 minutos de rodagem leve, você está voando… Muita gente precisa de planilha para se disciplinar, para se estimular ou até para não passar do ponto, como acontece com os mais competitivos. Mas a dúvida persiste: seguir cegamente a planilha e "ignorar" o corpo, ou o contrário? Em contraposição a essa escravidão, ficar exclusivamente à mercê do corpo e de suas vontades e disposição pode gerar treinos vagabundos ou exagerados.
No bate-papo com a Contra-Relógio, treinadores comentam pontos importantes sobre essa dúvida. A primeira é que o corredor precisa ter certa experiência para saber se está realmente em um dia ruim ou se a preguiça é que está dando as caras… Além disso, para evitar esse "problema", é fundamental a parceria entre treinador e aluno, com planilhas realmente individualizadas e adaptadas semanalmente, o que sabemos muitas vezes não ocorre. Outro fator, para quem treina sozinho, é saber avaliar se a semana está ruim devido a problemas extras (estresse no trabalho, família, uma noite mal dormida…) ou se é cansaço mesmo. De qualquer forma, os parâmetros são inúmeros e a resposta bem mais complicada do que parece.
Fernando Góis, treinador da Tribo do Esporte Assessoria Esportiva, em Florianópolis, tem uma receita básica para chegar ao equilíbrio necessário. "Minhas planilhas geralmente são focadas em três treinos semanais em dias alternados, ou seja, terça-quinta-sábado ou domingo, ou segunda-quarta-sábado, com a orientação sempre que possível da prática de um ou mais exercícios físicos, como a musculação, natação ou ciclismo nos dias de descanso da corrida. Com isso, acaba ficando um pouco mais flexível, ou seja, caso o aluno não consiga treinar na segunda, faz na terça e assim por diante. Para aqueles mais apaixonados e dedicados, deixo por conta um quarto treino livre em ritmo leve de 50 minutos a 1 hora", comenta Fernando.
De acordo com o treinador, nesse formato, os alunos não se martirizam tanto. "Quando se tem uma planilha de cinco a seis dias por semana, fica extremamente difícil cumpri-la à risca, e assim muitos acabam desistindo ou fazendo apenas partes, acarretando uma cobrança particular muito grande. Como meus orientandos não são atletas profissionais, vejo a corrida como esporte de lazer, diversão, saúde, no qual não devemos nos cobrar tanto; é claro que sempre existe a vontade de melhorar os tempos pessoais e acho isso muito bom, mas a que custo?", destaca Fernando.
TREINO À DISTÂNCIA. Trabalhando basicamente com treinamento à distância, Daniel Neves, da Run & Fun, de São Paulo, diz que essa é uma dúvida constante, que pode ocorrer também nos treinos presenciais. "Se não ficarmos de olho, acabam fazendo treinos muito fortes ou fracos, dependendo do dia. Existem várias maneiras de medirmos a intensidade dos treinamentos. Todas são muito importantes e não devemos nos apegar apenas a uma delas: pela frequência cardíaca, pelo ritmo/velocidade e/ou pela sensação de esforço", afirma Daniel. "Todas as formas de medida da intensidade devem ser levadas em conta. Um caso muito comum é a pessoa correr muito focada nas informações do relógio; se em um dia a bateria acaba, ele não conseguirá treinar bem; aí entra a sensação de esforço e a percepção do ritmo, e ele tem de estar ciente para colocar em prática no treino."
Segundo Daniel, a confiança entre treinador e corredor é decisiva. "Se não houver isso, não faz sentido a pessoa procurar um profissional para lhe passar a preparação. Pode ser o melhor treinador, se não tiver essa proximidade, não vai funcionar. Mas também nunca deve ser ‘escravo' da planilha", ressalta. "Há dias e dias. Estando em perfeitas condições (dormiu bem, se alimentou corretamente, está sem estresse, o clima é favorável) segue o treino, mas com qualquer alteração nessas condições, o treino não sairá 100%, então é mais recomendável tirar o pé um pouco."
Corredora e treinadora da Pulsação Esportes, em Porto Alegre, Giovana Kaupe destaca que quem realmente decide entre treinar com planilha ou sem ela fica em um impasse. Usar planilha e seguir à risca as obrigatoriedades ou deixar o treino fluir e ser vítima da cabeça que às vezes pede para parar bem antes de completar o treino do dia? "Na minha opinião, essa é uma das tarefas do treinador. Digamos que tenhamos uma planilha de 16 semanas para uma primeira meia-maratona do corredor. Nela tem treinos de rodagem, velocidade, aclives, enfim, tudo programado. Mas gripe, viagens, problemas no trabalho, qualquer coisa pode alterar essa rotina já preparada. É nesse caso que mexemos no planejado, e adaptamos os treinos", afirma Giovana.
"Para quem não treina com orientação, minha sugestão é que utilize planilhas por percepção de esforço em vez de tempo nos treinos e também recorra ao bom senso para diminuir ou aumentar a intensidade, dependendo do momento em que se está (se cansado, faltante, motivado etc)", diz a treinadora gaúcha.
Já para o técnico Marcelo Camargo, de Belo Horizonte, "o fundamental é uma boa comunicação entre corredor e treinador, que deverá estar sempre ajustando o treino de acordo com a disposição, objetivos e melhora da performance. Em muitos casos, os atletas tentam adaptar os treinos à rotina estabelecida pelo treinador, quando o ideal seria o treinador adaptar as suas planilhas a cada pessoa."
O ponto de vista de Marcelo é que o treino deve ser sempre controlado matematicamente em distâncias, ritmos, durações e frequências semanais, não podendo deixar fluir à mercê da percepção e disposição de cada dia. "Assim chegamos a um meio termo: seguir uma planilha organizada e, através da comunicação prévia com o treinador, fazer os ajustes a cada alteração de disposição e de rendimento, seja para melhor ou pior."
PLANEJAMENTO. O treinador Mario Mello, da Mario's Team, de São Paulo, prefere não afirmar que os menos disciplinados precisam de uma planilha para estimulá-los, nem que os mais competitivos necessitam dela para segurá-los, embora reconheça que essa situação ocorra. "Acredito que uma planilha antes de tudo serve para planejar e programar um ciclo de treinamento. Em minha visão isto é essencial, mesmo que seja preparada pelo próprio corredor. O importante é haver um planejamento do treino, com uma visão maior, não só aquela de dia após dia."
De acordo com Mario, seguir a risca a planilha é o ideal, porém uma variação de 10% a 15% para mais ou para menos é natural. "Se o treinador está acompanhando o aluno, que deve ser outra coisa básica, ele pode ajustá-la sempre que verificar algum desvio de relação entre a programação de treinos e a realização dos mesmos." Ele diz adotar uma terminologia um pouco diferente em suas planilhas. "Associo, por exemplo, um treino longo com a definição ‘conforto', que significa a intensidade que você se sente confortável, e não um ritmo pré-definido, dando possibilidade da pessoa correr mais rápido num dia frio e mais lento debaixo de um sol forte. Já quando quero um treino progressivo, por exemplo de 18 km, sugiro 6 km leve, 6 km moderado e 6 km moderado-forte ou forte. Desta maneira o corredor ajusta a seu senso de percepção", explica Mário. "Ao mesmo tempo, para quem usa monitores de frequência cardíaca, adoto níveis de esforço baseado no bpm que, para mim, também estão relacionados com leve, moderado, moderado-forte e forte."
De acordo com Mário, é importante fiscalizar se a percepção de esforço do aluno é apurada. "E não é difícil fazer isso; basta averiguar as parciais das voltas, se o aluno quebra no final em um treino progressivo e quebrar significa apenas cair o ritmo. Passa a ser um alerta para eu olhar mais de perto os treinos e corrigir o que possa estar errado. Também tenho alunos que são dependentes da planilha e se sentem bem com isso, assim como outros que só me fazem ter o trabalho de programar, pois eles trocam tudo! O que podemos fazer? Compreender que cada um é diferente do outro; alguns têm uma rotina de vida que permite ter um horário inteiro à disposição, enquanto outros não." E Mario resume sua posição: "Planilha pode e deve ser ajustada e isto é função de quem a desenvolveu".
A resposta definitiva para a pergunta do início do texto não existe, mas sendo ou não ‘escravo' da planilha, a percepção pessoal, dia após dia, influenciada pelos diversos fatores citados, é fundamental para um treinamento (e uma prova, se for o caso), saudável e no ritmo correto.
NAS PROVAS, OUTRA SITUAÇÃO
Há exatos 20 anos corri minha primeira maratona, em Blumenau. Como já tinha uma boa base de corrida e ciclismo, treinei sob orientação da técnica Silvana Cole apenas por dois meses antes da prova. Tomando como referência minha performance nos três longões que realizamos, ela considerou que eu completaria a maratona em torno de 3h15, indicando os tempos de passagens em alguns pontos do percurso.
Apesar de não ter dormido na véspera, pela ansiedade, estava me sentindo muito bem e viciado em andar em grupo no ciclismo (para pegar vácuo), acabei seguindo corredores que me passavam. Quando vi, estava indo mais rápido do que o recomendado pela treinadora, cruzando a meia em 1h29. Até tentei segurar o ritmo, especialmente ao ver alguns participantes quebrando depois do km 30, mas decidi que faria o que meu corpo "mandasse". Completei em 3:04:30, meu recorde até hoje.
Anos depois, correndo uma meia-maratona em Campinas, emparelhei com um corredor logo no começo e fomos conversando, com tal tranquilidade, que passados alguns quilômetros sugeri a ele que aumentássemos o ritmo, pois estava muito confortável, talvez porque o clima no dia estava muito favorável. Ele disse que não poderia porque seu treinador tinha estabelecido que corresse no limite X de seu batimento cardíaco etc. Até tentei argumentar que não fosse tão escravo de seu frequencímetro, mas não o convenci. Fui embora e no final, ao vê-lo chegar alguns minutos depois de mim, perguntei como estava se sentindo, ao que me respondeu: "Completei com sobra e me arrependo de não lhe ter acompanhado; bateria meu recorde!" (por Tomaz Lourenço)
AGORA DOMADO
Morador do Rio de Janeiro, o corredor Nelton Araújo diz que nunca verá uma planilha como "escravidão". "Pois ser escravo pressupõe a falta de prazer na atividade física, o que já detona qualquer chance de evolução na corrida. Mas acho que existe um meio-termo, que é a relação bem estreita entre o atleta e seu treinador."
Treinando atualmente na Filhos do Vento, Nelton recebe planilhas semanais. "Assim, posso dar um retorno bem sincero, apontando se me senti confortável demais em um treino ou o que foi passado acabou sendo muito forte. E o treinador, ao entregar a planilha, coloca o que para mim é o diferencial, ou seja, suas observações sobre o treino da semana anterior e o que ele pretende nesta semana. Assim você sabe o que vai fazer, qual o objetivo, para que serve, e não apenas corre ‘porque o treinador mandou', o que pode acarretar momentos de rebeldia e sair fazendo o que der na cabeça. Eu era assim, até entrar na equipe, em novembro do ano passado, lesionado e em overtraining. O Alexandre Lima (meu treinador) soube me domar!"
Nelton conta que passa seus relatórios semanais aos domingos, após o longão. "Com base em meus apontamentos, o Alexandre me manda, na segunda-feira, o treino da semana. Assim, ele sabe se posso pegar mais pesado, se tenho que descansar, qual ritmo estabelecer em cada treino. E até mesmo qual meta nas provas e qual estratégia para as mesmas. Essa parceria que se estabelece com o treinador, baseada na confiança mútua, é fundamental."
Porém, o corredor diz que há uma variação na planilha. "É óbvio que a gente foge um pouco, faz abaixo do que está programado, mas até essa margem de ‘desvio' está prevista pelo treinador. Particularmente, eu sigo a planilha, mas, depois de um certo tempo, e de entrosamento, sei onde posso forçar. Na dúvida, pergunto a ele. Já teve treinos em que ele mandou ir para a ‘morte' pois me viu bem e sabia que dava pra puxar mais sem se machucar. Mas já aconteceu dele me ver muito mal e mesmo eu relutando para continuar, ele mandou parar."
COM PLANEJAMENTO, MAS SEM RIGIDEZ
Muitos corredores não têm treinadores, provavelmente a maioria no Brasil. Fazem planejamento para as provas escolhidas com base em conversas/orientações de colegas, pela sua experiência, pelo conhecimento do seu corpo. Uns até montam planilhas semanais, seguidas sem muita rigidez, deixando espaço para análises diárias sobre como estão se sentindo naquele momento, o que pode acarretar um aumento ou redução de quilometragem em um longão, transformar uma série de tiros de 6×1.000 m em 4×2.000 m e por aí vai.
"Uma vez peguei duas planilhas, uma para 10 km e outra de 21 km com um amigo, me baseando no tempo dele e adequando para o meu ritmo. Vou perguntando para outros colegas também algo que preciso fazer ou adaptar, busco informações na Contra-Relógio. Não consigo me adaptar às planilhas", afirma Fábio Pena, de Jundiaí. Ele até estabelece um planejamento pessoal, que inclui três treinos básicos (velocidade, ritmo e longão), além de musculação. "Tudo com vistas a uma prova-alvo. Até gostaria de entrar em uma assessoria para experimentar, mas é caro para mim", explica.
Apesar desse jeito nada rígido de encarar o esporte, Fábio coloca todos os dados do treinamento no computador. "Com isso, faço bater a quilometragem semanal. Vejo se está na média desejada, defino o ritmo me baseando na última prova que fiz. Mas sempre levo em consideração o estado de espírito do dia."
Atualmente, Cassius Antunes Coelho treina com uma assessoria, a Zona Alvo, em Fortaleza. "Como tenho pouca experiência, fico meio perdido ainda e por isso considero importante ter contato com um treinador. Sigo os treinos, mas com pequenas variações." Ele diz seguir a planilha, com exceção dos dias de treino na areia, quando faz metade do sugerido. "Acho que aumenta o risco de lesão."
Cassius treinou sozinho de maio a setembro do ano passado, quando entrou na assessoria. "Eu simplesmente corria, três a quatro vezes por semana, estabelecendo o tempo para percorrer determinados circuitos, como avenidas perto de casa ou praças. Tentava a cada treino aumentar a quantidade de voltas no mesmo tempo." De acordo com ele, houve uma melhora ao ter uma planilha a seguir. "A postura de corrida mudou, fiquei mais focado em objetivos."
Já William Lisboa, de Itu, faz parte do grupo dos "sem planilha". Segue orientações de pessoas com mais experiência em corrida e sua preparação para a Maratona de São Paulo, de seis meses, contou com quatro treinos semanais, "anotados" na cabeça: dois de ritmo de 10 km, um de tiro a 90% da frequência cardíaca e um longão de 30 a 35 km aos domingos. "Treino de acordo com as provas que vou."
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Muito legal a matéria, me reconheço em alguns depoimentos. Corro regularmente desde 1.999 e a falta de disciplina me causou algumas lesões, por isso hoje não sigo simplesmente meus impulsos, nunca treino mais que 2 dias seguidos e no primeiro desconforto reduzo o ritmo e analiso o que houve de errado no planejamento.
Costumo seguir,a planilha,mas dependendo do dia,ouço meu corpo.
Costumo seguir a planilha,mas dependendo do dia,ouço os limites de meu corpo.