Especial admin 10 de junho de 2011 (0) (328)

Mutai x Mutai

Domingo, Londres:  Madrugada fechada ainda, mas com uma lua cheia daquelas de matar de inveja Neil Armstrong e toda a trupe da Apollo 11. Sigo em silêncio, ainda meio sonolento rumo a Londres, ou melhor, rumo a TV, para comentar a 31ª Maratona de Londres. Enquanto este audaz piloto segue tentando a "pole position" e adivinhar todos os radares no caminho, fico imaginando, em meu torpor pré café expresso, como Marilson irá se portar nesta que será a maratona mais importante de sua vitoriosa carreira: irá nosso candango veloz, correr no ritmo insano dos líderes africanos*, ou correrá com o cronômetro, buscando, conforme ele anunciava, uma marca abaixo das 2h08?

Marilson sabia que o ritmo de prova seria insano, pois corriam 7 alucinados com tempos abaixo de 2h06. Se acompanhasse estes loucos, provavelmente falharia em seu objetivo inicial (sub 2h08), mas haveria uma chance remota, remotíssima, de terminar no pódio. O que Marilson faria?

David Bedford, diretor da prova e ex-maratonista olímpico faz o sinal de positivo e é dada a largada! Uma legião de "coelhos" fantasiados de maratonistas presidiários, ou juízes de futebol americano em trajes de verão, partem firmes em seus objetivos de detonar algo: o recorde mundial ou todo o pelotão de elite, que ora segue fielmente a ninhada de coelhos assanhados. Passam os 5 km com singelos 14:34, em ritmo de recorde mundial, e com sobras. Penso se Marilson aguenta este ritmo? Até quando? Nesses primeiros quilômetros, vários postulantes ao pódio estremecem e dão sinais de que vão apenas assistir, de longe, o duelo dos gigantes. Marilson se comporta como se estivesse "em casa", ora pela direita, acompanhando Emmanuel Mutai, ora pela esquerda, de olho em Martin Lel (convidado dias antes, para assumir o lugar de Sammy Wanjiru, que atravessa uma triste e precoce decadência física e, principalmente, moral), me fazendo lembrar certos políticos oportunistas, em busca do partido ideal para as próximas eleições. Mas, diferente dos parasitas das urnas, Marilson sabe o que faz e com uma competência de primeiro ministro sueco! Sigamos em frente…

Na passagem dos 10km (29:24) ainda em ritmo de recorde, mas em ritmo de bossa-nova, tipo Chico (na voz de Gal) "não se afobe não, que nada é pra já…", sinto alívio, pois nesse passo Marilson se mantém vivo no primeiro pelotão e, se tudo correr (claro) bem, sai de Londres com 2h06. Avante!

Dos 15 aos 32 km, o ritmo oscilava entre 2:56 e 3:00 por quilômetro, e o abusado pelotão líder emagrecia a olhos vistos. Atletas com tempos entre 2h05 e 2h07 iam ficando pelo caminho. A ninhada de coelhos velozes (e furiosos!) se desfez como por encanto. Me lembro, nostálgico, de Alice, em sua perseguição vã ao Coelho Branco, mas volto rapidamente às ruas de Londres, pois, exatamente no km 31, cinco atletas saem em louca perseguição a Emmanuel Mutai, que, talvez por motivos torpes, tenha resolvido acabar com a brincadeira: imprime um ritmo desumano de 2:50/km, deixando boquiabertos competidores, público, família real, Mr Bean, Sean Connery, Steve Joones, Steve Cramm, Steve Ovett, todos os Steves presentes e o comentarista que ora vos tecla!

Lel, Makau, Kebede, Gharib e, sim ele, Marilson dos Santos, são os únicos que reagem e tentam neutralizar a fuga de Mutai. Em vão! Mantendo o ritmo absurdo, Mutai segue, abrindo larga diferença sobre os perseguidores. A partir deste momento, a TV Britânica nos contempla com algo grotesco: não satisfeitos em mostrar a chegada completa das 10 primeiras mulheres, os invasores das Malvinas resolveram acompanhar os passos claudicantes de uma maratonista local agonizante, até a linha de chegada! Graças a isto, não pudemos ver Marilson deixar pra trás Kebede (campeão em 2010) e Gharib.

No retorno das imagens, vimos Mutai firme cumprir os últimos metros, já nos jardins de Buckingham, atrapalhando o café da manhã real, voando rumo ao recorde do percurso: 2:04:40, com passagem de 21,1 km em 1:02:44, negativando e mostrando que se derem a ele um dia bom (temperatura baixa e vento zero), percurso rápido e boas companhias, o recorde cai, e cai muito!

Um minuto e pouco depois, vemos Martin Lel ressurgir das cinzas, dando um sprint em cima de Makau e levando o vice. Mas, o melhor de tudo vinha logo atrás: Marilson, absoluto, em 4º lugar, entrando no seleto grupo de reais (ops, em Londres tudo é "real") concorrentes a medalhas em… Londres 2012, fecha com excelente 2:06:34. Fechamos o dia com um novo postulante ao recorde mundial: Emmanuel Mutai, e com o nosso melhor fundista/maratonista se colocando definitivamente entre os melhores do mundo.

Tento dormir cansado, mas não consigo, algo me diz que Boston, amanhã, será inesquecível…

 

SEGUNDA-FEIRA, BOSTON. O dia em Hopkinton (cidade onde a maratona larga) amanhece perfeito: sol suave, temperatura beirando os 7 graus e vento sudoeste de 12 milhas/hora. Ops!!! Vento a favor de quase 20 km por hora? Humm, aí tem coisa, com este auxílio luxuoso, alguém vai aprontar algo!

Temos em Boston este ano, um pelotão de elite, tanto no masculino quanto no feminino, fortíssimo. Vale à pena acompanhar a prova, principalmente quando não precisarei trabalhar enquanto sigo a transmissão, pois não transmitiremos (Sportv) Boston. Dada a largada, a elite inteira segue conformada, como em 2010, o herói local, Ryan Hall, que numa triste sina, tenta chegar a Boston antes do trem que partiu minutos antes, da estação de Ashland. Hall abre, nos primeiros quilômetros, uma vantagem grande, sobre o pelotão. 

Ao passar pelo km 10, entrando em Wellesley, o pelotão perseguidor abre as apostas sobre em que milha Hall irá quebrar este ano. Ao fim das apostas, Cheruiyot, Mutai (não o Emmanuel de ontem, mas o Geoffrey de hoje), Mosop, Gebremariam e outros resolvem se aproximar de Hall, pelo menos para aparecer um pouco na TV, ora! E, vendo que não foi tão difícil assim, pois o vento que empurrava Hall para Boston, também acariciava as costas do restante do grupo, resolvem engolir o ousado Ryan. Mas, ao passar pelo Boston College, em que há décadas, as alunas de tão conservadora instituição se despem das amarras vitorianas e, como mágica, se transformam em tietes ensandecidas, a gritar e espernear pelos velozes rapazes suados, Hall agradece os gritos e tenta fugir novamente. Em vão novamente!

Ao chegar na tão temida Heartbreake Hill, hoje mais para morro dos ventos uivantes, ali pelos 31 km, como em Londres (lembram?) Mutai (o de Boston, agora) ataca e consegue uma fuga sensacional. O pelotão é exterminado e salve-se quem puder. Moses Mosop pode. Aos poucos ele vai tirando a diferença de Mutai, que chegou a ser de um minuto! Mutai não se importa muito com a companhia de Mosop, apenas um estreante em maratonas. Mas que estreante!

Ao deixar o condado de Newton e ganharem as margens do Rio Charles, o duelo fica sensacional. Neste ponto, faltam menos de 2 km, e os dois quenianos (um renomado corredor de 2h04 e o outro… o outro apenas um aventureiro de primeira viagem) duelam passo-a-passo. Neste momento descubro, assustado, que eles estão prestes a pulverizar o recorde mundial, justamente onde ele (pelas normas da IAAF) não pode ser batido. Às favas com as normas, que venha a melhor marca do mundo então!!! E eles ganham as ruas de Boston, descem em desabalada carreira pela Beacon Street, entram à direita na Commonwelth Av. e, por incrível que pareça, aceleram ainda mais. Mutai aparenta tranquilidade, pois sabe que é mais veloz que Mosop. Mosop parece não acreditar no que acontece, tenta se beliscar, mas não faz, pode se descoordenar e entregar a prova a Mutai.

Dobram a penúltima esquina, ganhando a Boyleston agora. O público centenário, da centenária maratona, vai ao delírio, apesar de Hall não estar ali, pois falta muito pouco agora. Na TV, os comentaristas não se dão conta ainda do que estão prestes a transmitir. Enfim, fim, dobram na Copley Square e cruzam a linha de chegada. Geoffrey Mutai acaba de vencer a Maratona de Boston com o tempo de 2:03:02. Repito e traduzo: Geoffrey Mutai vence Boston com 2 horas 3 míseros minutos e dois segundos!!!

Depois de algum tempo a TV se dá conta de que a marca é melhor do que o atual recorde mundial. E aí? É recorde mundial? Esse tempo tá certo? Perdemos algo enquanto procurávamos dados estatísticos sobre esse Mutai? Pois é, se o recorde mundial tinha que cair, não seria em Boston!!!

Segundo as regras, corretamente criadas pela IAAF, para que pudéssemos gritar a plenos pulmões que o recorde mundial da maratona foi quebrado, ou um tempo oficial de maratona só será referendado quando estiver de acordo com vários requisitos. E os que tiram de Boston a chance de ter um recorde mundial quebrado ali são:

  • Diferença altimétrica entre largada e chegada superior a 21 metros (lá, da largada à chegada, desce-se 137metros)
  • Distância entre a largada e a chegada superior a 21 quilômetros (para que não haja o benefício de um vento a favor, já que o percurso vai em um único sentido)

Mas, nada, nem altimetria, nem o vento santo que empurrou esses moços rumo à história irá tirar o brilho desta que foi a mais sensacional das edições desta centenária senhora.

 

QUARTA-FEIRA, RIO. Não contem para minha esposa, mas estou seriamente inclinado em mudar o nome de meu filho caçula, Miguel, atualmente com 7 longos meses de vida, e com pinta de corredor de longas distâncias (as noites insones denotam energia de sobra no rapazote!). Doravante, o nome de Miguel muda para Mutai. Em apenas 24 horas, este sobrenome reinou absoluto em duas das mais importantes maratonas deste mundinho! Acho, sinceramente, que o nome Mutai tem poderes! Que venha Berlim, em setembro, onde lá, de acordo com as regras da IAAF os Mutai poderão, de vez, destronar Haile Gebrselassie.

 *Os líderes africanos nas maratonas, diferentemente de líderes políticos africanos, déspotas sanguinários sendo depostos em série, transpiram a paz e inspiram milhões de jovens de classes sociais menos favorecidas, pelo mundo.

 

 

 

 

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