20 de setembro de 2024

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Especial admin 4 de outubro de 2010 (0) (81)

Parada obrigatória

Tudo estava indo bem. Você evoluindo no treinamento, conseguindo baixar seus tempos em provas, participando de grandes desafios, traçando metas ainda maiores. Eis que de repente uma dorzinha começa a incomodar. Embriagado pela sensação de poder e superação, você não liga para o sinal e continua em ritmo intenso. A dor aumenta, passa a comprometer a performance e até o humor e a única saída, então, é procurar um médico. Diante do especialista você ouve algo como "vamos realizar alguns exames e enquanto isso vai ter que parar de correr". Você tenta argumentar que o incômodo não é tão grande, que é possível aguentar, que tem uma corrida no final de semana… Mas não tem jeito: o diagnóstico aponta uma lesão e você é obrigado a parar. Sim, é duro sair de cena no melhor da festa. Só que se você não der esse tempo, o problema certamente vai piorar e comprometer ainda mais sua vida. Mas como enfrentar os dias, semanas e por vezes meses longe dos tênis de corrida? Mais do que a própria recuperação física, é preciso ter apoio para não se deixar abalar pelo psicológico.

A primeira grande dificuldade do atleta lesionado é aceitar que está machucado. "Ele passa por diferentes fases durante a lesão: a primeira está relacionada à negação e acontece quando o corredor não dá valor para a dor que sente, negando que o corpo está lhe colocando um limite físico. Em um segundo momento, ele se dá conta de que está machucado e geralmente fica com muita raiva", diz Carla Di Pierro, psicóloga do esporte do Instituto Vita, de São Paulo.

A mistura de sentimentos e a interrupção repentina na atividade física mexem com a pessoa e ocorrem inclusive alterações na produção de endorfina e serotonina. "São reações químicas e psicológicas. Pode aparecer uma espécie de síndrome de abstinência, quando o corredor experimenta estados de nervosismo, angústia e até depressão", afirma Rogério Teixeira da Silva, ortopedista e especialista em medicina esportiva, coordenador do NEO – Núcleo de Estudos em Esportes e Ortopedia, de São Paulo.  Há casos até em que o corredor controlava um quadro depressivo com atividade física e, com a lesão, é obrigado a voltar para os remédios.

As lesões costumam ser um problema para o atleta amador porque pressupõem perdas esportivas, físicas e psíquicas, relacionadas a limite, fracasso e frustração. "Além da perda imediata e futura de rendimento, devido à interrupção, o tempo ocioso antes ocupado pela corrida traz a sensação de queda de performance, ganho de peso, e a pessoa não se vê mais capacitada a realizar o que antes fazia com facilidade", analisa Carla.

Em um terceiro momento, quando ‘cai a ficha', o corredor percebe que precisará tomar algumas ações para melhorar sua situação: é etapa da negociação, ou seja, de rever os treinos, estabelecer novas metas, programar novas atividades. Se este momento é bem elaborado, ele parte para a aceitação e reorganiza a vida, a fim de voltar logo e inteiro para os treinos "Agora, se ele começa a se ver como lesionado e incapaz, existe a possibilidade de ficar mais inquieto, sentir-se perdendo a identidade de atleta e excluído do grupo de corrida – e entra em cena a fase da depressão", diz a psicóloga do esporte.

O problema é fixar-se nessa etapa, sentindo-se despersonificado, com medo, ansioso e daí passar a ter comportamentos desajustados, como obsessão pelo retorno ao esporte, retorno precoce associado à lesão reincidente, reclamações exageradas e alterações rápidas de humor. "Ele vive a culpa e o pessimismo, o que não ajuda no seu humor e na sua motivação para recuperação. O importante é estar atento para cada uma das fases, perceber-se passando por elas e superando-as. Na etapa depressiva, quando reina o pessimismo, é importante questionar estes pensamentos e comportamentos, e procurar basear-se em evidências realistas de que é possível se recuperar", recomenda Carla Di Pierro.

Para ajudar a aliviar suas angústias, ouça seu médico, seu fisioterapeuta, seu técnico e valorize suas palavras. Entenda sobre sua lesão, suas possíveis causas, seu tratamento e que cuidados terá que tomar dali em diante. Procure exemplos próximos de reabilitações bem sucedidas e encare o trabalho da reabilitação. "Em alguns casos será importante ainda a participação de um psicólogo do esporte e até a administração de antidepressivos", diz Rogério Teixeira.

 

UM PASSO APÓS O OUTRO. Algumas lesões são leves e requerem poucos dias de repouso e treinos leves, outras são mais graves e afastam o atleta das corridas por meses. O mais importante é entender que você tem um problema e precisa de um tempo de recuperação. "A ansiedade é prejudicial ao tratamento. Sua atenção deve estar voltada à reabilitação, incluindo estabelecimento de metas de recuperação diárias e semanais, junto ao médico e fisioterapeuta. Aceite que seu corpo é de carne e osso e que você tem limites. A partir disso será mais tranquilo equilibrar os treinos e não se machucar mais", aconselha a psicóloga do Instituto Vita.

Para começar a vencer a angústia, aprenda a sentir prazer com pequenos ganhos. "Para quem está parado há um mês, pedalar na ergométrica e transpirar um pouco pode ser encarado como um prêmio", diz Carla. Outra dica é estabelecer metas realistas com os profissionais que estão auxiliando no tratamento. Por exemplo: até determinado dia o trabalho será de analgesia, depois serão algumas semanas de fortalecimento, no prazo "x" dias terá início um treinamento adaptado às suas condições. Assim você se sente no controle do processo e não à mercê das decisões dos especialistas que o acompanham.

Enquanto não pode por o pé no asfalto, dependendo da lesão você pode se dedicar a uma série de outras atividades. A natação é a campeã de indicações, pelo baixo impacto que promove. "Ela ajuda a manter o condicionamento físico e traz benefícios psicológicos, porque você se sente ativo. Pedalar sem carga e fazer musculação para membros superiores também podem ser boas opções", diz o ortopedista Ricardo Cury, professor do Grupo de Cirurgia do Joelho e Trauma Esportivo da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia do Joelho.

 

MEDO NA HORA DE VOLTAR. Por mais que você estivesse querendo voltar, o retorno aos treinos também pode ser cercado de angústia, por causa do medo de se machucar de novo. Daí que é preciso fazer uma programação para que tudo ocorra da maneira mais tranquila possível. "É um processo: realizar a fisioterapia com um especialista, fazer exercícios de propriocepção (percepção do próprio corpo, que inclui consciência da postura, do movimento, das partes do corpo e das mudanças no equilíbrio), reproduzir os movimentos da corrida dentro do ambiente seguro da fisioterapia vão preparar o atleta e deixá-lo mais seguro. Cada avanço deve ser capaz de gerar confiança para o próximo passo", diz o ortopedista Ricardo Cury.

O retorno efetivo ao asfalto também deve ser gradual. "Recomece com 30% do volume de antes da lesão, por duas semanas. Passe para 50% por mais duas semanas e 75% outras duas semanas. Não mexa na intensidade da corrida e se sentir alguma dor volte ao médico", sugere Rogério Teixeira da Silva. 

Pode existir dor psicológica? Os especialistas dizem que não. "O que pode existir é insegurança. Você pode potencializar a dor por causa do medo", diz o ortopedista Ricardo Cury. E mais: a dor é multidimensional, ou seja, ela tem fatores físicos, psicológicos, comportamentais e culturais envolvidos. "Aprendemos a sentir dor de um jeito ou de outro. E muitas vezes ela ganha uma função – por exemplo, se eu tenho dor, sou cuidado com carinho e atenção. Portanto, é possível que a dor física da lesão já esteja curada, mas por inúmeras causas o atleta ainda sinta o incômodo. Existe também a dor crônica – a partir de um mês sentindo um incômodo sem parar, seu cérebro fica mais sensível a qualquer estímulo doloroso. Isso merece intervenção farmacológica, médica e psicológica", explica Carla Di Pierro.

O melhor é não se lesionar. Mas se acontecer, o melhor é não se desesperar. Aprender com a experiência dessa parada obrigatória certamente vai fazê-lo um corredor mais consciente, capaz de ir cada vez mais longe.

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