POR TOMAZ LOURENÇO
Se uma pessoa entra na piscina ou no mar de vez em quando, para dar umas braçadas, ela não pode ser chamada de nadador, certo? O mesmo vale para quem faz um pouco de esteira na academia ou dá umas corridinhas nas ruas e parques, mas NUNCA participa de uma prova. Ou seja, não dá pra chamar de “corredores” esse pessoal, nem os que são citados ironicamente no título deste artigo-provocação.
Então, tomando como base a premissa de que corredor é aquele que se inscreve em provas de rua, mesmo que apenas em uma por ano, não é possível aceitar as bobagens superlativas de números estratosféricos e totalmente sem sentido. O mais recente, divulgado pela Ticket Sports, principal site de inscrições no país, é de que seriam 13 milhões de corredores no Brasil, participantes em 150 mil eventos, o que é outro absurdo, tratado na sequência.
Considerando então que “corredores” são aqueles que participam de provas, os números mais exagerados que se pode chegar é que esse contingente é de pouco mais de 1 milhão. As duas maiores corridas do Brasil, a São Silvestre e a Maratona do Rio, reúnem cada uma 35 mil participantes, mas fora isso, apenas outras duas ou talvez três dezenas de eventos passem de 10 mil inscritos. O que predominam são os com até mil participantes.
Além disso, nas eventuais estatísticas, mesmo as sérias, os números são sempre naturalmente exagerados porque não levam em conta que as pessoas são contadas em duplicidade. Por exemplo, o circuito de corridas de uma cidade resulta em um total de 10 mil participantes em suas 10 etapas, mas na prática o número de corredores não deve ter passado de 1,5 a 2 mil, porque são quase sempre os mesmos inscritos. E isso vale para inúmeros outras competições, como as que se ganha uma medalha especial ao correr várias etapas.
Os dados superlativos das corridas de rua têm o objetivo óbvio de supervalorizar o segmento, a fim de garantir e estimular a participação de anunciantes e patrocinadores para os eventos, aumentando ainda mais a rentabilidade dos organizadores. É razoável que estas empresas, assim como outras do setor, façam certo agito para que as corridas de rua no Brasil continuem crescendo, mas um pouco de bom senso é necessário, para não desacreditar o segmento.
CORRIDAS DEMAIS. Se não bastassem os números esdrúxulos de corredores, agora também começam a exagerar os referentes às provas, sendo que aquele “informe” fala em 150 mil!!! Aqui também é simples para se chegar à realidade, ou seja, basta tirar um zero e assim saber que no Brasil, com absoluta certeza, não temos nem 15 mil corridas. O pior é que a mesma Ticket Sports divulgou que teriam acontecido 1.421 corridas no Brasil em 2023 e agora multiplicou por 100!!!
Tomando como referência o principal site com calendário de provas no Brasil, o excelente www.corridasbr.com.br, são quase 5 mil por todo o país durante o ano. Como alguns têm mais de uma distância envolvida, pode-se até chegar a 15 mil corridas, ou seja, seriam em torno de 15 mil competições dentro de aproximadamente 5 mil eventos.
Voltando ao início deste post-provocação, é impossível levar a sério os 13 milhões de corredores da Ticket Sports. Somos 220 milhões de habitantes, mas adultos (segundo o IBGE) são 60%, portanto 130 milhões. Segundo então aquela “pesquisa”, 1 em cada 10 brasileiros adultos participaria de corridas pelo Brasil. Simplesmente absurdo!
RESUMO DA ÓPERA – Temos efetivamente no Brasil um enorme contingente de pessoas que têm por hábito correr, o que é uma notícia super auspiciosa, pois estão cuidando da saúde física e mental. Mas apesar de correrem com mais ou menos frequência, poucos se animam a se inscrever nas provas, pelas mais diversas razões, como também acontece no exterior. Eu, por exemplo, corro 3 vezes por semana, mas raramente me inscrevo em corridas, e tendo a zerar essa opção.
Assim, participantes em corridas pelo país devem ser mesmo mais de 1 milhão (ou 1,3 milhão para fechar a nossa conta), portanto 1% de nossa população adulta, e não 10%. Há 30 anos, as corridas de rua no Brasil eram um lixo, pequenas e poucas. Com o surgimento da revista Contra-Relógio, em 1993, tendo como bandeira valorizar os corredores, suas críticas às desorganizadas provas fizeram com que, aos poucos, elas passassem a respeitar os participantes. O resultado foi o ingresso de gente de maior renda, o crescimento das provas, surgimento de empresas, de treinadores e de equipes.
Mas mesmo com essa melhora promovida pela CR, a credibilidade dos números exagerados divulgados pelos organizadores era bem baixa, o que atualmente está sob controle, pela transparência exigida pela sociedade, apesar de ainda se falar em inscritos (que não se consegue checar) e não em concluintes.
Agora, com a divulgação dos 13 milhões de corredores e 150 mil corridas, a Ticket Sports está fazendo um desserviço ao setor, ao trazer de volta essa época de pouca seriedade. É um verdadeiro retrocesso, que acaba respingando para os organizadores, ao perderem argumentos quando vão apresentar seus números aos possíveis patrocinadores e apoiadores dos eventos.
E para piorar ainda mais, “notícias” como essas acabam sendo consideradas como verdade e se multiplicam pelas redes sociais, inclusive sendo publicadas em sites e mídias impressas, sem ninguém colocar em dúvida a veracidade da informação, praga que assola o mundo e que tem poder até maior do que muitas epidemias.
Tomaz Lourenço é jornalista, 77 anos; lançou a revista Contra-Relógio em outubro de 1993, sendo seu editor até a última edição em abril de 2021. Correu mais de 60 maratonas no Brasil e exterior, além de 2 Comrades; seu recorde nos 42 km foi ao estrear na distância, em Blumenau 1992, com 3h04. Contato: tomazloureno1947@gmail.com