Especial admin 12 de outubro de 2014 (0) (263)

1ª Maratona Atlântica Boavista a popularização das corridas no Brasil

Apesar de ser simbólica, a Maratona Atlântica Boavista não foi a primeira disputa brasileira nos 42 km. Sequer a primeira no Rio de Janeiro. Historicamente, em 1975, houve uma competição com a mesma distância na cidade maravilhosa realizada internamente para o campeonato Sul-Americano de Atletismo, vencida por Brígido Ferreira.
Em 1976, surgiu a 1ª Maratona Cidade de Belo Horizonte, organizada pela Federação Mineira de Atletismo, com a participação de 20 atletas. Experiência que se repetiu em 1979. Por mais que se coloque em dúvida a validade e a precisão do percurso de tais eventos, não se deve desconsiderar que foram tentativas de implementar a modalidade no Brasil, que vivia de algumas poucas corridas de rua de curtas distâncias e da famosa São Silvestre, em São Paulo.
Em 1979, aconteceu a 1ª Maratona Internacional do Rio de Janeiro, organizada pela Printer. Essa empresa tinha sido criada no ano anterior por uma brasileira radicada nos EUA, a atleta Eleonora Mendonça (primeira brasileira a correr uma maratona olímpica, em 1984), um jornalista americano que morava no Brasil, Yllen Kerr, e Paulo César Teixeira, esportista e administrador de empresa.
No dia 29 de julho de 1979, com saída e chegada na Escola de Educação Física do Exército, 94 corredores completavam a primeira grande prova da Printer. Mas ainda faltava divulgação, recursos financeiros e alguns acertos de organização. Em setembro de 1980, a Printer organizou a 2ª Maratona Internacional do Rio de Janeiro, agora com mais de 700 inscritos. O público também apareceu, dando palavras de incentivo, refrescavam os atletas com mangueira d'água, gelo, ou serviam refrigerante. Apesar disso, houve a identificação de erros organizacionais, como congestionamentos nos primeiros postos de água e ausência de fiscais de percurso em alguns pontos-chave, que permitiram a vários corredores cortar caminho durante o trajeto.
É indiscutível a importância da Printer na tentativa de popularização das maratonas no Brasil, porém já em 1980 ela era superada pela divulgação em massa da 1ª Maratona Atlântica Boavista pelo Jornal do Brasil e seu maior profeta, José Inácio Werneck, e pelos recursos financeiros que esta competição conseguiu de uma empresa de seguros como patrocinadora oficial (Atlântica Boavista, que é a atual Bradesco Seguros). O aumento de custos e a falta de patrocinadores fizeram com que a prova organizada pela Printer fosse minguando de participantes até meados da década dos anos 1980, quando deixa de existir.

PADRÃO INTERNACIONAL. Se não foi a primeira brasileira – e as maratonas da Printer já esboçavam a massificação da prática da corrida -, qual a importância da Maratona Atlântica Boavista em 1980? Justamente por ela dar visibilidade à corrida como evento midiático, tornando-se um dos maiores do país, só perdendo para a tradicional São Silvestre. Isso inicia um processo de identificação do público com o esporte, que começa a praticá-lo.
Como se fosse uma grande religião, o running no Brasil tinha seu apóstolo na década de 1980: o jornalista e esportista José Inácio Werneck. Ele possuía uma coluna no Jornal do Brasil intitulada "Campo Neutro", a qual também abria espaço para divulgar resultados de provas de ruas, informar sobre novas competições e até mesmo analisar o cenário do atletismo da época.
Bem no início de 1980, Werneck, convencera o vice-presidente executivo do Jornal do Brasil, José Antônio do Nascimento Brito, e o presidente do Grupo Atlântica Boa Vista, Antônio Carlos de Almeida Braga, a darem suporte técnico-financeiro para a organização de uma maratona no Rio de Janeiro que tivesse padrão internacional. Em fevereiro, Werneck já anuncia em sua coluna que irá realizar uma disputa do gênero, que tinha dia e hora: sábado, 15 de novembro de 1980, às 17 horas. Em maio, a competição ganha seu nome oficial "1ª Maratona Atlântica Boavista / Jornal do Brasil". Anos depois, a disputa se chamaria Maratona Bradesco / Jornal do Brasil.
O percurso também não era um problema; já estava delimitado. Saía do Forte do Leme em direção ao Aeroporto Santos Dumont, retornava à Orla, seguia por Copacabana, Ipanema e Leblon, dava a volta completa na Lagoa e voltava, enfim, do Leblon até o Forte do Leme. Um itinerário bem bonito, porém que mais tarde perceberia que dava um nó no trânsito da cidade. Ao longo da década de 1980, vários outros percursos foram utilizados, inclusive um raro, de 1986, que saía de Niterói, passava pela Ponte Rio-Niterói, ia até o Leblon e depois voltava até o Forte do Leme.
O assunto, a partir de maio de 1980, tornou-se constante nas páginas do periódico carioca, e a tecla de que seria uma prova diferenciada, de padrão internacional, e com avanços tecnológicos inéditos no país era sempre a mais tocada. A Burroughs Corporation instalaria no Forte do Leme um terminal de teleprocessamento de informações transdacta da Embratel, otimizando a computação dos resultados. Realmente, no dia 17 de novembro, todos os participantes viam orgulhosamente seus tempos estampados nas folhas do Jornal do Brasil. A classificação foi divulgada por faixa etária e sexo.
Divulgavam que o evento seria realizado dentro das melhores condições de segurança e de saúde. Para isso, tinha o apoio da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e da Federação de Atletismo do Rio de Janeiro (FARJ) na medição do percurso, do Detran na logística e no fechamento das ruas no dia do evento, e até do Ministério da Defesa, para garantir a integridade física dos atletas. Além disso, quatro postos de saúde ao longo do trajeto seriam montados e haveria postos de hidratação a cada 5 km.

SAÚDE E 15 ANOS… Aliado a todo um discurso nas linhas da coluna "Campo Neutro" sobre a necessidade de se treinar corretamente para um longo percurso e procurar fazer todos os exames de rotina antes de aventurarem-se na preparação para os 42,195 km, os organizadores queriam demonstrar que seria um evento que iria garantir a saúde de seus praticantes. Mas, ao mesmo tempo, enxergavam que a maratona era um compromisso com a futura geração de atletas e, por isso, dentro das regras internacionais e com o aval do presidente da CBAt e do diretor-médico da prova, a idade mínima para se inscrever foi de apenas 15 anos.
As inscrições para a Atlântica Boavista / Jornal do Brasil abriram em final de junho de 1980. Custavam apenas 100 cruzeiros e podiam ser feitas nas agências de classificados do Jornal do Brasil, nos bairros do Leblon, Copacabana, Centro, Tijuca, Madureira e Niterói e nas sucursais em São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Belo Horizonte e Recife.
A premiação agradava a elite e aos amadores: haveria bonificação por categoria para ambos os sexos e por equipes. E os melhores brasileiros ganhariam a inscrição para a Maratona de Honolulu e 52 mil cruzeiros para cobrir as despesas. Os inscritos receberiam uma camisa e um número de peito, que deveriam usar durante o trajeto e ainda uma outra, quando completasse o percurso. Não haveria tempo-limite para o fim da prova, mas a entrega dos prêmios se daria às 21h30.
Para manter o padrão de qualidade, a organização limitou o número de inscrições a mil participantes. Mas logo se esgotaram as inscrições: em setembro já não havia mais vagas. E faixa etária com mais participante era a que hoje é a menor: 15 a 24 anos, com 451 inscritos; 42 mulheres se inscreveram e a maior faixa etária feminina cadastrada era de 20 a 29 anos, com 24 atletas. NR: a idade mínima para participação em maratonas hoje é 18 anos.
Informalmente, José Inácio Werneck combinava os "treinões"com seus leitores através da sua coluna. Ele dizia a hora, o local do evento e a distância. Em geral realizavam no itinerário que seria a maratona ou na região das Paineiras, na Floresta da Tijuca, com a participação de atletas de elite. Foram mais de 30 "treinões", que chegavam a reunir mais de 200 pessoas, inclusive de gente de fora do Rio.

ELITE ESTRANGEIRA. Desde o lançamento do evento, que o lançava inúmeras especulações sobre quem iria participar. Fazendo a leitura de suas páginas nessa época até o dia do evento, há uma diversidade de atletas escalados: desde o campeão olímpico Frank Shorter, passando pelo vencedor da São Silvestre de 1979, Herb Lindsey, Leonid Moyseyev (terceiro colocado no ranking mundial), Joan Benoit-Samuelson, Greg Meyer, Bill Rodgers, entre outros. Até Rosie Ruiz, famosa naquele ano ter sido eliminada da maratona de Boston por cortar o caminho, seria convidada a fim de elucidar se teria ou não condições de competir entre as melhores corredoras do mundo.
No final das contas e de muito barulho, só vieram o americano Greg Meyer, a norueguesa Sissel Grottemerg e a neozelandesa Lorraine Müller. Bill Rodgers não pôde comparecer, na última hora. Provavelmente, o desgaste da Maratona de Nova York, ocorrida três semanas antes, o fez desistir da prova no Rio. Porém, Bill escreve uma carta de desculpas públicas pelo não comparecimento e pede para ser convidado no ano seguinte. Veio e ganhou…
Outra novidade na competição foi a criação de simpósios sobre maratona, com a exibição de filmes das grandes disputas do exterior, além de palestra com Greg Meyer e o ex-atleta inglês Derek Clayton, primeiro maratonista a correr abaixo de 2h10, e então detentor do recorde mundial, com 2:08:34. Essas "clínicas" aconteceram no auditório da Atlântica Boavista na Avenida Paulista e no Rio Othon Palace Hotel no Rio de Janeiro.
Assim, Greg Meyer acordou calmamente às 11h da manhã do dia 15, comeu sua omelete de queijo e depois só esperou pela prova. Não precisou se deslocar muito para a largada. Não estava quente para um carioca, já que os termômetros informavam 20 graus. Contudo, a umidade é que mais debilita o atleta, e ela no dia estava bem alta.

TRÂNSITO NO PERCURSO. Dada a largada, Greg viu que havia um trio brasileiro num ritmo muito forte: Edson Bergara, Carlos Alberto Alves e João Alves de Souza, o Passarinho, que entraram com a estratégia de puxar o ritmo para ver se quebravam o americano Don Kardong e o próprio Greg Meyer. Este sabia que era um teste de paciência: bastava se manter não muito distante e esperar que o pelotão da frente logo se desfizesse. Ao contrário do que se anunciou, havia muitos carros e ciclistas ao lado dos corredores, afunilando as avenidas.
Greg Meyer iniciou a reação na avenida Vieira Souto, em Ipanema, ultrapassando o pelotão já no início da Lagoa. Por volta das 19 horas, o americano abriu caminho pela Avenida Atlântica e chega primeiro no Forte do Leme com 2:16:40. Seis minutos depois, uma festa ainda maior é vista pela Orla do Rio: vem Edson Bergara, o primeiro brasileiro. O "Audaz", como era chamado, quase viveu uma tragédia: faltando 8 km, na altura do Leblon, abaixou-se para amarrar o tênis e foi levemente atropelado por carro que passava perigosamente por perto, acompanhando o evento. Machucou-se acima do joelho esquerdo, mas conseguiu chegar em segundo geral, com 2:22:43.
Entre as mulheres, a norueguesa Lorraine Muller venceu com o tempo de 2h39. Apesar de tentar esboçar elogios à prova, repetidamente falava que sofreu com o calor e a umidade. Mas no ano seguinte estava de volta para conquistar o bicampeonato. Digna de nota é a estreia da conhecida atleta e técnica brasileira Eliane Reinert nos 42 km, com o tempo de 3:13:44. Tanto ela quanto Edson Bergara foram correr a Maratona de Honolulu, no Havaí, três semanas depois, como prêmio pela Maratona do Rio.
Todos os atletas falaram de como era bonito se correr no Rio, contudo, não esperavam um clima pouco propício para atividade. Décadas depois, o próprio José Inácio Werneck, que hoje mora nos EUA, afirmara que o clima era o maior empecilho da época para tornar a edição carioca tão desejada quanto Berlim, Boston, Nova York, entre outras. Bill Rodgers, em entrevista ao autor desta seção em 2013, foi bem sincero ao dizer que, em termos de dificuldade, "se você correu no Rio, você consegue correr em qualquer outro lugar do mundo".
Apesar do clima, a prova cresceu a cada ano: dos 584 concluintes de 1980, passaram para 1.785 em 1981. Em 1982 foram 3.496 participantes e em 1983 os inscritos chegaram a 6.782. Em função desse sucesso, várias cidades começaram a criar suas próprias maratonas. Dirigentes do atletismo diziam no início daquela década que a corrida era um esporte que o brasileiro ainda não tinha descoberto. Se eles estavam certos, o quadro mudou já no início dos anos 1980. E o maior exemplo disso foi a capa da revista Veja, de 4 de agosto de 1982, que decretava: "Maratona! O esporte das grandes cidades". Matéria de capa falando do fascínio pela grande prova do Rio de Janeiro!

Por que quase 7 mil há 30 anos?

Quando se sabe que no Brasil a maior maratona, a do Rio, teve no ano passado 4.019 concluintes, fica-se sem entender como em 1983 os números da prova carioca chegaram perto dos 7 mil. Enfim, a população do país era quase a metade do que é hoje e as corridas de rua não tinham a importância atual, nem participação expressiva.
Com base no que ouvi desde o lançamento da CR, em 1993, a provável principal explicação para o fenômeno Maratona do Rio nos anos 80 seria que era a mais bem organizada no Brasil, nos moldes do que acontecia de melhor lá fora. E isso em um país com poucas corridas, em sua absoluta maioria com péssima estrutura e pior ainda o suporte dado aos corredores, inclusive a nossa mais famosa corrida, a São Silvestre paulistana.
Então, conforme comentários de corredores "daquela época", se a pessoa quisesse correr uma prova bem organizada, só havia uma opção: os 42 km do Rio! E como só se oferecia uma distância, as pessoas se preparavam para esse desafio. Tanto isso parece verdade que, conforme iam surgindo boas competições de menor trajeto, nos anos 90, a maratona carioca (com novas organizações, por vezes falhas e com menos recursos) e outras similares foram se esvaziando.
A "concorrência" de excelentes disputas curtas e mesmo a proliferação de meias tornaram os 42 km algo desejado por poucos, ainda mais nesta fase atual das corridas no mundo e especialmente no Brasil, em que predominam atletas que não querem se dedicar com afinco aos treinamentos, mas apenas participar recreativamente, em busca de saúde, confraternização e turismo esportivo.
(Tomaz Lourenço)

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