Performance e Saúde admin 10 de março de 2015 (0) (447)

Uma maratona em menos de 2 horas?

Poucos dias após a prova alemã, o britânico de origem somali Mo Farah, atual campeão olímpico dos 5.000 e 10.000 metros, disse em uma entrevista que pretendia ser o primeiro homem a baixar de 2 horas na maratona. Mo Farah possui um pedigree inquestionável, e quando diz que irá buscar uma marca merece ser respeitado, ainda que o objetivo em questão pareça ambicioso demais.
Os britânicos, no entanto, levaram a sério a declaração: nomes como Sebastian Coe e Sir Roger Bannister, este último o primeiro a completar uma milha em menos de quatro minutos (outra marca que na época se julgava impossível de atingir), saíram em suporte às declarações do atleta. Apesar do apoio de peso, é grande o ceticismo com relação às chances reais de Mo Farah – ou de qualquer outro corredor da atualidade – de atingir o feito. Existem diferentes pontos que são considerados "gargalos" na performance de um atleta para a maratona; para se entender por que se considera uma maratona sub 2 horas um feito "impossível", é preciso analisar cada um deles.

O PROBLEMA DA VELOCIDADE. Todas as distâncias no atletismo são interligadas. Isso quer dizer que para se correr uma maratona forte, é preciso ter uma boa meia-maratona. Para uma boa meia, é preciso ser um bom corredor de 10 km, e assim por diante. Apesar de aparentemente óbvia, esta relação entre as distâncias possui implicações que às vezes nos passam despercebidas, principalmente em casos como estes, nos quais se pensa em incrementos de performance somente nas distâncias mais longas, sem considerar em quanto a performance teria que aumentar em provas mais curtas para tornar o feito "possível".
Por exemplo, analisando-se a performance de 8 dos 10 melhores tempos de maratona de toda a história (veja o gráfico), percebe-se que todos os corredores apresentam uma "quebra" de ritmo entre 3,11 e 5,36% da velocidade de meia para a maratona completa. Considerando-se que o corredor que venha a quebrar a barreira das 2 horas seja um corredor excepcional, com uma queda de ritmo de apenas 3% (ainda melhor do que o melhor da atualidade), ele irá precisar ser também o recordista mundial da meia-maratona, baixando dos atuais 58:23 para 58:11, pelo menos. Se esse novo corredor, no entanto, tiver a capacidade "média" dos 10 maratonistas mais rápidos da história, ele precisará correr a meia-maratona em 57:18 para estar apto a baixar de duas horas na maratona!

O PROBLEMA ENERGÉTICO. Para aumentar a velocidade até os níveis requeridos para uma maratona sub 2h, é preciso gerar mais energia de forma aeróbica para suprir a demanda muscular. Existem três variáveis básicas que ditam a velocidade de corrida aeróbica do ponto de vista energético: o consumo máximo de oxigênio (VO2max), a fração de utilização de consumo máximo durante a prova e o custo energético (economia de movimento) de cada corredor.
Há não muito tempo, ainda era possível que um corredor fosse "deficiente" em relação aos demais em uma destas variáveis, desde que compensasse isso sendo muito melhor do que a média em uma ou nas outras duas. Por exemplo, um corredor com VO2max mais baixo que outro poderia nivelar a briga se conseguisse permanecer a prova inteira em um percentual mais alto deste valor do que um corredor de VO2max mais alto. Atualmente, contudo, corredores de elite são excepcionais nas três variáveis, e os níveis energéticos requeridos para correr uma maratona em menos de 2 horas ainda não foram vistos em nenhum corredor, independente da combinação utilizada entre as três variáveis.

O PROBLEMA DA TEMPERATURA. Por gastar mais energia, correr em velocidade mais alta também gera mais calor. Este é um limitador importante porque o organismo possui um pico de temperatura tolerável durante o exercício, por volta de 40 °C. Assim, os corredores de elite precisam ter, além de uma excelente economia de movimento (para gastar menos energia numa velocidade e produzir menos calor), uma excelente capacidade de perda de calor. Como conseguir isso?
Uma das variáveis mais importantes aqui é a superfície corporal com relação à massa corporal. Pense numa carta de baralho. A carta é praticamente "só" área de superfície para troca de calor com o meio. Agora pense num baralho inteiro: o "miolo" do baralho representa uma adição significativa sendo que a superfície de contato com o meio externo quase não se altera, tornando um baralho inteiro muito menos eficiente em trocar calor com o meio externo do que uma carta única. O problema é que apesar de os corredores de elite atuais já possuírem biotipos extremamente adaptados à corrida de fundo, eles já encerram as maratonas muito próximos da temperatura máxima tolerável pelo organismo, sobrando pouco espaço para correr a prova em velocidades muito mais altas. Novas estratégias de pré-resfriamento, por exemplo, podem ser a resposta aqui.

O PROBLEMA DO TRAJETO E DOS ADVERSÁRIOS. Não bastassem todas as dificuldades puramente "internas", existe ainda uma gama de questões externas ao corredor que têm um papel definitivo sobre as possibilidades de se atingir um recorde mundial na maratona (ainda mais sub 2h!). A temperatura do dia é um fator importantíssimo, por exemplo, pois irá afetar diretamente a perda de calor do atleta, como vimos anteriormente. Somente a questão da temperatura ideal já reduz drasticamente a quantidade de provas que são propícias a quebras de recordes. Além disso, questões como a altimetria e quantidade de curvas do percurso também são importantes, reduzindo ainda mais as provas "aptas" a tentativas de recorde. Não por acaso, as três melhores marcas históricas da maratona foram obtidas em Berlim, no outono alemão.
Além dos problemas da prova em si, temos ainda os outros competidores: qualquer corredor sabe que correr com alguém do lado é mais fácil. Tanto psicologicamente quanto fisiologicamente (ter alguém logo à frente reduz a força do vento), um grupo de corredores à volta permite uma prova mais forte. Porém, quando se fala na elite mundial da corrida, são muito poucos os organizadores que possuem dinheiro o suficiente para atrair um pelotão inteiro de corredores com chances reais de quebrar um recorde mundial.
A maratona é uma das distâncias que vêm tendo seu recorde mundial melhorado com mais frequência nos últimos tempos. Esta melhora, no entanto, parece ser mais uma mudança de mentalidade dos corredores com relação à prova (que talvez tenha começado com a maratona de Samuel Wanjiru em Pequim 2008, para quem lembra), do que uma mudança no gabarito dos corredores. Com isso, novas quebras de recorde com certeza são uma possibilidade real, com alguns segundos ganhos por melhoras na distribuição do ritmo, ou em função de um dia de temperaturas e ventos perfeitos. Fisiologicamente, no entanto, será preciso um "salto", de origem ainda desconhecida, para que algum corredor possa sonhar com a maratona sub 2h. Ou quem sabe Mo Farah tenha a receita.

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