20 de setembro de 2024

Contato

Releitura Redação 31 de dezembro de 2018 (0) (141)

Um revezamento de 506 km do Chile à Argentina, pelos Andes

A 16ª edição da Cruce de Los Andes aconteceu nos dias 2 a 4 de fevereiro. A largada foi na cidade de La Serena, no Chile, ao lado do Oceano Pacífico, cruzou toda a Cordilheira dos Andes e chegou na cidade de San Juan na Argentina. Um revezamento de 12 corredores, cada um fazendo em torno de 42 km com alto grau de dificuldade, inclusive em região com ar rarefeito. Pela primeira vez uma equipe brasileira participou desse desafio, sofreu muito, mas completou. Veja aqui o relato dessa epopéia, pelo organizador da Volta à Ilha.

 

Fiquei sabendo da prova no ano passado, ao ler o relato (na Contra-Relógio de abril) de Elisete Pereira, de Curitiba, que correu em 2006 com uma equipe formada somente por mulheres da Argentina e Uruguai. Me propus a encarar este grande desafio de participar da prova e já no primeiro semestre comecei a divulgar que estava organizando uma equipe do Brasil.

Aos poucos foram aparecendo pessoas interessadas em participar e formamos a Equipe Brasil 1 com os seguintes corredores: Paulo Sobrinho (Niterói); Giovani Rinaldo, Paulo Borges, Nilton Ferreira e Carlos Guimarães (São Paulo); João Javera (Marilia), João Prestes e Tim Tollemache (Curitiba), Márcio Gava (Joinville), Carlos Duarte (Florianópolis), Luiz Boesel (Santa Cruz do Sul) e William Wiltgen (Novo Hamburgo). Portanto, nossa equipe tinha uma boa representatividade do país.

Todos já havia feito pelo menos uma maratona e ficariam responsáveia pelos custos de sua viagem. Depois de muito acerto, perguntas sobre a prova, preocupação com a altitude de 4722 m que atingiríamos nas Cordilheiras, fizemos a escalação da equipe. Nenhum tinha experiência com atividade em altitudes tão grande. Então a decisão foi colocar os melhores corredores nos percursos mais difíceis.

O pior era o percurso 6, com inicio a 3870 m, subindo até 4722 e terminando a 4290 m. O João Javera foi o “eleito” a enfrentar essa etapa, e a seguinte, que iniciava a 4290 e terminava na altitude de 2840 m, eu me propus a correr, pensando “para baixo todo santo ajuda”. Por essa razão, fiz muitos treinos em descidas, pois sabia que precisava acostumar a musculatura.

 

A estrutura em San Juan

No dia 29 viajamos (Paulo Sobrinho, Márcio Gava e eu) para a Argentina, chegando em San Juan no dia 30/01. Nesta cidade fica a organização do evento e seria o local da chegada. Nos anos pares a prova começa em San Juan e termina em La Serena e nos anos impares acontece o inverso. Fomos para o ginásio de esporte, onde estariam alojados os corredores. Ao chegar havia alguns atletas da Argentina. Um deles disse que estava de saída para a Cordilheira para se aclimatar melhor e perguntou se os nossos corredores dos percursos mais altos tinham ido também. Dissemos que não, inclusive um deles era eu. Foi o primeiro friozinho na barriga de preocupação com a altitude.

No dia seguinte chegaram mais sete de nossa equipe e não quiseram ficar no alojamento, pois estava muito apertado e foram para um hotel. Ainda faltavam dois da equipe, que por motivo de trabalho chegariam depois. O Tim no dia seguinte e o Luiz Boesel dia 2/2, quando a prova já estaria acontecendo. À tarde fizemos algumas compras de comida para os dias da prova e no fim do dia aconteceu um reunião com todos os atletas e entrega do kit, que compreendia apenas o números dos corredores.

Conversando com os organizadores sobre a questão da aclimatização na Cordilheira foi nos dito que para a maioria, os dois dias que estaríamos lá trariam os benefícios mínimos, mas que o ideal seria chegar bem antes. No dia 1, logo cedo, estávamos todos em frente ao ginásio de esportes, aguardando as vans e micro-ônibus para nos levar ao percurso. Seriamos divididos em quatro grupos: quem iria correr as três primeiras etapas seguiria para La Serena, local da largada; quem correria as etapas 4, 5 e 6 iria para a aduana chilena, e os da 7 e 8 para a aduana argentina; já os das fases 9, 10 e 11 para a cidade de Iglesia e quem corria o último percurso ficaria em San Juan.

Algumas horas antes de cada etapa todos seriam levados ao seu local de largada. Quem partiu para o Chile (506 km de distância) foi “premiado” com um ônibus dos anos 1950, que andava a 50 km por hora no plano; imagina subir toda a Cordilheira. Para encurtar a conversa, demoraram 16 horas de viagem. Todos alojamentos eram precários, tivemos de comprar nossa alimentação e cozinhar. Alguns eram realmente muito ruins, locais sujos, banheiros ainda piores. Creio ter sido uma das grandes falhas da organização. Todos atletas também reclamaram (com razão) de não ter uma camiseta do evento.

Eu fiquei na aduana argentina (3000m de altitude), onde havia alguns corredores que estavam lá há uma semana se aclimatando. Nos primeiros momentos senti uma pequena dor de cabeça, que no dia seguinte passou e deu para fazer um trote de uns 5 km. O clima estava ameno, com sol e céu azul na parte da manhã e uma pequena chuva à tarde. Nos cumes das montanhas, um pouco mais acima podíamos ver que havia caído neve. Vale lembrar que eram 10 equipes, sendo o primeiro ano com a presença de brasileiros e uruguaios. Sempre a dinâmica da prova foi de dar a largada quando o primeiro corredor de umas das equipes chegava. As demais equipes teriam mais 3 horas para completar cada etapa. Portanto quando um atleta saía para iniciar sua etapa, não sabia como tinha ido seu companheiro de equipe.

 

Começa o duro desafio

No dia 2 de fevereiro, na cidade de La Serena, no Chile, em uma praia do Oceano Pacifico, uma cerimônia, com discurso do cônsul do Uruguai e da Argentina, além do prefeito local, antecedeu a largada. Os corredores da Equipe Brasil 1 sentiram-se como de uma seleção, pois as crianças e adultos locais queriam tirar fotos ao lado dos “brasilenhos”. Nós somos muito queridos no Chile, principalmente com a camiseta verde-amarela. A prova começou um pouco depois das 18 horas e nosso corredor foi o Giovani, que não havia se recuperado 100% das bolhas que tinha adquirido nos seus treinos no Brasil. Acabou com mais algumas bolhas, mas completou seus 42 km sem grandes problemas.

O percurso seguinte foi feito pelo Willian, que terminou em segundo lugar na sua etapa, apenas 3 minutos depois do primeiro. Quem correu o terceiro percurso foi o Paulo Borges, já altas horas da noite, com uma lua cheia, montanhas dos dois lados da estrada e o rio ao lado. Ele disse que foi uma emoção muito grande aquela solidão da noite, vendo ao longe algumas estrelas cadentes.

Já no percurso quatro, quem correu foi o Márcio, nas primeiras horas da manhã e com as subidas mais fortes e já enfrentando a Cordilheira. Fez uma boa prova, completando em 4h09. Para a 5ª etapa quem encarou os Andes foi o João Prestes. Soube administrar as longas subidas, na altitude de 2780 m a 3970 m, caminhando nos últimos km que eram mais difíceis, completando a prova em 5h45 (lembrando que ele tem 3h30 em percurso “normal”).

 

O “mal da montanha” ataca

Agora vinha o percurso mais difícil, com largada nas primeiras horas da tarde, numa altitude de 3970 m, subindo por 30 km até 4722 m e depois descendo até 4390 m. Todos estavam nervosos, se agasalhando e preparando para o topo da Cordilheira, onde geralmente faz frio, apesar de ser verão e também venta muito. O João Javera não queria se agasalhar, pois onde ia largar não estava muito frio, mas o Marcio insistiu para ele levar uma luva e um gorro, além de deixar uma blusa na altura do km 25 para ele vestir se sentisse frio.

O João partiu para seu desafio e apesar de já ter corrido 68 maratonas, esta sem dúvida seria a mais difícil. Na altura do km 10 “atacou o mal da montanha”, sentindo uma dor de cabeça muito forte, pernas pesadas e as forças indo embora. Praticamente caminhou todo o restante. Quando o carro de apoio, onde estavam os outros corredores, o ultrapassou, estava caminhando, já um pouco desorientado e sem forças para levantar o braço e saudar os colegas. Neste momento ainda estava no km 25. A descrição do João é que nos km finais não tinha forças nem para pegar a água nos postos de abastecimento. Abandonou até o porta garrafinha que transportava na cintura, pois “pesava”. Chegou com mais de 7 horas, em último lugar, 3 minutos depois do tempo regulamentar, tonto, gelado de frio. Foi realmente um guerreiro e até meio “louco” em achar forças para completar no topo da Cordilheira dos Andes uma maratona.

Eu (Carlos Duarte) cumpri a próxima etapa. Chegamos no local uma hora antes da largada. Fazia um pouco de frio, com rajadas fortes de vento. Peguei um termômetro que trazia comigo e verifiquei que fazia 12º no sol e 10º na sombra. Era uma temperatura agradável para correr e nas horas seguintes estaria em altitude menor, portanto a temperatura deveria ficar boa. Já eram 18 horas, fazia sol e permaneceria até às 21 horas. Mesmo calculando que deveria fazer os últimos km à noite não estaria muito frio. Então sai de shorts, camiseta de manga comprida e luva. Não senti calor nem frio no percurso.

 

Chega “el terrible”, sorrindo…

Ficamos aguardando o primeiro do percurso anterior chegar para começarmos. Alguém chega de carro e diz que ele está a uns 2 km. Mais um pouco ele aponta em uma curva e lá estava vindo o Ivan Ávila, corredor que detinha os recordes dos percursos mais difíceis na Cordilheira. Ele esteve no mesmo alojamento que eu por 2 dias e tive oportunidade de conversar com ele. Geralmente ficava uma semana antes se aclimatando e teve um ano que ficou 20 dias naquele fim de mundo, rodeado por pedras e mais pedras. Perguntei como conseguia ficar ali isolado e ele disse que é bom de vez em quanto fugir da cidade, do celular etc. Este era Ivan “el terrilble” que acabava de completar o percurso mais difícil de camiseta regata, sorrindo, como estivesse fazendo um trote. Fez em 3h50, 1h18(!) na frente do segundo colocado e isto porque não havia se aclimatado este ano…

Voltando à minha etapa, saímos sem muita pressa, inclusive “liderei” no primeiro km, depois chegou o atleta da equipe chilena e o de uma argentina. O vento estava nas costas, a descida era suave e apesar da estrada ser de cascalho, mantive meu ritmo que parecia confortável. Passei no primeiro posto de água (km5), com 23:40, estava mais rápido do que planejava, mas me sentia bem. O vento nas costas e a descida suave me empurravam Cordilheira abaixo. Sentia a garganta muito seca no intervalo entre um posto de abastecimento e outro.

Continuava em terceiro lugar, correndo sozinho naquela imensidão. Nas curvas, olhava para cima e via ao longe o outro atleta e queria que ele me alcançasse, para fazer companhia. Assim permaneci até o km 30. Então as penas começaram a pesar. O atleta que estava em quarto lugar me alcançou, não consegui acompanhar e assim foi acontecendo com os outros. Nos últimos km tive de caminhar pela primeira vez em uma maratona. Ainda faltavam 5 km, depois 2 e nunca chegava. Neste momento me alcançou o Patrício, que ficou no mesmo alojamento comigo. Me deu uma força, dizendo que o final seria na próxima curva. Já era noite e as curvas passavam e nada da chegada. Disse para ele ir, que terminaria caminhando, mas ele ficou comigo até o final. Chegamos em 4h30.

As pernas estavam “mortas”, parecendo que não havia treinado nada, que não tinha feito nenhum treino de descida. Para subir na van e colocar um agasalho foi um sacrifício. Logo chegou o micro ônibus com os corredores que haviam feito os percursos anteriores. Fui conversar rapidamente com eles, e o João Javera me disse: “quase morri”. Anda brinquei, dizendo que ele estava bem vivo, mas não sabia dos detalhes do esforço que tinha feito para completar sua parte. Neste momento o Carlos Guimarães já havia partido para fazer a etapa 8. Era noite, lua cheia. Ultrapassamos ele de van em tono dos 25 km e ele estava bem. Aguardamos em Iglesia, cidade pequena, no meio do nada. Lá encontramos os corredores que esperavam para fazer os próximos percursos.

 

Desmaio na chegada e no percuso

O Carlos chegou e disse que somente completou sua etapa, porque era uma prova em equipe, pois estava morto. Nesta hora o Nilton já havia partido para cumprir a etapa 9, com 30 km de subida suave. Já era dia quando o Luiz Boesel começou o percurso 10, com subidas e descidas. Ele havia chegado no inicio da noite de viagem, não dormiu, apenas uns cochilos na van. Com todo este cansaço terminou sua etapa, mas desmaiou na chegada. Foi colocado na ambulância e levado ao hospital de San Juan, mas nada de grave.

A próxima etapa foi para o Paulo Sobrinho, carioca acostumado ao calor. Também praticamente não dormiu a noite, chegou de van na madrugada e somente foi começar a correr às 8 horas da manhã, quando o sol mostrava sua cara. Segundo ele, a cada momento sentia que estava correndo num caldeirão e com o diabo apertando um maçarico na sua cabeça, no meio do nada, onde somente haviam pedras e uns resistentes arbustos. Ao chegar no km 33, onde tinha um posto de água, parou para sentar numa pedra, na sombra de uma única árvore. Desmaiou e foi apoiado por uma moça do grupo de apoio. Logo chegou a ambulância e o médico o levou para dentro, dizendo que deveria abandonar a prova. Ele resistiu e disse que caminhando chegaria, pois faltavam apenas 9 km. Depois de algum tempo, o médico concordou e foi acompanhando ao seu lado, fazendo perguntas, testando seu raciocínio e depois de 1 km o liberou.

Nesta hora o Tim estava cumprindo a última etapa da prova, num calor infernal, próximo de meio-dia. O restante da equipe estava em San Juan aguardando na chegada. Ficávamos comentando que o Tim não conseguiria completar, pois fazia um calor de 40ºC e era possível ficar somente na sombra. Ele estava enfrentando o sol nas estradas, sem nenhuma sombra. De repente aparece ao longe o Tim, acompanhado por um motoqueiro da polícia. Então estava vindo o último herói da Equipe Brasil 1, completando sua etapa e dando por finalizada nossa grande aventura.

Depois ficamos sabendo que nossa equipe tinho desclassificada por 3 minutos no percurso mais difícil. Isto para nós não representava muita coisa, pois todos completaram sua maratona e estávamos felizes por isto. Não teve nenhum percurso fácil, cada um com sua particularidade, todos difíceis, tanto que todos os tempos foram acima de 4 horas. Lamentamos apenas algumas falhas da organização e que com um pouco de cuidado facilitaria a todos corredores completarem este grande desafio. Quem quiser dicas sobre a prova me contate em  carlos@ecofloripa.com

 

Mais detalhes nos sites www.losandes12x42.com.ar ou www.andinomercedario.org.ar

A 17ª Cruce de los Andes será de 22 a 24 de fevereiro, de San Juan para La Serena.

 

 

 

A vitória foi da equipe argentina Viento Zonda, em 48h37.

Novamente uma equipe feminina (argentinas, uruguaias e uma brasileira, nossa assinante Elisete Pereira) esteve presente, ficando na 5ª posição geral.

Participaram 10 equipes, sendo 3 desclassificadas por razões de regulamento, inclusive a brasileira, que terminou na 9ª posição.

Veja também

Leave a comment