por Nelton Araújo
Esse mês completa 20 anos da fascinante e inesperada vitória de Ronaldo da Costa na Maratona de Berlim, com direito a recorde mundial, cambalhota e polêmicas. Conheça um pouco de sua controversa carreira e vida.
Recorde Mundial: eis o grande fetiche da maratona. Em 110 anos de homologação do primeiro – que vai desde o 2:55:18 do americano Johnny Hayes, na Maratona Olímpica de Londres de 1908, até o atual 2:02:57 (Berlim 2014) do etíope Dennis Kimetto – foram apenas 40 marcas alcançadas. O clube dos países dos vencedores é ainda menor, 11. E surpreendentemente o Brasil está nesse clube, pela façanha de um atleta que veio de uma cidadezinha de 4 mil habitantes do interior de Minas Gerais, Ronaldo da Costa.
Antes dos 16 anos, o jovem menino da cidade de Descoberto tinha sido trabalhador na roça com os pais, oleiro e soldador na prefeitura da cidade. Também quis ser jogador de futebol, mas só se fosse no Botafogo, time de sua devoção. Sem chance: o físico miúdo e seco como fio de arame lhe reservou o papel de torcedor. Sua entrada no atletismo foi feita aos 17 anos, quando, passando pela prefeitura, viu um cartaz anunciando “A 1ª Corrida Rústica de Descoberto”. Porém o que o fez se inscrever não era o desafio da corrida, mas a premiação em dinheiro e um rádio a pilha. Passou duas semanas treinando aleatoriamente e, calçando sapatilha de pano, foi segundo lugar; só perdeu para um corredor que tinha 10 anos de experiência.
Ronaldo virou a sensação da cidade. O prefeito o tirou da olaria e o liberou para treina, pagando o transporte para as competições na Zona da Mata, principalmente em Juiz de Fora, no final dos anos 1980. Os comerciantes de Descoberto lhe davam material. Mas ele treinava por ele mesmo, e sempre tinha resultados negativos nessas competições, já que disputava com atletas mais calejados. Mesmo perdendo,passou a ser reconhecido.
O próximo passo era entrar em uma equipe. Não tardou muito, pois a Pé de Vento, sob o comando do médico Henrique Viana, e conhecida em seu trabalho por formar grandes promessas, tinha olhos em todos lugares. Não demorou para que o jovem de Descoberto fosse convidado para se mudar para Juiz de Fora. Mas não seria treinado de cara pelo principal nome da Pé de Vento: ficou sob observação de Jeferson Viana, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Apenas um ano depois, o pupilo foi entregue ao Dr. Henrique, com boas recomendações.
Já em 1993, no Troféu Brasil, realizado então no saudoso Estádio Célio de Barros, no Rio de Janeiro, Ronaldo da Costa superou Valdenor de Souza, até hoje recordista da milha, e bateu o recorde brasileiro dos 5.000 m, com 13:37. Tal marca só foi superada em 2006 por Marilson Gomes (13:19).
VÁRIOS RECORDES. 1994 é considerado o melhor ano de sua carreira, revelando grande aptidão para as longas distâncias. Logo em fevereiro, na Flórida chegou ao recorde pessoal nos 15 km, com 42:41. Depois sul-americano da meia-maratona, com 1:01:03. Por fim, garantiu a medalha de bronze no Mundial de Meia-Maratona, em Oslo, com o tempo de 1:00:54. Até hoje é o único brasileiro a subir no pódio de um mundial da distância.
Porém, a imprensa de fato estampou seu nome quando derrotou uma mandinga que parecia eterna e se tornou o primeiro brasileiro a vencer a São Silvestre em quase uma década.
Recordes nos jornais, conflitos nos bastidores. Em meados de 1994, Ronaldo e Henrique Viana tinham visões de treinamento diferentes e, principalmente, havia no atleta o desejo de ampliar seus objetivos e o desejo de competir mais internacionalmente. Foi então que Ronaldinho procurou (ou foi procurado?) Luiz Alberto Cavalheiro, treinador de Robson Caetano, e, principalmente com inúmeros contatos no exterior, o que facilitaria a participação em eventos lá fora. A transição de Viana para Cavalheiro em meados de 1995 não foi muito tranquila para todos os envolvidos.
Ronaldo conquistou o bronze no Pan-Americano de Mar Del Plata, em março de 1995, já sob orientação de Cavalheiro. O técnico tinha metodologia oposta ao que pregava a Pé de Vento, bem mais intenso, porém equivalente em termos de resultados. Contudo, muito embora o nosso maratonista gostasse do método do seu atual treinador, passou a conviver com a roda gigante de bons resultados, maus resultados, e agora lesões.
Totalmente enquadrado na abordagem do novo técnico, Ronaldinho bate o recorde brasileiro dos 10 km, com 27:53 em Montevidéu. Esse tempo foi superado por um só atleta só. Um palpite de quem seja? Sim, Marilson Gomes. Porém, no mês seguinte, na São Silvestre de 1995, foi pifiamente o vigésimo lugar. Seis meses depois, na cidade americana de Richmond, bateu o recorde brasileiro nos 10.000m em pista, com 28:07. Em julho, foi um dos últimos nos 10.000m da Olimpíada de Atlanta.
ALTOS E BAIXOS. Aos 26 anos, sua vida era um turbilhão de problemas: lesão, inflamação séria nos dentes, irmã levada pela Aids, desconfiança de alguns do meio do atletismo sobre seu crescimento de rendimento. Foi tratando um a um, fora dos holofotes. Quando voltou a correr estabeleceu uma meta com Cavalheiro: bater o recorde brasileiro de maratona.
Para isso, Ronaldo da Costa correu duas vezes em Berlim seguidamente. O projeto inicial começou em 1997, com Ronaldinho focado no treino específico, e o treinador conseguiu que Ronaldinho entrasse na elite de uma das mais desejadas maratonas para atletas que buscavam tempo na época.
O atleta mineiro afirma que a primeira Berlim foi uma espécie de simulado para 1998, para saber os erros e acertos. Na época, o técnico disse que Ronaldo completaria a prova entre 2h10 a 2h09. Bingo: Ronaldo chegou na quinta colocação com 2:09:07. Mas ainda não era o recorde brasileiro de maratona.
A meta para 1998 não era apenas bater o recorde brasileiro, mas também o sul-americano. Contudo, o sarrafo estava mais alto. Até 1997, ele precisava correr abaixo de 2:08:56, que Luiz Antônio dos Santos fizera em Roterdã. Em 1998, Vanderlei Cordeiro de Lima completou a maratona de Tóquio 2:08:31 e, se não bastasse, André Luiz Ramos marcou 2:08:26 em Boston.
A MARATONA ALEMÃ. A 25ª Maratona de Berlim em 1998 teve um número recorde de 27.621 inscritos. Ficou acertado que os coelhos sairiam para 3:04/km. Nesse ritmo a prova terminaria entre 2:07:50 e 2h08. Era fraco para Ronaldinho, que, de um ano para cá, tinha pretensões de completar a prova entre 2h07 ou 2:06:30. No pior dos casos, bater o recorde brasileiro. No entanto, preferiu ir junto com os ponteiros e sentir como reagiria.
Os coelhos encerraram seus trabalhos, deixando a elite na meia maratona com 1:04:42. Estava ainda muito confortável para Ronaldo, que resolveu testar seus oponentes quenianos. Ele fez a primeira fuga no km 21 para o 22 e ninguém o acompanhou. Olhou para trás, resolveu dar outro tiro até o km 23. Nenhuma resposta. Ele sabia ali que poderia vencer a prova. Em vez de se garantir, resolveu imprimir um ritmo mais forte. Corria a 2:55/km com a calma de quem está fazendo compras no mercado.
Alguns poderiam enxergar que a partir daí a prova não tinha muita graça, pois era apenas um atleta correndo sozinho, sem duelos. E outros podem vê-la como um desafio do homem contra os seus limites. Ainda mais que faltando pouco mais de 3 km para o final, seu agente (o colombiano Felipe Posso) começou a gritar que ele iria quebrar o recorde. Não precisava, ele sabia.
Logo depois o diretor da prova chegou de moto e exclamou “Forty seconds”, ao que Ronaldo respondeu num inglês macarrônico “No problems”, entendendo – ou não – que o diretor dizia que os quenianos estão 40 segundos atrás dele.
CAMBALHOTAS. Ultrapassado o Portão de Brandemburgo, o ritmo era cadenciado, sem aquele sprint final (e talvez isso tenha lhe custado alguns segundos). De acordo com ele, naquele momento, ele estava pensando em dar um tempero brasileiro ao iminente recorde mundial. E ao cruzar linha de chegada em 2:06:05 superou a marca que perdurava há 10 anos, do etíope Belayneh Dinsamo, com 2:06:50.
Além disso, seu outro feito foi correr a segunda meia em 1:01:23, um ritmo médio de 2:55/km que, somado à primeira meia, deu uma média inédita de 3:00/km. E o que ele fez para espanto de todos ao acabar de chegar? Se caísse, vomitasse, desmaiasse, era compreensível. Mas não, ele imediatamente deu cambalhotas, pulou e sambou e foi pego pelo seu técnico no colo. Ele tinha ensaiado a comemoração quatro anos antes, na 70ª São Silvestre, mas fez as traquinagens apenas no pódio, recuperado.
Com o recorde, Ronaldo da Costa tornou-se o quarto e último representante do Brasil a ser recordista mundial em uma prova do atletismo na história. Adhemar Ferreira da Silva, Nelson Prudêncio e João do Pulo também tiveram os recordes mundiais. No entanto Ronaldo foi o único que não conseguiu a marca em Jogos Olímpicos.
REPERCUSSÃO. A consequência foi imediata: um recorde de dez anos superado não por um etíope, nem por um queniano, mas por um brasileiro? Os jornais passaram dias repercutindo a história, tentando falar por ele, que celebrou aquele 20 de setembro com simples jantar com o jornalista da TV Globo João Pedro Paes Leme e seu agente. Logo se deitou e no dia seguinte partiu para Zurique onde competiria e venceria, uma semana depois do recorde, uma meia-maratona.
Diante do fracasso da Seleção Brasileira na Copa da França, poucos meses antes, o New York Times, escreveria no dia seguinte da conquista: “Um brasileiro chamado Ronaldo conseguiu, na maratona, o que seu xará do futebol foi incapaz de fazer na Copa do Mundo deste ano: provar que é, indiscutivelmente, o melhor do planeta em sua modalidade”
A própria Contra-Relógio se manifestou, produzindo, às pressas, um pôster comemorativo do inesperado recorde, além de dar o grande feito na capa da edição de outubro. Porém, a vida e a carreira de Ronaldo Iria ter mais uma reviravolta.
Ele não conseguiu dar continuidade aos bons resultados, como, por exemplo, na Maratona de Londres em abril de 1999. Era o teste de fogo de Ronaldinho, que terminou em 17º lugar. Segundo Cavalheiro, ele não havia treinado adequadamente. Cinco meses depois, na Maratona de Chicago, abandonou a prova. Como nada não pode ficar pior, assistiu de camarote seu recorde ser dizimado em 23 segundos pelo marroquino (posteriormente naturalizado norte-americano) Khalid Khannouchi.
Em todas as maratonas seguintes nas quais completou, como Praga em 2000, Tóquio 2003 e até seu retorno a Berlim em 2002, foram retumbantes fracassos em questão de desempenho.
INSINUAÇÕES. E novamente depois de seu feito em Berlim, houve muitas insinuações sobre como ele teria conseguido a façanha, dado seu currículo apenas razoável para os padrões internacionais. O burburinho só aumentou quando seus resultados se tornaram pífios após a façanha. Não há nada comprovado, Ronaldo fez o teste de antidoping e deu negativo em toda as vezes. Mas também é difícil compreender porque ele nunca mais foi o mesmo.
A desconfiança maior dessa vez é que ele estava sob as rédeas de Carlos Alberto Cavalheiro. E esse sim tem um histórico de atletas pego no doping, por uso de testosterona. Além disso, não havia um método eficaz para detectar o uso de EPO até meados dos anos 2000, o que dá fortes argumentos para os críticos na época.
Mau desempenho, críticas. Bem, restaria agora investir o cachê da vitória e o bônus pela quebra do recorde mundial, ou seja, quase 200 mil dólares. Mas Ronaldo não embolsou tudo isso. Porque nesses casos quem recebe a bolada é o agente-administrador, aquele que gritou para ele acelerar, e que estava no jantar de comemoração. Então, ele pegou a bolada, não entregou e quebrou. Apenas oito anos depois Ronaldo conseguiu receber, em parcelas, o saldo dos dólares conquistados na época.
Aos poucos, o mineiro se viu sozinho, abandonado, não mais reconhecido por um povo de memória curta, como ele justificou não haver nenhuma celebração dos 10 anos de sua conquista.
Mas o reconhecimento vem. Primeiro o Instituto Joaquim Cruz fez uma proposta a Ronaldinho em abril de 2012 para trabalhar em um programa de detecção de talentos. Logo foi promovido a assistente de treinador em Ceilândia. A única regra do Instituto é estudar, e Ronaldo, que abandonou a escola na 8ª série, está terminando a Faculdade de Educação Física.
O segundo reconhecimento veio da própria organização da Maratona de Berlim, que na edição de 2013, convidou todos os campeões para assistir à competição. O gesto foi um abraço de carinho para quem ficou obcecado pela prova (ele teve planos de casar, anos depois, no mesmo dia do recorde…)
E em 2016, voltou à sua Descoberto, agora carregando a tocha olímpica.