O fim de ano está chegando, e os corredores começam a traçar seus planos para 2010. Por alguma desfunção natural de corredores, muitos dos que co rreram seus primeiros 5 km cogitam seus primeiros 10 km, os dos 10 km projetam sua primeira meia-maratona e assim por diante, até chegar na maratona. Alguns se arriscam a começar a pensar em suas ultras, mas muitos, após terem vencido os 42.195 m, decidem parar de brigar com a distância para comprar briga com o relógio.
Mas como otimizar seu treino para a maratona? Em que o conhecimento atual de fisiologia do exercício pode ajudar o seu programa? Corredores têm à sua disposição milhões de propostas e planos de treinos prometendo maravilhas (sem nem contar aqueles que prometem abdome definido em 30 dias, mas vamos nos ater a coisas mais sérias, e a maratona).
Algumas coisas já sabemos se funcionam ou não, e simplesmente por incluí-las ou tirá-las de seu treino os benefícios já devem aparecer. Na verdade, em questões ligadas a estruturação de treinamento os conhecimentos de fisiologia mais servem para explicar o que acontece do que para predizer o que deve ser feito. No entanto, a literatura está repleta de experimentos e relatos de treinadores sobre diferentes formas de treino em diferentes pessoas e seus resultados. Ou seja, existe um enorme banco de dados do tipo tentativa-erro, e através dele é possível fazer planos cada vez melhores e mais balanceados para diferentes populações.
Então, ao invés de começarmos a discutir adaptações de treino, vamos iniciar pensando em alguns modelos de treino, e a partir deles iremos desenvolvendo o raciocínio. Um dos mais renomados treinadores aqui da África do Sul, Dave Spence (treinador virtual da Two Oceans Marathon), nos passou algumas de suas "regras" de planejamento (veja no box). Dave é treinador de diversos corredores de rua de sucesso, e além disso está sempre disposto a trazer seus corredores para nosso laboratório (inclusive para o meu mestrado), o que faz dele um grande sujeito, ou ao menos um treinador interessado no que os fisiologistas podem oferecer à sua prática.
8 OU 11 SEMANAS PARA MARATONA? Vejam que as regras propostas por ele para um bom planejamento parecem extremamente conservadoras (mesmo pra mim, e sempre preferi "se não acertar, errar por baixo"). Porém, note que seguindo os princípios propostos, um corredor que iniciasse seu planejamento com 30 km semanais chegaria em 80 km ao final da 11ª semana de treino, quando seu longão estaria na casa de 27 km (considerando uma progressão constante). 80 km semanais são um volume respeitável para corredores amadores, e são poucos os que chegam lá. Lembramos ainda que 11 semanas não são nem 3 meses! Ou seja, qual a pressa?
Infelizmente, não existe ainda uma resposta exata sobre qual é a melhor forma de aumento de volume semanal e progressão do treino, mas nessas horas ser relutante em aumentar demais as cargas parece ser sempre uma boa idéia. Seguindo o mesmo exemplo, se o corredor optar por aumentar seu volume semanal em 15% (e não os 10% propostos por Dave), ele chegaria em 80 km em 8 semanas. No entanto teria um volume acumulado de 400 km, enquanto o corredor na progressão de 10% já correu 550 km quando chegou no ponto em que treina 80 km semanais, possivelmente construindo uma base de condicionamento bem mais saudável. Se preocupar com os aumentos de cargas, que às vezes são tão pequenos, pode parecer insignificante, porém não se sabe realmente o custo (utilizando lesões como moeda corrente) de uma progressão mais agressiva, e a lógica sugere que quanto mais suave ela for, mais barata sairá a conta.
Com o visto até aqui, um corredor deveria ter em seu plano para uma maratona ao menos 11 semanas. Se considerarmos que o corredor siga um ciclo de 3:1 a partir da 5ª semana, onde o volume aumenta por três semanas e na quarta cai ao mesmo nível da terceira (veja a linha verde do gráfico), a quantidade de semanas aumenta para chegar nos 80 km semanais sobe para 21 semanas.
Aliás, por que mesmo insistir nos 80 km? O número é relativamente arbitrário, e um de seus fundamentos é a crença (crença, veja bem) de que o corredor deve ser capaz de fazer o dobro do volume de sua prova em uma semana de treino (exceção para provas super-ultra longas). E faz sentido pensar assim. Quer dizer, é possível correr uma maratona com um volume semanal bem menor, certamente. Porém também é certo que um corredor capaz de fazer os 80 km por semana está em plenas condições de ter uma boa maratona (da mesma forma como quem corre 3-4 km duas a três vezes na semana aguenta correr 5 km e quem corre 7 km três vezes por semana já consegue correr 10 km sem problemas).
QUANDO COMEÇAR A REDUZIR. Mas vamos manter o foco na maratona: tenha você escolhido o caminho que resolveu seguir, com o aumento de carga que tiver optado, as semanas que antecedem a prova também são extremamente importantes. Quando chegar no pico de treino, o que fazer ou não após esse ponto é quase tão importante quanto a preparação em si.
Uma estratégia que hoje é praticamente universal é realizar um período de "polimento" (tapering, em inglês), que basicamente consiste em uma redução drástica de volume nas semanas que antecedem o evento alvo, visando maximizar os efeitos do treinamento (para quem lembra da coluna de descanso vs. treinamento de uns meses atrás) e otimizar a performance do atleta.
As opiniões divergem em torno de qual a melhor estratégia de polimento. O quanto de volume deve ser reduzido, quanto tempo antes da prova e o que fazer com a intensidade de treino são perguntas difíceis de ser respondidas, mas neste caso específico parece haver uma luz no fim do túnel vinda de um laboratório. Uma meta-análise feita por um grupo francês (meta-análise é uma forma de juntar vários estudos e analisá-los como se fossem um só, aumentando assim a quantidade de sujeitos analisados e a força estatística do resultado – estatísticos de plantão me desculpem pela simplificação) combinou resultados de 27 estudos envolvendo estratégias de polimento, e parece ter conseguido chegar numa receita próxima do ideal.
O maior incremento de performance apareceu quando o polimento durava em torno de duas semanas, com uma diminuição de volume entre 20 e 60%, sem qualquer alteração de intensidade e frequência semanal. Polimentos de uma, três e quatro semanas tiveram um efeito positivo menor e semelhante entre si, possivelmente pelo fato de uma semana ser pouco tempo para descansar e três ou quatro semanas serem tempo demais. Interessante notar que esses valores foram os mesmos para estudos sobre ciclismo, natação e corrida. A margem de diminuição de volume (20-60%) ainda é alta, mas possivelmente testar algo como 30-40% parece ser um bom palpite inicial.
COMO FAZ A ELITE? Alguns treinadores disponibilizam o sistema de treinos de seus atletas, e muitas vezes a partir disso se cria a base para o treinamento de corredores amadores. O problema é que corredores de elite hoje correm na casa de 180-250 km semanais, mais do que isso ao menos já parece haver um consenso de que não há muito benefício. É difícil tentar extrapolar este tipo de treino para quem corre digamos 50-60 km semanais, e geralmente quem tenta se lesiona em não muito tempo.
Um trabalho publicado no periódico científico da IAAF em 2006 tentou fazer uma descrição de métodos utilizados por treinadores de diferentes países (e supostamente diferentes escolas de treinamento), todos com atletas capazes de correr a maratona em sub 2h09. Foram entrevistados treinadores do Brasil, Portugal, Espanha, México e Itália. Depois de muito esforço tentando unificar os treinadores em grupos, uma das conclusões mais "práticas" foi de que alguns preferem altos volumes aliados a altas intensidades e outros preferem ainda mais altos volumes aliados as mesmas altas intensidades. Em todas as outras variáveis analisadas os resultados eram tão diferentes entre os treinadores que não havia como criar grupos. Não ajudou muito? Veja por esse lado: dentro de certos limites de coisas que funcionam, existem inúmeras maneiras de se chegar num resultado ótimo, o que faz com que correr uma boa maratona seja razoavelmente mais fácil que ganhar na sena, por exemplo.
UM POUCO DE FISIOLOGIA. Voltando ao início da coluna, a fisiologia hoje é muito capaz de "explicar" o que acontece com o corpo durante o treinamento, e também já é razoavelmente capaz de dizer que tipo de treino leva a que tipo de adaptação fisiológica. No entanto, "que tipo" não é a mesma coisa de "que dose" e as adaptações fisiológicas insistem em não se aproximar das mudanças de performance numa escala em que se possa prescrever as séries de treino, usando como base somente os conhecimentos de fisiologia.
Muito já se discutiu sobre as adaptações do sistema cardiorrespiratório ao treino de maratona. O mais aceito hoje é que treinos em baixas intensidade aumentem a capacidade periférica da cadeia de transporte e utilização de oxigênio (aumento de densidade capilar por exemplo), enquanto treinos mais intensos melhorem a capacidade circulatória central (capacidade cardíaca de bombear sangue). Essas adaptações podem ser visíveis já a partir de poucas semanas de treino, e podem ser potencializadas pelo período de polimento.
Alguns trabalhos mais recentes mostraram os efeitos de treino e polimento para a maratona sobre o funcionamento de fibras musculares isoladas, e se constatou que, apesar de seu tamanho diminuir, sua capacidade funcional (força) aumentou, e o período de polimento parece afetar especialmente as fibras de contração rápida. Uma maior capacidade de utilizar oxigênio somada com uma melhor capacidade de trabalho da musculatura é o que se espera de um planejamento de sucesso.



